sábado, 30 de agosto de 2008

RILKE


RILKE


Rogel Samuel



Geir Campos, bom poeta, é autor também de uma obra-prima: "Poemas de Rainer Maria Rilke", hoje só encontrável em sebos (Rio, José Olympio, 1953). De lá copio esta:



INICIAÇÃO


Quem quer que sejas: deixa tua alcova
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe, se renova,
quem quer que sejas.
Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o céu - esguio, singular.
E tens já pronto o mundo: estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silencio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim ...


Este é o primeiro poema do "Livro das imagens", diz-nos o tradutor. É um convite ao leitor, "quem quer que sejas", a abandonar o lar, a rotina, a alcova (?), e segui-lo numa viagem fantástica e estranha, no mundo da poesia, no seu silêncio, no seu sentido. Pois passando o umbral, erguendo a sombra de um arbusto, um inteiro novo mundo se abre, não o mundo da fantasia, mas a visão pura de um reino puro e luminoso, posto ante o céu como uma planície em que se capta o significado.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A porta das mil mortes


amanhã

RAINER MARIA RILKE





RAINER MARIA RILKE

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PRIMEIRA ELEGIA

Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgastar-nos a face — a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos — talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janemla aberta,
uma viola d'amore se abandonava. Tudo isso era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, aà espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imoral sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas — estas abandonadas
que te parecem tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser — nasciemnto supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objetivo amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoes, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? a ansiada libertação
da aparência de injustiça que as vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo o quanto se encandeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. — Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentas Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações — que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.




A MORTE DO POETA



Jazia. Seu altivo semblante
estava pálido e indiferente no leito inflexível,
desde que o mundo, afastado de seus sentidos,
retornara à Era fria.


Os que o viram em vida não compreendiam
como ele se integrava nas coisas;
é que tudo: essas profundezas e florestas
e a própria água eram o seu eu.


Ah! seu vulto era tudo isso
que ainda agora dele se acerca como para o envolver;
e sua máscara, que lívida se extingue,
é mole e aberta como a polpa de um fruto
que o ar corrompeu.

(Trad. de João Accioli)




TORSO ARCAICO DE APOLO



Não, não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro, onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

(Trad. de Manuel Bandeira)




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I:3
Um deus o pode. Mas, dize-me, poderia um
homem acompanhá-lo na lira encantada?
Sua mente é discórdia e nas encruzilhadas
do coração Apolo não tem templo algum.

O canto, como o ensinas, não é o querer
nem busca do que querer que seja de atingível.
Cantar é existir. para o deus, tudo é factível.
Mas nós, quando é que somos? Quando ao nosso ser

dará ele de volta a terra e as estrelas?
Não é o que amas, jovem, mesmo que forçasse
a voz em tua boca. Aprende a esquecê-las,

tais canções. Elas passam, frutos do momento.
O canta em verdade de outro sopro faz-se.
Um sopro de nada. Um alento em Deus. Um vento.

(Trad. José Carlos Paes )


Borghese
Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante —
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

(Trad. Augusto de Campos )




O torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erger-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

(Tradução: Paulo Quintela)





- Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso - e se me quebro?
Eu sou tua água - e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.


(Tradução: Paulo Plínio Abreu)



- Hora Grave

Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.


Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.


(Tradução: Paulo Plínio Abreu)



Morgue

Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

(Tradução: Augusto de Campos)



A Pantera
No Jardin des Plantes, Paris
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(Tradução: Augusto de Campos)



A Gazela
Gazella Dorcas
Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

(Tradução: Augusto de Campos)



São Sebastião

Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

(Tradução: Augusto de Campos)



O Anjo

Com um mover da fronte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas Ihe aparece
e cada qual demanda: vem, conhece -.
Não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.

(Tradução: Augusto de Campos)



Fonte Romana
Borghese
Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

(Tradução: Augusto de Campos)



Dançarina Espanhola

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

(Tradução: Augusto de Campos)



O Cego

Ele caminha e interrompe a cidade,
que não existe em sua cela escura,
como uma escura rachadura
numa taça atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha,
nele se riscam sem que ele as acolha:
só sensações de tato, como sondas,
captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistência -
como se à espera de escolher alguém, atento,
ele soergue, quase em reverência,
a mão, como num casamento.

(Tradução: Augusto de Campos)



Exercícios ao Piano
O calor cola. A tarde arde e arqueja.
Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num étude enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes
a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

(Tradução: Augusto de Campos)



O Solitário

Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

(Tradução: Augusto de Campos)



O Fruto

Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.

Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.

E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.

(Tradução: Augusto de Campos)



O mundo estava no rosto da amada -

O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

(Tradução: Augusto de Campos)


INICIAÇÃO

Trad. Geir Campos

Quem quer que sejas: deixa tua alcova
da qual já sabes tudo que desejas;
teu lar na tarde, longe, se renova,
quem quer que sejas.
Com teus olhos exaustos, que ainda a custo
entre os gastos umbrais logram passar,
ergues inteira a sombra dum arbusto
posto ante o ceu - esguio, singular.
E tens já pronto o mundo: estranho assim
como palavra que amadurecesse
no silencio, e que teu olhar esquece
quando lhe captas o sentido, enfim ...

OUTONO

As folhas caem como se do alto
caissem, murchas, dos jardins do ceu;
caem com gestos de quem renuncia.

E a terra, só, na noite de cobalto,
cai de entre os astros na amplidao vazia.

Caimos todos nós. Cai esta mao.
Olha em redor: cair é a lei geral.

E a terna mão de Alguem colhe, afinal,
todas as coisas que caindo vão.

HORA SOLENE

Quem nesta hora chora algures no mundo
sem motivo chora no mundo,
chora por mim.

Quem nesta hora ri algures na noite,
sem motivo ri-se na noile,
ri de mim.

Quem nesta hora anda algures no mundo,
sem motivo anda no mundo,
vem a mim.

Quem nesta hora morre algures no mundo,
sem motivo morre no mundo,
olha para mim.

A política são nossos sonhos

Rogel Samuel

"O desejo de ver as coisas melhorarem não adormece", escreveu Bloch.

São nossos sonhos diurnos, de realização política, prodigiosos, maravilhosos, incríveis ou antecipatórios. Queremos o admirável, o grandioso, o melhor para a sociedade, e isso pauta nossa ação política. O que é intuído como uma força de auto-expansão para a frente.

Ação política: melhorar a sociedade.
O máximo signo disso é votar.
Votar significa tentar fazer, envolver-se no sonho de uma verdade, de uma realidade justa.
Não se vota em um nome, mas numa idéia. A idéia é o partido. O partido político. Quando voto, exerço meu sonho de uma vida melhor. Para que voto? Para a solução dos problemas da sociedade.

O direito de votar é o direito de sonhar. Votar é fazer. Fazer a realidade.
E o mais importante voto não é aquele no futuro governante, mas no vereador, no deputado, no senador. Um governante sozinho nada pode fazer, ele precisa de muitos parlamentares que o apóiem, que lhe dêem base, sustentação. Por isso, o voto deve ser no partido. É o partido quem decide.
A política não é só a arte de governar, como também a arte de sonhar.
A política são nossos sonhos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Os pássaros aquáticos

Os pássaros aquáticos


Rogel Samuel


O mestre Dogen escreveu:


Vindo, indo, os pássaros aquáticos
não deixam um rastro
não seguem um traço.



Sem destino, sem passado, os pássaros aquáticos. Impossível seguir-lhes a rota, saber seu destino. Vão e vêm no espaço. Quem os controla? Por que não somos como esses pássaros, sem origem e sem destino, só presença infinita e eterna? Por que não nos libertamos do passado e da urgência do amanhã? O passado não mais existe, coisa morta. O amanhã é uma rua, no fim da qual é a morte. Por que carregamos o fardo de um passado, em direção à morte?

No meu bairro há um estranho mendigo, magro, sujo, barbudo. Não aceita dinheiro. Quando passa deixa um odor fétido de quem nunca mudou de roupa. Quantos anos terá? Não é velho. Deve ter um nome, todos têm um nome. Deve ter família em algum lugar. O diferente nele é que ele carrega um imenso e pesado saco nas costas.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

A liberdade

A liberdade

Rogel Samuel



Escreveu Dogen:

Não siga as idéias dos outros
mas aprenda a ouvir a voz interior de si mesmo.
Seu corpo e mente ficarão claros
e você compreenderá a unidade de todas as coisas.

É o poema da liberdade. Do silêncio. Da voz do silêncio. Não seguir ninguém, saber ouvir o instinto, o impulso, o saber sem nome, o nada. Mas a voz interna só fala quando tudo cala, tudo se esvazia. É difícil deixar de seguir. Mas é possível. Como? Mas como?
A arte de ouvir o silêncio é a "espera". Esperar que as montanhas interiores falem, que o oceano de nosso íntimo se manifeste, diga-nos o que fazer, para onde ir, que decisão tomar. Saber esperar a manifestação do rumo, a movimentação da própria estrada, a abertura da porta por onde entrar, a auto-construção espontânea da ponte por onde passar de uma ação para outra.
O zen, ao contrário do que se pensa, não é inação. Mas é o saber usar a força invisível, a sabedoria inaudível, louca e pessoal.

A ENERGIA NEGRA

CRÔNICA DE SEMPRE
Rogel Samuel (atualização diária)
26/8/2008

A ENERGIA NEGRA



De Paris chega a notícia de que o observatório astronômico europeu XMM-Newton encontrou "o maior grupo de galáxias jamais visto no universo, uma descoberta que pode
confirmar a existência da "energia negra".

É um "monstro" com "uma massa correspondente a mil galáxias" e aparecia como uma mancha muito brilhante. Tem mil vezes a massa de nossa galáxia, a Via Láctea.
"A presença deste grupo confirma bem a existência de um elemento misterioso do Universo, a energia negra", talvez responsável pela aceleração da expansão do Universo, disse Georg Lamer, do Instituto de astrofísica de Potsdam (Alemanha).
Mas se o Universo continua em expansão significa que continua trabalhando, que ainda não terminou o seu brinquedo cósmico!
Estou delirando. Com a grandeza do Universo.
"Grupos de galáxias tão grandes como este são objetos raros no Universo", indicou Lamer. "A existência dessas galáxias só pode ser explicada pela energia negra", continuou.
Segundo os astrofísicos, a maior parte do grupo está longe, situado a 7,7 bilhões de anos-luz. É uma distância inacreditável.
As galáxias gigantes seriam formadas por um gás a uma temperatura de 100 milhões de graus. O que é difícil de entender.

Só falta descobrir de onde o Universo ri de nós.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Somos Sonhos



Somos Sonhos

Rogel Samuel


Leio na Internet a frase de Shakespeare:"Nós somos feitos da mesma matéria dos sonhos".

E fico a imaginar quão extraordinária era a mente de Shakespeare que pôde fazer essa constatação metafísica de grande alcance.

Pois o alcance dessa meditação vai até a filosofia Madyamika e da "Tudo é mente" da Índia antiga, quando pensadores e iogues como Shantideva e Dromi Lotsawa compuseram
suas obras fundadas na descoberta de que "somos sonhos", somos apenas sonhos, e a realidade que nos cerca tem a mesma natureza e verdade dos sonhos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A campeã de 32 anos

Rogel Samuel


É muito bom ver esses jovens ganharem suas medalhas de ouro olímpico, um fato inapagável na vida de um atleta e de uma atleta. Uma medalha nunca é tirada, nunca é esquecida. Alguns pensam que é o país que ganha. Não é. É a atleta e o atleta, é ela ou ele o jovem campeão.

César Cielo se tornou o maior nadador brasileiro de todos os tempos. Com o ouro, alcança um feito que supera as conquistas de Gustavo Borges - até então, o mais bem-sucedido nadador brasileiro e Fernando Scherer, o Xuxa, também ganhador de duas medalhas olímpicas de bronze em Atlanta e em Sydney.

Maurren Maggi conquistou o primeiro ouro individual feminino. Nos Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000, ela chegou como uma das favoritas ao ouro. Sua marca até então, 7,26 m, de junho de 1999, a colocava no seleto
grupo das atletas que passaram dos 7 metros. A marca é tão boa que, desde então, somente três atletas saltaram mais longe em todo o planeta, todas russas: Tatyana Kotova (7,42 m em 2002), Tatyana Lebedeva (7,33 m em 2004) e Irina Simagina (7,27 m em 2004).

Ela tem 32 anos.


quinta-feira, 21 de agosto de 2008

A VELA DE PRATA

Rogel Samuel


Leio que Scheidt e Prada conquistam a prata na Star. O Brasil tem milhares de quilômetros de costa, uma tradição de velejadores jangadeiros. Muitos cantaram com Caymmi que era doce
morrer no mar. Mas não é. Meu pai foi marinheiro, naufragou. Não morreu disso, mas tinha mais desenvoltura sobre as águas do que sobre a terra firme. Em terra firme era desajeitado, reclamava do barulho, da poluição. Gostava mesmo era de viajar pela Amazonia. Viajou mais de 40 anos. Eu muitas vezes fui com ele, quando criança. Tenho boas recordações. Todas poéticas. O mundo verde, primitivo e perdido, da infância amazônica.

domingo, 17 de agosto de 2008

A chuva tardia


Rogel Samuel



Leio mais um poema de Dogen, poeta japonês, nascido em Kyoto (1200-1253) e fundador da escola Soto Zen. Mas ele é, antes de tudo, um grande poeta, que é o que nos interessa aqui. Ele era um aristocrata que perdeu o pai e a mãe, abandonou tudo, tornou-se monge e viajou em busca de um mestre que lhe respondesse às suas inquietações. Foi até a China, uma viagem perigosa na época.


Alegre neste retiro da montanha
contudo ainda no sentimento de melancolia
estudando o Sutra do Lótus diariamente
Pratico meditação concentrada;
O que fazem o amor e o ódio
Quando estou aqui sozinho?
Escuta o som da chuva tardia nesta noite do outono.


O poema fala dos contrastes da mente e do corpo humano, alegre e triste, amando e odiando. Mesmo isolado no retiro da montanha, aquelas contradições estavam ali presentes. E contradição significa inquietação, desequilíbrio, que ele traz até ali. O Sutra do Lótus é o "Sutra dos Infinitos Significados", não estava acalmando seu corpo e mente, porque "O acesso a esta sabedoria é difícil de compreender e difícil de transpor".

A "solução" poética desta dúvida foi escutar o som da chuva tardia.

Talvez aí nasceu o olho.

sábado, 16 de agosto de 2008

A praça Caymmi


Rogel Samuel


Existe uma área no início da praia da Itapoã chamada Praça Caymmi. Naquele tempo, era uma área deserta, perto da lagoa e do mar. Jorge Amado não morava longe dali. Lugar mágico, deserto, com umas barracas onde se podia beber água de coco. O vento que vinha do mar trazia versos de Caymmi. Eu estive lá, em 1973, por alguns dias. Estava hospedado no Pituba, num hotelzinho barato frente para o mar. Tenho fotos. Românticas. Havia gente acampando por ali, em frente ao mar selvagem, como nas “Palavras ao mar”, de Vicente de Carvalho:

“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas - a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.”

A PEGADA DAS AVES

A PEGADA DAS AVES

ROGELSAMUEL


Escreceu DOGEN (1200-1253):


As aves aquáticas
vagam aqui e acolá
sem deixar pegadas
mas suas veredas nunca as esquecem.


O que ele não devia ver era o caminho das aves no ar, seu rastro, suas pegadas, o destino de seu vagar. Mas eram as veredas do ar que não se esqueciam das árvores, os caminhos tidos, percorridos. Não há pegadas nas águas. Nem no ar. O vagar das aves. No ar. A mente livre não deixa rastro, não tem culpa nem ganho. Nem lugar de morada.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O GUINDASTE DO MUNDO



Rogel Samuel

Um poema de Dogen (1200 - 1253) diz assim:

A que devo comparar o mundo?
O luar
refletido nas gotas de orvalho,
agitadas da conta de um guindaste.

Isto se lê em “Zen Poetry of Dogen”, traduzido para o inglês por Steven Heine. Para Dogen o mundo é uma gota de luar, ou melhor, são gotas de orvalho, estão nas gotas de orvalho penduradas nas grandezas de um guindaste, arrastadas por esse enorme guindaste poderoso e forte que é o destino do mundo, o peso do mundo, a agitar do mundo, a pressa do mundo, seu trânsito, suas guerras, suas contas, seus dinheiros, seus valores, suas fortunas, as empresas, os exércitos, as nações, o grande esforço de suas lutas e trabalhos, tudo, tudo não vale mais, para Dogen, do que o luar refletido dentro das gotas de orvalho agitadas pelo mover do braço desse enorme guindaste que move o mundo.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O que não é feito de nada


Rogel Samuel


Naropa (1016-1100) é um famoso poeta indiano que escreveu algumas das mais belas e
filosóficas canções, reunidas em "The Songs of Naropa: Commentaries on songs of
Realization", translated by Khenchen Thrangu Rinpoche e Erik Pema Kunsang. Traduzo sua
"Súmula de Mahamuda", que diz:


Homenagem para o estado de grandes felicidades!
Sobre o que é chamado Mahamudra
Todas as coisas são sua própria mente.
Ver objetos como externos é um conceito errado;
Como um sonho, eles são vazios de concretude.
Esta mente, assim como é, é um mero movimento de atenção
Que não tem nenhuma ego-natureza, somente sendo uma rajada de vento.
Vazio de identidade, como o espaço.
Todas as coisas, como o espaço, são iguais.
Porque o 'Mahamudra'
Não é uma entidade que pode ser mostrada.
Nele está a ipseidade da mente
Que é o próprio estado de Mahamudra.
E não é algo a ser corrigido nem transformado,
Mas quando qualquer um vê e percebe sua natureza
Tudo que aparece e existe é Mahamudra,
O grande Dharmakaya que tudo permeia.
Naturalmente e sem inventar nada, permite simplesmente ser,
Este inimaginável Dharmakaya,
Deixando isto ser sem buscar nada é seu treinamento meditativo.
Pois meditar enquanto busca é ilusão mental.
Da mesma maneira que com o espaço e uma exibição mágica,
Nem cultivando nem não cultivando
Como pode você estar separado e não separado!
Isto é a compreensão de um iogue.
Todas as ações boas e ações prejudiciais
Dissolvem-se simplesmente por conhecer esta natureza.
As emoções são sua grande sabedoria.
Como uma selva em fogo, elas são ajudantes do iogue.
Como podem ficar ou podem ir?
Que meditação é fugir para um eremitério?
Sem entender isto, todos os possíveis meios
Nunca trarão mais que liberação temporária.
Quando entender esta natureza, o que vai prender você?
Enquanto sendo atento de sua continuidade,
Não há nem um composto nem um estado não composto
Nem um ser cultivado ou corrigido por um remédio.
Não é feito de nada
A experiência ego-liberada é dharmadhatu.
Pensar na ego-liberação é grande sabedoria,
Igualdade não-dual é dharmakaya.
Como o fluxo contínuo de um grande rio,
Tudo o que que você faz é significante,
Este é o estado desperto eterno,
As grandes felicidades não deixam nenhum lugar para o samasara.
Todas as coisas estão vazias de suas próprias identidades.
Este conceito fixo em vacuidade se dissolve em si mesmo.
Livre de conceito, não segurando nada em mente,
Está em si mesmo no caminho dos Buddhas.
Para o mais afortunado,
Eu escrevi essas palavras concisas de um conselho sincero.
Por isto, possa todo ser sensível
Ser estabelecido em Mahamudra.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

A pedra

Rogel Samuel

somente meus dedos na muralha
sentindo as marcas das chuvas velhas
falsos sabres das águas, luzes
roucas louras lantejoulas
pedaços de lixa, fragmentos
de centímetros de aço
desejos fáceis, aves
o mistério nas respostas
filtros finos, sinos
sussurros nesses escritórios
do vão que era opaco
onde só vejo sombras caladas
onde a verdade não abre sua porta
onde só pedras empilhadas
e a verdade não fala, está morta

A vida da engrenagens do sol


A vida da engrenagens do sol

Rogel Samuel


As engrenagens representam o princípio da vida do mundo, quando uma coisa puxa outra, um fato arrasta o outro, num contínio fluxo de interdependência, como aquilo que se engrena no despertar do dia. Um clássico poema, "Tecendo a manhã", de João Cabral de Melo Neto, sabe dizer o de que falo: a vida da engrenagem que nos envolve e enreda na sua trama causal. Um grito aqui faz nascer o mundo todo que se levanta, nordestina, luminosa, cabralina.

Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

RUA DOS ROUXINÓIS

RUA DOS ROUXINÓIS

ROGEL SAMUEL


Pindamonhangaba é uma pacata cidade do interior de São Paulo. Eu conheci, há muitos anos. Lá existe uma Rua dos Rouxinóis, nome poético, digno do romantismo, que é um dos mais fecundos períodos da literatura brasileira. Pois nesta rua daquela cidade um menino de 15 anos enforcou com uma mangueira outro de 11 anos por causa de uma pipa dentro da Escola. A notícia diz que o maior é usuário de droga, no que não acredito, tão novo o garoto. Toda droga é cara. Depois do crime, o pequeno assassino foi para casa ver TV. Diz a polícia que não demonstrou arrependimento: mas como? Será que ele mesmo sabia o que estava
fazendo? A "explicação" (ó céus??!!) que o repórter não viu nem poderia entender está no "ver TV". O pequeno assassino deve ter imitado um desses filmes americanos que se vê diariamente na TV e que deveriam ser proibidos a menores de 18 anos. Ver sexo explícito é proibido, mas um facínora matador é livre.

domingo, 10 de agosto de 2008

CHUVA


Chuva


Rogel Samuel


Chuva fina, mas continua. Faz um pouco de frio. O mundo lá fora nos dá para sentir a sensação de abrigo. Na TV a pianista portuguesa Maria João Pires toca Drei Romanzen Op. 28 de Schumann. Li que ela reside no Brasil, mas pouco toca por aqui que eu saiba. Parece que está em Salvador. Ela é excelente. No apartamento térreo onde vivo há mais de 10 anos morava uma pianista, cujo nome não quero dizer. Talvez por isso não consigo sair daqui, que não cabe os meus livros. Aqueles sons ainda estão nas paredes. O piano não existe mais. Há os sons. Nas paredes. A chuva está fraca. Talvez poderei sair.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Andando para dentro do mar



ROGEL SAMUEL



Cheio de indagações irrespondíveis na cabeça ponho-me a ler o poema de Alfonsina Storni, na tradução de Oswaldo Orico:
Tu me queres alva,
me queres de espuma,
me queres de nácar,
que seja açucena
mais casta que todas.
De perfume suave;
corola fechada.
Nem raio de lua
filtrado me toque.
Nem a margarida
seja minha irmã.
Tu me queres nívea,
Tu me queres branca,
tu me queres casta.
Tu, que as taças todas
já tiveste à mão.
Os lábios corados
de frutos e mel.
Tu, que no banquete
coberto de pâmpanos,
as carnes gastaste
festejando a Baco.
Tu, que nos jardins
escuros do engano,
lascivo e vermelho
correste no abismo.
Ó tu, que o esqueleto,
não sei por que graça
ou por que milagre
conservas intacto,
só me queres branca,
(que Deus te perdoe!)
só me queres casta,
(que Deus te perdoe!)
só me queres alva.
Foge para o bosque,
vai para a montanha,
purifica a boca,
vive na humildade.
Segura com as mãos
a terra orvalhada.
Alimenta o corpo
de raiz amarga.
Bebe a água das rochas,
dorme sobre a geada,
renova os tecidos
com salitre e água.
Conversa com os pássaros,
lava-te na aurora.
E já quando as carnes
ao corpo te voltem,
e quando hajas posto
nas carnes a alma
que, pelas alcovas
ficou enredada.
Então, homem puro,
pretende-me nívea,
pretende-me branca,
pretende-me casta.
Hoje quase não se ouve falar de Oswaldo Orico (1900 — 1981), escritor paraense, diplomata, poeta, contista, romancista, biógrafo, da Academia Brasileira de Letras, autor de mais de 20 livros, pai de Vanja Orico. Era bom escritor,
muito lido em sua época. Sua tradução deu numa obra prima da lírica portuguesa, como uma leve canção.
Alfonsina Storni nasceu na Europa mas foi com os pais para a Argentina em 1896, onde foi costureira, operária, atriz e professora. Dizem que sabendo que estava com um câncer no seio em 1938 suicidou-se. Antes de se suicidar, escreveu o soneto “Voy a Dormir” e falam que se matou andando
para dentro do mar, como na canção "Alfonsina y el mar", de Mercedes Sosa. Seu corpo foi encontrado no mar no dia 25 de outubro de 1938. Alfonsina tinha 46 anos.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

NO MEIO DA NOITE


Rogel Samuel

No meio da noite sou acordado por minha amiga M. que mora em Los Angeles dizendo aos prantos que sua filha que mora na França vai perder o bebê. A comunicação moderna uniu o sofrimento das pessoas. No meio da noite não tive idéia para nada, só lhe disse "fique calma". Agora, desperto, lembro-me de ter lido em Bloch que "a felicidade nunca chega imediatamente". Mas, digo, a infelicidade pode ser súbita, inesperada. Vivemos diariamente sem saber o amanhã. Por isso é melhor esperar que aconteçam as nossas coisas mais amadas. "A essência não é o que foi, ao contrário: a essência mesma do mundo situa-se na linha de frente". Mas temos conosco mesmos um compromisso de honra, um compromisso sagrado: temos de manter-nos felizes, otimistas, aconteça o que acontecer. Do contrário entraremos no abismo negro
da depressão. Que não resolve.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

A leitura de Neuza Machado



Rogel Samuel


O início do capítulo quarto do nosso “O amante das amazonas” ou “PAXIÚBA” diz assim :


“E CHEGA que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) - sim, que quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fome, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no para, o esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nem nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é. Mas o olho burro tudo vê, e registra - mosca da vida sobre a rosa de sangue e da conversa vã. Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci, e se tomou lendário e eterno - ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale.
“Pois se aproximava somente para dizer: “Bons dias”, e assim se referia a uma certa e acocorada Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas, agachada sobre a prancha lisa, lixiviada, de Itaúba, tabuão de sabão, - ela nem o tinha visto e pressentido em suas costas feito um jacaré inteiro estirado imenso - Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, mas literário, mas enorme de belo, que já o conheci assim, escuro caboclo e tigre, grandão, desenvolto, olho de cobra, de bicho, poderosamente selvagem, no vivo, no ensolarado do olho amarelo, luminoso, feroz, sobre musculatura nobre de dar inveja às estátuas do Louvre, erguida cabeça sobre o pescoço grosso, sólido, de muito viva, e guerreira, assassina, arisca subjetividade - era assim que ele vinha, cínico, atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se dissesse: “te conheço: sei quem és” - o certo da culpa, gesto indecente e ameaçador, de assustar policial - seu poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil confissão antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob seu pulso, que se sabia dele em quem nunca se pôde confiar - impondo mole aquilo que o sustentava nos seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que encontrava no fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o bruto, mas fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que coage, que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se, impelida, à força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se infiltrando nas fendas do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na interseção vazia e na interdição da resposta, na inversão das forças a ré, malandragem desmascarava única nobreza, qualquer dignidade sobrevivente: “Diga sua verdade” - era a linguagem da ordem de seus olhos no risco do seu sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado que nos fotografava, que nos dizia, no espelho avaliado das baixezas. Paxiúba era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência, medo e prática muda da obscura familiaridade com a ternura se via na transmissão de seu segredo. Em uma palavra: explícito. Quando se retirava, a gente se persignava. Porque se efetivava guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo, privilegiadas, sexuais, capazes de muito realizar, sedimentando o músculo vivo e assumido. Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva. E a montaria, transpostos os espaços da vigilância, esbarrava nela, na prancha do cais onde Zilda lavava roupa branca e pura, iluminada, a espuma saindo e se indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo na bordadura branca da superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da água.”

A leitura de Neuza Machado (“ O Fogo da Labareda da Serpente.: sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel”. Rio de Janeiro: N. Machado, 2008. 105p.) se inicia desse modo:

“Manifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade, humanidade esta quase sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense), e, acima de sua aparência exterior, a matéria épica se faz presente no relato ficcional, realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.
“Se me encontro aqui como apreciadora de obra ficcional da pós-modernidade, envolta em minhas próprias teorizações analítico-fenomenológicas sobre um assunto no qual eu mesma me alterco constantemente, confirmo que em O Amante das Amazonas há um altíssimo grau de entropia no sistema de narração (ausência da ordem narrativa à moda tradicional). Para explicitar o seu personagem mítico-ficcional Paxiúba, o criador pós-modernista de Segunda Geração se vale dos enclaves narrativos, tão do gosto dos escritores pós-modernos/pós-modernistas da Primeira Geração. Entretanto, enquanto autor-criador de um novo direcionamento estético-ficcional, mais de acordo com a vivência do homem do século XXI, objetivou abandonar o estereótipo (lugar comum) do personagem reificado (inacreditável, fantasioso) da primeira fase, procurando descortiná-lo por meio de um olhar diferenciado (o ser mítico a se transformar em humano), circunscrito a insólitos acontecimentos dinamizados. (Preciso esclarecer que os escritores do final do século XX, dos anos 80 para cá, perceberam as qualidades intrínsecas das regras sócio-culturais do século XXI, e, por sua vez, como participante ativo daquele momento, o narrador rogeliano enxergou criativamente a mudança que já se avizinhava).

“A entropia narrativa, no século XX, surgiu das pioneiras modalidades sócio-culturais capitalistas, intermediárias de uma novíssima ciência, baseada em um conjunto de métodos científicos, de novas modalidades existenciais que visavam resolver os problemas do homem pós-moderno. Fundamentado-se em normas predominantemente científicas e em transmissões de notícias generalizadas oferecidas pelos meios de comunicação em evidência naquele momento (rádio, televisão e cinema), as mensagens saíam de uma realidade cotidiana, poderosa, mas que já chegavam descaracterizadas aos destinatários, propiciando espetáculos insólitos. Assim, a técnica discursiva da propaganda impôs suas diretrizes no universo ficcional da pós-modernidade, naquela Primeira Geração de escritores ficcionistas, obrigando-os a “criar” seus textos ─ sintagmáticos ou paradigmáticos ─ pelo ponto de vista de uma realidade liquidificada, reduzida a diversas cópias (ou colcha-de-retalhos, ou patchwork quilt) de conceitos vitais diversificados e entrelaçados, conceitos esses vistos pelos críticos da literatura do final do século XX como simulacros de uma realidade há muito despojada de suas características fundamentais.”

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

TEATRO AMAZONAS, 15.

TEATRO AMAZONAS, 15.

A RENÚNCIA DO DR. FILETO PIRES FERREIRA

“Ao Presidente e mais Membros do Congresso Amazonense.
“Paris, 27 de junho de 1898.

“Saúdo-vos, apresentando-vos os mais sinceros e cordiais protestos de meu acatamento e respeito para convosco. Cumprindo o preceito constitucional venho trazer-vos hoje a renúncia do cargo que exerço nesse Estado, do qual sois dignos representantes, por não me ser possível por motivos de ordem superior continuar a exercê-lo. Vós melhor do que ninguém sabeis que aceitei delegação do povo amazonense depois de reiterados pedidos de todos os nossos amigos; delegação, repito, que por mim jamais foi ambicionada e que hoje não o é. Discípulo de Benjamim Constant, inspirado nos seus ensinamentos é convicção minha que a tolerância e a transigência deviam ser sempre as qualidades de um homem publico. Fiz tudo o que as minhas forças comportaram e não me acusa a consciência de me haver afastado da linha que propus-me seguir. Tomando esta resolução sugerida pelos ditames de meus sentimentos, determinada pelo império das circunstancias deixo bem patente aos meus concidadãos que dos cargos que na política ocupei apenas me prendiam a vontade e o desejo de por intermédio deles ser útil ao meu país. Crente de que o digno povo amazonense saberá fazer-me justiça, envio-lhe as expressões dos mais ardentes votos que faço pela prosperidade e engrandecimento que lhe asseguram as suas riquezas e o patriotismo acrisolado dos seus filhos. Saúde e fraternidade. Fileto Pires Ferreira.”

- Que carta é esta? – perguntou Scholz assustado e pondo o jornal sobre o tampo da rica mesa de mármore da varanda de sua casa, mesinha de mármore brecha vermelho sobre um tripé de ferro floreado, feminino, num gesto da oferenda de simbolismo francês, com um ramo de musácea, exótica estrelícia, de pétalas retas em forma de pássaros comprimidas em cristas laranjas de inspiração art-nouveau, meditações do nó, e do sarugaku acrobático, aéreo, ao lado de uma pequena escultura de Pierre Jean David, por que o alemão dera uma pequena fortuna.
- É falsa, disse Lima Silva. A maior fraude da História do Brasil!
- Que é isto! – exclamou o alemão, estupefato.
- Sim, amigo. Dr. Fileto não pediu renúncia.
- Mas a carta, a assinatura, o reconhecimento da firma?
- Tudo falso. Reconheceram a assinatura falsificada.
- A carta é muito bem escrita, nos moldes republicanos, disse Scholz.
- A assinatura foi falsificada pelo vice-governador Ramalho, que não faz mistério sobre isso, disse Lima Silva.
- Paira um humor sórdido na imprensa escandalosa, acrescentou Lima.
- Mas estão dilapidando a honra de um homem da altura de Dr. Fileto Pires, disse Scholz. Eu o conheço e sei da elegância de sua cultura.
- Fileto é um político honesto, um grande homem, disse Lima Silva. Seu governo foi comparativamente melhor do que o de Eduardo Ribeiro. Fileto governa há 19 meses, mas foi eleito para o quadriênio de 23 de julho a 23 de julho de 1900.
- Mas Fileto era o sucessor natural de Eduardo Ribeiro, disse Scholz.
- Mas superior a ele, mais culto, mais preparado.
- Sim?
- Fileto movimentava-se num ambiente de intrigas palacianas, de competições, disputas por cargos, privilégios. Mas era um romântico, só poderia destruir-se.
- Parecia um homem equilibrado, disse Scholz.
- E é. Pediu uma licença médica, viajou para Paris com a licença médica e um crédito especial de 500 libras mensais, além dos subsídios de Governador e a representação ordinária. Fileto não desconfiou que era uma armadilha. Em discurso elogiou Campos Sales, inimigo da elite amazonense. Aí Ramalho viu que era sua oportunidade. Disse que quem vai tratar da saúde não participa de banquetes. Deram-lhe uma rasteira. Fileto acordou no Grand Hotel com a notícia escandalosa de sua própria renúncia!

O processo de difamação só tinha começado. Os poetas da sarjeta debocharam:

Fileto Pires Ferreira
Foi à França por seu gosto,
Veio de lá na carreira,
Gritando que foi deposto.

- O autor da deposição foi Eduardo Ribeiro, presidente do congresso desde 15 de julho, disse Lima Silva.

Capitão Fileto Pires
O homem de opinião,
Saiu daqui com dinheiro,
Voltou sem nenhum tostão,
Entrou de rodaque e botas,
Acabou de pés no chão.

Anos depois aconteceu o mesmo, em 1910, com o coronel Antonio Clemente Ribeiro Bittencourt. Mas no caso de Fileto foi pedida mas não houve intervenção federal, o congresso nacional rejeitou, por 65 votos contra e 52 a favor, alegando a soberania estadual. Além disso, Fileto estava sendo injustamente acusado de prevaricação, peculato e suborno, de acordo com a lei de 5 de outubro de 1892. Havia boatos indecentes vindo na imprensa corrupta, procurando colocar a colônia estrangeira contra ele, e além disso se dizia que em Manaus reinava o terror.

As estrelas

AS ESTRELAS

Rogel Samuel

As onças estão em extinção. Famosas, na minha época, porque atacavam os rebanhos. Só existiam as negras no Norte do Amazonas. As "pintadas" estavam em toda parte, perto de Manaus. Meu pai., que viajou 40 anos pelo Amazonas, encontrou uma, ele descendo um igarapé estreito, motor quase em silêncio, sobre um tronco de árvore caída, ao sol, estava ela. Deu marcha a ré. O animal voltou-se, soberano. Olhou com desprezo, voou como um pássaro, atravessou a margem. Conheci um "matador" de onças, velhote magro, vivia daquilo, no Careiro, perto de Manaus. Amarrava um porco, subia na árvore, ficava na espera. Nesta nossa época digital estou relendo Alencar e falando de onça. Alencar é a Mata Atlântica. Alencar organizou a estória como a história do Brasil, que sai de sua obra inteira. Ele descreve a floresta, que conheceu bem. Veio, por terra, do Ceará ao Rio de Janeiro. Naquela época, uma epopéia, uma caminhada digna da coluna Prestes. Mesmo hoje. O Amazonas era um lugar no mundo tão inexplorado quanto Marte, que deixou de ser uma estrela para virar um realidade. Vamos deixar de observar as estrelas como um sonho. Agora elas serào "uma antecipação do que ainda não veio a ser" (Bloch).

domingo, 3 de agosto de 2008

TEATRO AMAZONAS, 16

TEATRO AMAZONAS, 16

SHAKESPEARE NO TEATRO AMAZONAS


Jantar no Restaurante Francês, no centro de Manaus. Todos foram convidados por Scholz, após “Otelo”, no Teatro Amazonas, com a Companhia Italiana de Dramas e Tragédias e o famoso Emanuel.
Giovanni Emanuel desembarcou no cais da Ponte dos Catraieiros, em Manaus, no dia 12 de maio de 1899, acompanhado de "formosíssima dama", Nella Montagna, primeira atriz da Companhia Italiana de Dramas e Tragédias.
- Além do vinho, querem refresco? – perguntou o garçom.
- Livros há, hoje, e teses sobre ele, disse Lima Silva.
- Sim?
Grande intérprete de Shakespeare, Giovanni Emanuel (Morano Po, Casale, 1848 – Torino 1902) revolucionou a cena italiana.
- Você o conhecia antes?
- Sim, respondeu Lima Silva. Emanuel escreveu que usa o cérebro e o coração de Otelo.
- Ele revolucionou a dramaturgia, acrescentou.
- Sim, respondeu o Maestro Franco. Ele tinha a consciência de que seguia por um caminho artístico novo, uma novidade.
- O seu caráter original e o ecletismo do seu método são incomparáveis, disse Crispim do Amaral.
- Ele é inconstante, descontínuo, passa do sublime para o familiar, acrescentou Scholz.
- Contraditório, opinou Crispim do Amaral.
- Ele faz o contrário do modo de interpretar de Rossi e de Thomas Salvini. O primeiro faz Shakespeare romântico, o segundo faz trágico.
- O ator, continuou Scholz, não tem que ser romântico na recitação trágica, mas tem que recitar a “verdade”. Shakespeare não tem nem romantismo nem tragédia, sua grandeza está nos caracteres, na verdade.
O maestro Adelelmo na cabeceira da mesa sacudiu a cabeça e acrescentou:
- Emanuel começa por traduzir-se a si mesmo, exagera a modernidade vulgar de certas expressões, o que lhe dá um efeito diferente.
- Ele é conhecido como o líder do naturalismo teatral na Itália, disse o maestro Franco, como ator experimentalista, como uma escola nova.
- Sim, disse Crispim, o dramático representa o caráter do homem, sem fantasias e afetação.
- Sua preocupação principal no palco, acrescentou Lima Silva, consiste em humanizar o herói trágico. Naturalidade interpretativa.
- Contra o convencionalismo, acrescentou Crispim, já vermelho de vinho. Mas, como todos os artistas, sabia que mesmo no naturalismo o teatro não é capaz de reproduzir a realidade.
- Emanuel faz uma arte neurótica e moderna, disse o maestro Adelelmo.
- O sucesso de público de Emanuel, acrescentou Crispim, mostra que o público aceita isso.
- Ele não recita, mas fala, grita, não como um ator, mas como um homem. Sem convencionalismo.
- Otelo parecia para mim um homem vivo, de carne e osso, disse Scholz.
- Mas com grande efetividade, disse Crispim.
- Ele é um Otelo dos nossos dias, era como se estivesse real, em carne e osso. Ele estava lá, realmente, em cena.

Manaus era uma cidade de 50 mil habitantes, encravada no meio da floresta, mas tinha uma sociedade de nível cultural elevado. O governo estadual pagou duzentos contos de réis para que a Companhia Italiana de Dramas e Tragédias apresentasse vinte e nove espetáculos no Teatro Amazonas: "Otelo", "Romeu e Julieta", "Rei Lear", "Hamlet" (3 vezes) e "O mercador de Veneza" de Shakespeare; A Dama das Camélias" (2 vezes), de Dumas, filho etc.

Partiram de Manaus a 6 de julho do mesmo ano de 1899, no vapor "Continente", depois de quase dois meses em Manaus. O nome de Emanuel está gravado numa placa de mármore, nos corredores do Teatro Amazonas, como a pedir mais respeito, mais veneração por aquela casa ilustre, que soubera entender e aplaudir o teatro shakespeariano.

ELIOT


A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK(1)

T. S. ELIOT

Assista ao filme poético deste texto em:

http://www.poetrymagazine.com/poetry_films/theatre_eliot.htm

Trad. Ivan Junqueira

S’io credesse che mia ris posta fosse
A persona che mai tornasse ai mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s’i’odo il vero,
Senza tema d’infamia ti rispondo. (2)


Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.



No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Angelo.



A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.



E na verdade tempo haverá
Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
Roçando suas espáduas na vidraça;
Tempo haverá, tempo haverá
Para moldar um rosto com que enfrentar
Os rostos que encontrares;
Tempo para matar e criar,
E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
Tempo para ti e tempo para mim,
E tempo ainda para uma centena de indecisões,
E uma centena de visões e revisões,
Antes do chá com torradas.



No saguão as mulheres vêm e vão
A falar de Miguel Ângelo.



E na verdade tempo haverá
Para dar rédeas à imaginação. “Ousarei” E. “Ousarei?”
Tempo para voltar e descer os degraus,
Com uma calva entreaberta em meus cabelos
(Dirão eles: “Como andam ralos seus cabelos!”)
- Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o queixo,

Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete [apruma
(Dirão eles: “Mas como estão finos seus braços e pernas!”)
- Ousarei
Perturbar o universo?
Em um minuto apenas há tempo
Para decisões e revisões que um minuto revoga.


Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
Medi minha vida em colherinhas de café;
Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
Sob a música de um quarto longínquo.
Como então me atreveria?



E já conheci os olhos, a todos conheci
Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
Como então começaria eu a cuspir
Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
E como iria atrever-me?



E já conheci também os braços, a todos conheci
Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
(Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
Com sua leve penugem castanha!)
Será o perfume de um vestido
Que me faz divagar tanto?
Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
E ainda assim me atreveria?
E como o iniciaria?



Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
De homens solitários em mangas de camisa, à janela debruçados?



Eu teria sido um par de espedaçadas garras
A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.



E a tarde e o crepúsculo tão docemente adormecem!
Por longos dedos acariciados,
Entorpecidos... exangues... ou a fingir-se de enfermos,
Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
[servida numa travessa,
Não sou profeta - mas isso pouco importa;
Percebi quando titubeou minha grandeza,
E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
sobretudo.
Enfim, tive medo.



E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola
E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
Dizer: “Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei.”
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
Dissesse: “Não é absolutamente isso o que quis dizer,
Não é nada disso, em absoluto.”



E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...
Teria valido a pena,
Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale
[às pressas,
E ao voltar em direção à janela, dissesse:
“Não é absolutamente isso,
Não é isso o que quis dizer, em absoluto.”



Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
Sou um lorde assistente, o que tudo fará
Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio,
Respeitoso, contente de ser útil,
Político, prudente e meticuloso;
Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
Às vezes, de fato, quase ridículo
Quase o Idiota, às vezes.



Envelheci.., envelheci...
Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.



Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um pêssego?
Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.



Não creio que um dia elas cantem para mim.



Vi-as cavalgando rumo ao largo,
A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.



Tardamos nas câmaras do mar
Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.



1- Escrito em Paris-Munique, 1911. (N. doT).
2-Dante Alighieri. La Divina Commedia, Inferno, XXVII, 61-66. (N. doT.)

ALENCAR


Rogel Samuel

Estou relendo "O guarani". O livro começa por um "fio d'água". Alencar seduz pela leveza. Logo aparece uma cena "impossível": Peri caça uma onça preta com as próprias mãos. Perto de Manaus vivia um caboclo, caseiro meio índio, forte como touro selvagem. Perto dia uma jaguatirica, também chamada "gato do mato", do tamanho de um cão, caiu na armadilha para paca. O animal ficou entrelaçado de cordas pelo corpo, mal podia mover-se, mas arrancou-se dali. Ele ouviu aquilo, foi lá com a filha pequena. A onça conseguiu pular sobre a menina. Mas o animal estava de costas, entrançado de cordas. Ele o pegou para estrangular. Quando chegaram outros homens a onça estava ainda viva e, com as unhas da única pata livre, cortava o inimigo que quase morreu. Portanto, pegar um onça preta com as próprias mãos é uma das licenças poéticas do romantismo do grande mestre.

sábado, 2 de agosto de 2008

VARIAÇÃO SOBRE O POEMA


Rogel Samuel


O poema XI do Tao Te Ching de Lao Tse recebeu várias traduções em português, geralmente vindas de outras traduções de alguma língua européia. A de Emmanuel Carneiro Leão diz:
Trinta raios rodeiam um eixo
mas é onde o raio não raia
que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso.
Mas é o vazio
que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas
mas é onde não há nada
que se está em casa.
Falam-se palavras
e se apalavram falas,
mas é no silêncio
que mora a linguagem.
É o Ser que faz a utilidade.
Mas é o Nada que dá sentido.

(A de Edmundo Montagne, traduzida em português: )
Trinta raios se juntam no cubo;
mas é o não existente entre eles o que
realiza a efetividade da roda.
De terra se fazem as vasilhas;
porém o não existente do meio realiza a
efetividade da vasilha.
Cortando portas e janelas se faz a casa;
porém esse não existente entre seus muros
realiza a efetividade da casa.
- Assim, pois, em geral
Do material depende a Utilidade;
E do Imaterial depende a Efetividade.

(A versão de Norberto de Paula Lima é assim:)
Trinta raios convergem, no círculo de uma roda
E pelo espaço que há entre eles
Origina-se a utilidade da roda
A argila é trabalhada na forma de vasos
E no vazio origina-se a utilidade deles
Abrem-se portas e janelas nas paredes da casa
E pelos vazios é que podemos utilizá-la
Assim, da não-existência vem a utilidade, e
da existência, a posse.

( A tradução de Wu Jyh Cherng, direta do original:)
Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo
A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto
Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa
Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade


(Mas não acredito que “utilidade” seja o sentido do Tao. O Tao não tem utilidade) .

VARIAÇÃO SOBRE O POEMA


VARIAÇÃO SOBRE O POEMA

Rogel Samuel

O poema XI do Tao Te Ching de Lao Tse recebeu várias traduções em português, geralmente vindas de outras traduções de alguma língua européia. A de Emmanuel Carneiro Leão diz:
Trinta raios rodeiam um eixo
mas é onde o raio não raia
que roda a roda.
Vaza-se a vasa e se faz o vaso.
Mas é o vazio
que perfaz a vasilha.
Casam-se as paredes e se encaixam portas
mas é onde não há nada
que se está em casa.
Falam-se palavras
e se apalavram falas,
mas é no silêncio
que mora a linguagem.
É o Ser que faz a utilidade.
Mas é o Nada que dá sentido.

(A de Edmundo Montagne, traduzida em português: )
Trinta raios se juntam no cubo;
mas é o não existente entre eles o que
realiza a efetividade da roda.
De terra se fazem as vasilhas;
porém o não existente do meio realiza a
efetividade da vasilha.
Cortando portas e janelas se faz a casa;
porém esse não existente entre seus muros
realiza a efetividade da casa.
- Assim, pois, em geral
Do material depende a Utilidade;
E do Imaterial depende a Efetividade.

(A versão de Norberto de Paula Lima é assim:)
Trinta raios convergem, no círculo de uma roda
E pelo espaço que há entre eles
Origina-se a utilidade da roda
A argila é trabalhada na forma de vasos
E no vazio origina-se a utilidade deles
Abrem-se portas e janelas nas paredes da casa
E pelos vazios é que podemos utilizá-la
Assim, da não-existência vem a utilidade, e
da existência, a posse.

( A tradução de Wu Jyh Cherng, direta do original:)
Trinta raios convergem ao vazio do centro da roda
Através dessa não-existência
Existe a utilidade do veículo
A argila é trabalhada na forma de vasos
Através da não-existência
Existe a utilidade do objeto
Portas e janelas são abertas na construção da casa
Através da não-existência
Existe a utilidade da casa
Assim, da existência vem o valor
E da não-existência, a utilidade


(Mas não acredito que “utilidade” seja o sentido do Tao. O Tao não tem utilidade) .

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Morre Pedro Paulo Moreira


Rogel Samuel

O último grande editor brasileiro faleceu há um mês. Pedro Paulo Moreira, editor há 50 anos, era dono da Itatiaia e construiu uma grande empresa vendendo livro. Todos os outros de sua geração faliram, quebraram, desistiram. Todos: José Olympio, Caio Prado, Ênio Silveira. Menos ele, que começou vendendo as coleções de José Olympio de porta em porta. Todo escritor pensa que os editores ganham rios de dinheiro com seu trabalho. Enganam-se: publicar um livro é um risco, nunca se sabe se o livro vai vender, e do preço de capa ganha 10% o escritor, o distribuidor, o livreiro, a gráfica, o capista, o revisor etc. O preço do papel é cotado em dólar por um mercado internacional. A media também é muito cara, a propaganda, o prestígio do livro. Livro é loteria: Você pode publicar uma obra-prima e não vender nada, ou enriquecer vendendo uma obra medíocre e passageira. O mercado de livro é muito sensível às crises econômicas. O leitor só compra livro quando o dinheiro sobra (exceto o intelectual). Por isso, quando penso em Pedro Paulo vejo um vencedor da tempestade. Ele era dono de várias editoras além da Itatiaia, como a Martins, a Briguiet, a Garnier, a Villa Rica, etc. Tinha cerca de 5 mil títulos no seu catálogo. Pedro Paulo faleceu aos 82 anos, vítima de um desastre de automóvel numa das estradas da sua querida Minas Gerais. Era o último grande editor brasileiro vivo.
Editou o nosso "O amante das amazonas". O seu catálogo está em:

http://www.villarica.com.br/