terça-feira, 31 de março de 2015

A amizade é um refúgio












A amizade é um refúgio


Rogel Samuel



Quando somos jovens temos naturalmente muitos amigos, espontaneamente. São colegas de rua, de colégio, de faculdade.

Na meia-idade diminui o número de amigos.

Mas na velhice (e eu me incluo aqui) são raros os amigos. Muitos já morreram. Outros mudaram-se, moram longe, em outra cidade, ou país.

Também o velho fica chato, fala menos, reclama mais, sente dores, seu corpo não agüenta longos encontros nos bares, pára de beber, tem de fazer dieta e por aí vai.

As velhas amizades permanecem. Mas há um problema: as pessoas mudam, ficam reacionárias, repetitivas, conversar com um velho às vezes é já saber o que ele vai dizer.

E há velhos que param de ler, ou só se limitam a reler os velhos livros já sabidos.

Algumas pessoas até ficam desagradáveis, só falam de filhos e netos, ou de doença.

Mas para mim o pior velho é aquele cujas opiniões são formadas pela televisão, pela imprensa em geral (que no Brasil mente sem pudor).

"A amizade é um refúgio, diz Dugpa Rinpochê, uma comunidade sagrada, fraterna. É um dos "refúgios preciosos" de que falam os diferentes Budas. No tumulto do mundo moderno, o homem e a mulher devem encontrar refúgio. Quando se encontrou refúgio, os problemas desaparecem como um vôo de pássaros perturbados pela pedra. Perdem o seu peso, e põem-se a dançar.

"Precisarias da força ascética do eremita, do mestre de sabedoria, para te libertar a ti próprio da cegueira e da ilusão. Hoje, o homem moderno não pode fazer nada sem a ajuda dos outros. Não vive nas solidões do Tibete, fora do mundo, protegido dos profanos pelo recinto sagrado do mosteiro. É o diálogo, a partilha, a reciprocidade que nos libertam, e nos trazem de novo à nascente Única, comum a todos os seres", conclui ele.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Biarritz
















Biarritz

Rogel Samuel


Biarritz é uma cidadezinha elegante e clara. Talvez mais para milionários do que para viajantes como nós. Lá mora meu amigo Phillipe, que conhece tão bem o Rio. Lá come-se uma boa "paella", que no Brasil é risoto, tem mais arroz. A palavra paella ou paellera significa uma espécie de bacia enorme, de frigideira de ferro, onde a coisa é feita. A paella de lá tem arroz de um lado, peixe etc do outro, meio a meio. Vem com pouco arroz.

Até hoje tenho uma bolsa de lá. Até hoje me lembro do Hotel Marbella, perto do mar e de suas belezas, ao lado da paella deslumbrante.

Biarritz é um lugar que penso revisitar, antes que a vida acabe, terra de reis no exílio, palácios deslumbrantes e poetas esquecidos.

Ontem falei com Phillipe, pelo telefone. Ele me recomendou o Hotel Saint-Charles, que também conheço, mais barato, mais sossegado. Uma casa antiga, cercada de jardins. Onde seria bom morar.

Seu único defeito desse hotel é estar longe do mar.

Depois de procelosa tempestade



Depois de procelosa tempestade

Rogel Samuel

O Rio amanhece melhor, hoje. O sol, a luz. Pelo menos pela manhã. Como escreveu Camões:

DESPOIS de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o Sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento

Esses poucos versos revelam a maestria. “Procelosa” tem os “ó” do espanto, e “tempestade” os relâmpagos do caos celestial. Noturna é escuridão no tom urrr, assim como sombra, palavra sombria e escura. Sibilante sibila sons do vento forte...

Trata-se de Camões, meu adorado poeta máximo.

Vale!

sábado, 28 de março de 2015

A boa poesia








A boa poesia


Rogel Samuel

Estamos no Brasil, mas não conseguimos almoçar no Bar Brasil, tão cheio. Nenhuma mesa. Fomos ao Nova Capela, aonde não íamos desde os anos 70. O mundo não passou, nesses lugares centenários. Nós, sim. Não mais encontramos o Válter e outros mortos. Nem os poetas daquela época. A poesia que naquela época se publicava em papel mimeógrafo. Alguns faziam um verdadeiro livrinho no mimeógrafo. Mas a poesia era boa. Tinha o sabor de algo proibido e revolucionário. A poesia dos excluídos, marginais e malditos. A boa poesia.

sexta-feira, 27 de março de 2015

WOODSTOK

ROGEL SAMUEL


        À noite, no meu quarto,  leio poema de James Hopkins. Ele é poeta premiado americano, autor do livro “ eight pale women”, ganhou o prêmio “ Word works”, da cidade de Washington, conferido por este organização literária. Hopkins é um rapaz jovem, bonito, com longos cabelos. Conheci-o em Walden, New York. Ele me pede que escreva sobre seu livro, que é muito bom.
        Naquele dia fui a Woodstook.
        Estive lá recentemente duas vezes.
        Na primeira vez chegamos ao anoitecer. Fomos diretos para o alto da montanha, onde nos esperava uma reunião. Quase não sentimos o lugar. Só sua atmosfera. Não da nostalgia, ou da memória do festival de música de 1969 – que não foi mesmo realizado lá – mas no ar havia algo daquele bom tempo dos hippies que fomos, dos cabelos compridos, das nossas sandálias, das nossas artes, das nossas almas puras.
        Sim, porque éramos uma geração de jovens de almas puras, amávamos a música, as fotos, as histórias, a natureza. Não vivíamos, acampávamos neste mundo. Fomos ali, em Woodstock, para reencontrar-nos. Woodstock não era uma cidadezinha nas montanhas, mas um lugar no nosso coração. Vi, logo que cheguei, que não tínhamos ficado velhos, que ainda estávamos no jogo da vida, que ainda amávamos nossa jornada.
       Na segunda vez fui mais cedo, na hora do almoço, a Woodstook.
       Almoçamos em pequeno restaurante onde, à noite, havia música. Os dois garçons, jovens e andróginos, já eram de outra era. A cozinha excelente. Depois, com minhas duas amigas americanas, “fomos às compras”. Woodstok agora é um grande shopping. Particularmente, nada vi interessante. Mas gosto de shopping. O melhor foram as lojas de artigos orientais. Principalmente uma, chamada “Dharmaware”. Mas tudo muito caro, para nós, brasileiros. Entro num sebo. Nada vi, que me entusiasmasse. Um rapaz, na rua, tenta-me desesperadamente vender duas fitas cassetes usadas por dois dólares. Ele tem ansiedade nos olhos, tem pressa. Arrependo-me de não ter comprado, ainda que desconfie por que ou de que ele precisa, ou por isso mesmo.
        Num supermercado comprei uma caneta, que tenho usado até hoje. É um modelo antigo, de aço inoxidável. Gosto de canetas, já tive uma boa coleção. A maioria de pena. Mas hoje só consigo escrever no computador.
        Faz calor, em Woodstock. Sinto-me cansado, desanimado. Estou perdendo o interesse, o gosto pelas coisas. Woodstock sem o clima místico de paz, de amor dos anos sessenta. Estamos na era Bush. “Os nossos ídolos morreram de overdose”. Já não somos os mesmos.
        À noite, no meu quarto,  leio um poema de James Hopkins. O poema diz, mais ou menos assim, que traduzo: “ trate \ os fantasmas \ do quase-passado \ com um pouco mais de respeito  — \ aquelas vaporosas  pistas que derivam dos parques \ aproveitam as ruas \ em segredo. \ o tremor \ apenas \ no vértice \ da escuridão \ quando o vermelho \  escorreu do céu. \ a sombra que pisca \ no canto de seu olho \ antes da noite \  engolir \ a lua”.
        Fecho o livro, a luz da cabeceira. Fecho os olhos. Adormeço. Rondam os fantasmas da noite.

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Helder

PINTURA NA AREIA


PINTURA NA AREIA

Para curar-me, o feiticeiro
pintou tua imagem
no deserto:
areia de oiro - teus olhos,
areia vermelha - a tua boca,
areia azul para os cabelos,
e branca, branca areia, para as minhas lágrimas.

Pintou durante o dia, e tu
crescias como uma deusa
sobre a imensa tela amarela.
E pela tarde o vento dispersou
tua sombra colorida.

E, como sempre, na areia
nada ficou senão o símbolo das minhas lágrimas:
areia prateada.

Poemas dos Peles-Vermelhas, mudado para português por Herberto Helder, de O Bebedor Nocturno (1968), in Poesia Toda, Assírio & Alvim, Novembro de 1990, pp. 238-239.

Herberto Helder (1930-2015)


Herberto Helder (1930-2015) Morreu o poeta que publicou 'A Morte Sem Mestre' (em atualização). O poeta Herberto Helder morreu esta segunda-feira, aos 84 anos, na sua casa em Cascais. Herberto Helder era considerado o maior poeta português da segunda metade do século XX. A cerimónia fúnebre realiza-se amanhã e é reservada à família, informou a Porto Editora. "Nome cimeiro da literatura portuguesa contemporânea, poeta maior que ficará entre a meia dúzia de nomes incontornáveis da poesia portuguesa do século XX", lê-se num comunicado da editora. Considerado um dos maiores poetas portugueses, Herberto Helder, que morreu segunda-feira aos 84 anos, deu a sua última entrevista em 1968 e recusou o Prémio Pessoa na década de noventa, rejeitando quase sempre o mediatismo literário. Morreu Herberto Helder Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, mas desde há muito que residia em Cascais. A 'Morte sem Mestre' foi o último livro do poeta, publicado pela Porto Editora em junho de 2014. O Presidente da República lembrou esta terça-feira o poeta Herberto Helder como "nome cimeiro da cultura portuguesa", sublinhando a forma como a sua escrita marcou a literatura portuguesa das últimas décadas. "Dotado de rara imaginação e sensibilidade, a sua obra sobressai pela originalidade, a coerência e o rasgo de génio com que se afirmou desde o primeiro livro e que sempre lhe foi reconhecido pelos seus leitores", lê-se uma mensagem do chefe de Estado, Aníbal Cavaco Silva, enviada aos familiares do poeta. O secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier afirmou, numa "nota pública de pesar", que Herberto Hélder  "deu novas línguas à língua portuguesa". "Herberto Helder é uma referência maior para a cultura portuguesa e para o seu lugar no mundo, e o seu contributo para a construção do Portugal contemporâneo um bem que a todos deu e do qual todos recebemos parte, enquanto Portugueses e falantes do Português", lê-se no mesmo documento. A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, transmitiu as suas condolências pelo falecimento do poeta Herberto Helder, que classificou de "mestre sem morte" que escrevia "palavras de libertação". "Herberto Helder é o mestre sem morte, para nos suportarmos 'em trocadilho' nas suas palavras. Palavras de libertação, palavras aladas, como que a querer "redimir" uma existência que acusava o excesso de peso do mundo numa lucidez pessoana que afinal a todos nos resgatava", lê-se na nota divulgada por Assunção Esteves. O escritor Manuel Alegre lamentou esta terça-feira a morte de Herberto Helder, de 84 anos, sublinhando que "era um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos". O presidente da Associação Portuguesa de Escritores (APE), José Manuel Mendes, afirmou que Herberto Helder, falecido na segunda-feira, foi o criador "da obra mais fulgurante em Portugal desde a edição do primeiro livro". O crítico Pedro Mexia considerou que o lugar do poeta Herberto Helder na literatura portuguesa equivalerá ao de Fernando Pessoa na primeira metade do século XX. Herberto Helder acreditava no "poder da palavra", sem desconfianças, e esse é um dos seus legados mais fortes na literatura portuguesa, referiu Pedro Mexia. O secretário-geral socialista, António Costa, e o PS manifestaram "profundo pesar" pela morte do poeta Herberto Helder, considerando trata-se de uma "imensa perda" para a cultura portuguesa. Já Francisco José Viegas, comentador da CMTV, afirmou em direto que Herberto Helder foi "provavelmente o poeta mais poderoso, no sentido em que é o que mais influenciou toda a poesia portuguesa do seu tempo". Obras de Herberto Helder Poesia – Poesia: O Amor em Visita (1958) – A Colher na Boca (1961) – Poemacto (1961) – Retrato em Movimento (1967) – O Bebedor Nocturno (1968) – Vocação Animal (1971) – Cobra (1977) – O Corpo o Luxo a Obra (1978) – Photomaton & Vox (1979) – Flash (1980) – A Cabeça entre as Mãos (1982) – As Magias (1987) – Última Ciência (1988) – Do Mundo, (1994) – Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de 1963 a 1971) (1973) – Poesia Toda (1ª ed. em 1981) – A Faca Não Corta o Fogo - Súmula & Inédita (2008) – Ofício Cantante (2009) – Servidões (2013) – A Morte Sem Mestre (2014) Ficção – Os Passos em Volta (1963) – Apresentação do Rosto (1968) – A Faca Não Corta o Fogo (2008) 


Herberto Helder (1930-2015) 


AOS AMIGOS



Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

de Lugar (Escolha de Vasco David’)



alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Vasco David’)



BICICLETA



Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

de Cinco Canções Lunares (Escolha de Hugo Pinto Santos)





que eu aprenda tudo desde a morte,
mas não me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher, roupa, caneta,
roupa intensa com a respiração dentro dela,
e a tua mão sangra na minha,
brilha inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no toque entre os olhos,
na boca,
na rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto comum-de-dois,
o inexaurível,
o quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca sem idioma,
já te não chamaste nunca,
já estás pronta,
já és toda

de A Faca não Corta o Fogo (Escolha de Hugo Pinto Santos)




li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega








segunda-feira, 23 de março de 2015

POR QUE KAFKA ESCREVIA EM ALEMÃO?


POR QUE KAFKA ESCREVIA EM ALEMÃO?

ROGEL SAMUEL



Artigo publicou Nuria Amat, a consagrada autora de “Todos somos Kafka” (Madrid, Anaya & Mario Muchnik, 1993), em “El País”.

Antes, em outro lugar, disse ela que Kafka foi o primeiro que “pôs em crise a família, o casamento, o trabalho”. E tudo. “Ele foi o precursor, o profeta”.

Nuria Amat nasceu em Barcelona, em 1950.

Filho mais velho de abastado comerciante judeu, Kafka cresceu sob as influências de três culturas: a judaica, a checa e a alemã. Mas era um estranho a todas elas.

Ele aprendeu alemão como sua segunda língua, mas só falava tcheco em casa. Nunca foi reconhecido em vida e seus livros, na maioria, se editaram postumamente, pelo amigo Max Brod. E antes de morrer, deixou escrito o pedido de que seus livros fossem queimados. Não foram. Vinte anos depois de sua morte estava ele mundialmente famoso.

Mas Kafka não era escritor alemão. Era tcheco. Porém escrevia em alemão.

Outros dizem que era “judeu”. Mas parece que a tradição judaica não aparece em sua obra. Conforme se lê em Carpeaux.

Assim, nem alemão, nem tcheco, nem judeu, Kafka era um exilado. Em qualquer parte do mundo. E transformou-se num símbolo da literatura moderna. Literatura exilada.

Em vida suas obras não despertaram nenhum interesse. Otto Maria Carpeaux, em “Vinte e cinco anos de literatura” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967), conta que conheceu Kafka durante uma reunião literária em Berlim em 1920. Lá, Carpeaux foi apresentado a um “rapaz magro, pálido e taciturno” que despertou o seu interesse por seu olhar misterioso e perscrutador. Ao indagar de quem se tratava, recebeu a seguinte resposta: “É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem nenhuma importância!...”

Nuria Amat disse que: “el escritor vive en una constante contradicción. Por un lado, un escritor en este sentido, tiene que ser muy ambicioso, claro, porque cada vez que uno se pone a escribir seriamente, en realidad lo que está diciendo es: «Voy a competir con Cervantes»… por otro lado es necesario vivir esto con cierta ironía… ¿Para qué escribir? Para sobrevivir...”

Como Kafka, Nuria Amat escreve em castellano, sendo catalã.

Segundo Borges, “Kafka renovou o paradoxo de Zenão de Eléia: uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário, e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades não se chega nunca ao movimento. No caso de Kafka, podemos pensar que um de seus temas é a infinita postergação”.

Tudo isso a propósito do artigo de Nuria Amat “Kafka en Francfort”, publicado em “El País” de 16 de outubro de 2006.

Ela mostrou como Kafka foi questionado, ignorado ou mesmo repudiado em seu país de origem.

Em Praga ele não era, até sete anos atrás, considerado tcheco (porque era judeu e escrevia em alemão), disse Marta Zelezna, da Sociedade Franz Kafka. Na edição tcheca do “Quem é quem” Kafka não aparece. E somente agora, em 2006, se publica pela primeira vez a obra completa do escritor em tcheco.

Escreve Amat que “Kafka não se sentia bem em Praga”.

Assim como Praga o rejeitou até bem pouco tempo.

E conclui Amat que Kafka era um escritor sem pátria nem língua própria.

Mas era Kafka o maior escritor de Praga.

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL



Graças à ficção, o Artista visita os recantos do sertão, revê aspectos que normalmente são olhados com pouca atenção, reflete sobre o bem e o mal, acompanha o personagem em seu retorno ao arraial do Murici, como se estivesse seguindo "a Fada das Migalhas em sua carruagem grande como uma ervilha, com todas as cerimônias dos velhos tempos"196, revelando um universo de intimidade bem protegida.

Se consentimos dar uma realidade primária à imagem, se não limitamos as imagens a simples expressões, sentimos subitamente que o interior (...) possui o valor de uma felicidade primitiva. Viveríamos felizes se reencontrássemos aí os sonhos primitivos da felicidade, da intimidade bem protegida. Decerto, a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão. Mas também tem necessidade de concentração, de intimidade. Assim, quando a perdemos, quando a vida proporcionou "maus sonhos", sentimos saudade da intimidade da felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto são devaneios de felicidade. Toda a intimidade objetiva seguida em um devaneio natural é um germe de felicidade.197

Para o homem que venceu os obstáculos de origem, submetido às imposições da vida moderna, as recordações do sertão da infância são devaneios de felicidade. Por isto, como assinalo no capítulo "Sertão: cenário da verdadeira representação do Artista", o narrador (alter ego do Artista) mostra apenas um determinado sertão, definindo poeticamente a situação desse espaço. Em seus devaneios felizes não há lugar para discutir a decadência do sertão geográfico, subserviente às imperfeições do mundo moderno; quando muito, essas imperfeições são detectadas por um leitor-crítico, quase que intuitivamente, graças às pequenas referências sócio-ideológicas, difíceis de serem eliminadas totalmente do texto.

As lembranças íntimas do passado sertanejo possuem o valor de uma felicidade primitiva e perdida, simbolizam o retorno ao berço, aos primeiros passos protegidos em direção ao futuro.

Aumentadas no sonho da infância, vejo de muito perto as migalhas secas de pão e a poeira entre as fibras de madeira dura ao sol.198

Aumentado pelas recordações da infância, o sertão real vai se transformar aos poucos em sertão roseano, pelo prisma da perspectiva dialética do Criador. Graças a esta questionadora lente de aumento, o minúsculo se dilatará, modificando o sentido da narrativa. O personagem Nhô Augusto, nas páginas finais, retornando ao arraial do Murici, "achava muitas coisas bonitas, e tudo era mesmo bonito, como são todas as coisas nos caminhos do sertão"199. Guiado pelo narrador, totalmente submetido aos devaneios de felicidade do Artista, pára, a cada passo, para espiar/revelar cada milímetro de intimidade da caminhada.

Parou, para espiar um buraco de tatu, escavado no barranco; para descascar um ananás selvagem, de ouro mouro, com cheiro de presépio; para tirar mel da caixa comprida da abelha borá; para rezar perto de um pau-d'arco florido e de um solene pau-d'óleo, que ambos conservavam muito de-fresco, os sinais da mão de Deus. E, uma vez, teve de se escapar, depressa, para a meia-encosta, e ficou a contemplar, do alto, o caminho, belo como um rio, reboante ao tropel de uma boiada de duas mil cabeças, que rolava para o Itacambira, com a vaqueirama encourada — piquete de cinco na testa, em cada talão sete ou oito, e, atrás, todo um esquadrão de ulanos morenos, cantando cantigas do alto sertão.

E também fez, um dia, o jerico avançar atrás de um urubu reumático, que claudicava estrada a fora, um pedaço, antes de querer voar. E bebia, aparada nas mãos, a água das frias cascatas véus-de-noivas dos morros, que caem com tom de abundância e abandono. Pela primeira vez na sua vida, se extasiou com as pinturas do poente, com os três coqueiros subindo da linha da montanha para se recortarem num fundo alaranjado, onde, na descida do sol, muitas nuvens pegam fogo. E viu voar, do mulungu, vermelho, um tié-piranga, ainda mais vermelho — e o tié-piranga pousou num ramo do barbatimão sem flores, e Nhô Augusto sentiu que o barbatimão todo se alegrava, porque tinha agora um ramo que era de mulungu.

Viajou nas paragens dos mangabeiros, que lhe davam dormida nas malocas, de tecto e paredes de palmas de buriti. Retornou à beira do rio, onde os barranqueiros lhe davam comida, de pirão com pimenta e peixe. Depois, seguiu.200

Sonhando intimamente o sertão da infância e revelando substancialmente suas imagens, sem abandonar as imagens poéticas, o Artista passa a aliar as duas forças imaginantes (formal e material) de que dispõe. Nas fases seguintes, deixou que as duas forças atuassem conjuntamente, mas houve um aprimoramento realçando a imaginação material associada à imaginação criadora, valorizando mais os aspectos íntimos do sertão, ligados a uma atividade material infinita; uma imaginação saída dos devaneios infinitos, possuindo uma riqueza inesgotável, muito próxima do autêntico lirismo.

Os contos de Sagarana (anteriores) simbolizaram o momento dos sonhos móveis e metamorfoseantes, mas ainda assim observa-se neles o já referido princípio de densidade assinalado por Bachelard. Basta apreciar, por este aspecto, a narrativa "São Marcos", apresentando já tal característica, mas ainda ressaltando as "exuberâncias da beleza formal"201.

Valorizando posteriormente a intimidade do sertão de origem, dando forma literária aos devaneios infinitos, o Artista realça o seu poder de transformar uma realidade historicamente deteriorada, sofrendo os abalos de uma mal-formação social numa nova realidade, nascida da redescoberta de uma intimidade vivenciada no passado, possuidora do poder misterioso e contínuo dos sonhos bem sonhados. Essa intimidade foi resgatada do infinitamente pequeno da realidade sertaneja. Ele revolveu a terra, posteriormente escavou a crosta, procurando a verdadeira raiz dessa realidade, e conseguiu suplantar a matéria sem forma e sem vida das marcas exteriores que pouco revelam.

Realçando o infinitamente pequeno (o interior do sertão), sustentado pela tenacidade da imaginação material, provou que este interior foi conquistado no infinito de sua própria profundeza de indivíduo pensante, alcançando a seguir o infinito dos tempos.












II.10.3 Mudanças no discurso narrativo

Ah! meu próprio passado basta para me atrapalhar. Não preciso do passado dos outros. Mas preciso das imagens dos outros para recolorir as minhas. Preciso das fantasias dos outros para me lembrar que, eu também, fui um sonhador de vela".202

O Artista, em sua primeira fase de transição criadora (A hora e vez de Augusto Matraga), busca na matéria terrestre e no fogo as imagens que formarão o seu particular universo ficcional. Distanciando-se aos poucos da imaginação reprodutora de bem ver, procura sonhar novas imagens sob o domínio das lembranças da infância.

No início, o real se faz presente com a reprodução do aspecto exterior do chefe político encarnado na figura do personagem Nhô Augusto, senhor das propriedades denominadas Pindaíbas e Saco-de-Embira. A vontade de poder203 do Artista examina primeiro os signos da majestade: o majestoso e dominador personagem submetendo o povo do arraial do Murici às suas próprias leis e desmandos.

Nesse início (as primeiras linhas da narrativa), realça a figura de Nhô Augusto, filho do Coronel Afonsão, e, apresenta o major Consilva, inimigo político da família Esteves, destacando, com esta atitude, a aparência dos chefes dos diversos núcleos comunitários (capitães, majores e coronéis, de acordo com o poder de compra dos titulados), mostrando-se temporariamente seduzido pelas lembranças do passado, reportando-se ao centro do núcleo social sertanejo, amarrando-se à memória ao invés de se utilizar das recordações.

Esgotando-se a vontade de poder, duas vezes explorada (poder e carisma), nada mais lhe resta senão adotar a vontade de trabalho204, abandonado o plano das aparências e assumindo a criação do personagem, agora, totalmente reelaborado pela imaginação criadora. O personagem, depois de sua fase carismática, adquire um aspecto universal, revigorado pelo poder da Criação Literária.

O personagem que abandona os pretos no sertão do norte de Minas, procurando retornar ao arraial do Murici, não é o mesmo do início. A imaginação criadora transformou-o, recriou-o a partir das imagens materiais que o sustentaram até ali.

Para a imaginação dinâmica há, com toda a evidência, além da coisa, a supercoisa, no mesmo estilo em que o ego é dominado por um superego. Esse pedaço de madeira que deixa minha mão indiferente não passa de uma coisa, está mesmo perto de não ser senão o conceito de uma coisa. Mas se minha faca se diverte em entalhá-la, essa mesma madeira é imediatamente mais do que ela mesma, é uma supercoisa, assume nela todas as forças da provocação do mundo resistente, recebe naturalmente todas as metáforas da agressão.205

Na verdade, a começar por Nhô Augusto, todos os personagens roseanos se transformam. Até então, o Artista esquadrinhara a substância sertaneja, sob as diretrizes da imaginação formal aliada à imaginação material, sensível às formas e às cores, e só depois da reelaboração do personagem procurou atingir o fundo de sua matéria ficcional. A imaginação formal e a imaginação material, detectadas nas narrativas de Sagarana, abriram as portas secretas que ultrapassam a substância, permitindo a criação de um outro tipo de realidade, administrada unicamente pelo imaginário, energeticamente ligada ao plano das possibilidades existenciais da imaginação dinâmica.


O Artista renovou a narrativa e renovou-se. O sertão da infância transforma-se no sertão roseano, manipulado pela força criadora das metáforas bem elaboradas. A realidade sertaneja ficou para trás, nas narrativas que antecedem A hora e vez de Augusto Matraga. Agora o sertão se universaliza, e mesmo assim não será demais admirar as narrativas anteriores, repletas de um poder encantatório, próprio da imaginação formal, já que são o ponto inicial para a imaginação dinâmica das fases posteriores.

domingo, 22 de março de 2015

A ESTRADA

A ESTRADA

Rogel Samuel

       Na estrada sinuosa o verde das montanhas coloca uma barreira horizontal. No alto, o céu brilha com seu cristal fosco. A Mantiqueira. Passamos pela divisa dos Municípios de Delfim Moreira com Venceslau Brás. Os rios do Brasil estão todos poluídos? Dia virá em que vamos ter falta de água potável. O Rio Sapucaí está ameaçado pelo lixo. Os bois, no grande pasto, parecem em paz. À margem, um caminhão tombado, como um gigante morto. Leio na Folha um poema de Guillén, traduzido por Thiago de Mello. As estrofes e os versos se embaralham na minha mente. Guillén era um dos poetas preferidos pelo Farias de Carvalho, quando nosso professor de literatura no Colégio Estadual. Farias aparentemente não dava aula. Quando dava, era um ditado teórico. Mas não conheci melhor professor. Mais tarde fui aluno de Mestre Alceu etc. Mas foi Farias que nos fez amar a literatura, não poder passar sem ela. A aula era uma conversa. Um descompromisso. Farias deixou escola. Eu já vinha querendo ler poesia, depois que encontrei Camões num livro de primeiro grau:
            Oh! lavradores bem-aventurados,
            se conhecessem seu contentamento.

Aqueles versos cantam agora, vendo os bois no pasto. Até hoje ouço sua gargalhada, a voz empostada, os olhos graúdos, as mãos teatrais. A estrada sinuosa e verde continua. Um dia chegarei ao fim.

Monte Saint-Michel ILHADO

Fenômeno natural acontece a cada 18 anos; ponte que dava acesso ao monte Saint-Michel fica submersa


Fenômeno que acontece a cada 18 anos atrai visitantes e turistas para apreciar a vista submersa
AP
Fenômeno que acontece a cada 18 anos atrai visitantes e turistas para apreciar a vista submersa


quinta-feira, 19 de março de 2015

Ezra Pound








Ezra Pound

Os Cantos


Trad. José Lino Grünewald





CANTO 1

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.
Até o território cimeriano,
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios do sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra sobre os homens fúnebres.
Refluindo o mar, chegamos ao local
Premeditado por Circe.
Aqui os ritos de Perímedes e Euríloco e
“De espada a cova cubital escavo
Vazamos libações a cada morto,
Primeiro o hidromel, depois o doce
Vinho mais água com farinha branca
E orei pela cabeça dos finados;
Em Ítaca, os melhores touros estéreis
Para imolar, cercada a pira de oferendas,
Um carneiro somente de Tirésias,
Carneiro negro e com guizos.
Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;
Massacraram os rebanhos, ovelhas sob lanças;
Entornei bálsamos, clamei aos deuses,
Plutão, o forte, e celebrei Prosérpina;
Desembainhada a diminuta espada,
Fiquei para afastar a fúria dos defuntos,
Até que ouvisse Tirésias.
Mas primeiro veio Elpenor, o amigo Elpenor,
Insepulto, jogado em terra extensa.
Membros que abandonamos em casa de Circe,
Sem agasalho ou choro no sepulcro,
Já porque outras labutas nos urgiam.
Triste espírito. E eu gritei em fala rápida:
‘‘Elpenor, como veio a esta praia escura
Veio a pé, mais veloz que os marinheiros?”
E ele, taciturno:
Azar e muito vinho. Adormeci
Na morada de Circe ao pé do fogo.
Descendo a escadaria distraído
Desabei sobre a pilastra,
Com o nervo da nuca estraçalhado
O espírito procurou o Avernus.
Mas, ó Rei, me lembre, eu peço,
E sem agasalho ou choro,
Empilhe minhas armas numa tumba
A beira—mar com esta gravação:
Um homem sem fortuna e com um nome a vir.
E finque o remo que eu rodava entre os amigos
lá, ereto, sobre a tumba.”
Veio Anticléia, a quem eu, repelia,
E então Tirésias tebano,
Levando o seu bastão de ouro, viu —me
E falou primeiro:
“Uma segunda vez? Por quê? homem de maus fados,
Face aos mortos sem sol e este lugar sem gáudio?
Além do fosso! eu vou sorver o sangue
Para a profecia.”
E eu retrocedi,
E ele, vigor sangüíneo: “Odysseus
Deverás retornar por negros mares
Através dos rancores de Netuno,
Todos teus companheiros perderás.
Depois veio Anticléia.
Divus, repouse em paz, digo, Andreas Divus,
In ofiicina Wecheli, 1538, vindo de Homero.
E ele velejou entre Sereias ao
largo e além até Circe.
Venerandam,
Na frase em Creta, e áurea coroa, Afrodite,
Cypri munimenta sortita est, alegre, orichalchi, com dourados
Cintos, faixas nos seios, tu, com pálpebras de ébano
Levando o ramo de ouro de Argicida.


ENVOI (1919)

quarta-feira, 18 de março de 2015

A terra desolada



A terra desolada

T. S. Eliot (1888-1965)

I. O enterro dos mortos

Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aléias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.

Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o canto dos [grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto
De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;
Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.

Frisch weht der Wind
Der Heimat zu
Mein Irisch Kind,
Wo weilest du?

''Um ano faz agora que os primeiros jacintos me deste;
Chamavam-me a menina dos jacintos."
– Mas ao voltarmos, tarde, do Jardim dos Jacintos,
Teus braços cheios de jacintos e teus cabelos úmidos, não pude
Falar, e meus olhos se enevoaram, eu não sabia
Se vivo ou morto estava, e tudo ignorava
Perplexo ante o coração da luz, o silêncio.
Oed' und leer das Meer.

Madame Sosostris, célebre vidente,
Contraiu incurável resfriado; ainda assim,
É conhecida como a mulher mais sábia da Europa,
Com seu trêfego baralho. Esta aqui, disse ela,
É tua carta, a do Marinheiro Fenício Afogado.
(Estas são as pérolas que foram seus olhos. Olha!)
Eis aqui Beladona, a Madona dos Rochedos,
A Senhora das Situações.
Aqui está o homem dos três bastões, e aqui a Roda da Fortuna,
E aqui se vê o mercador zarolho, e esta carta,
Que em branco vês, é algo que ele às costas leva,
Mas que a mim proibiram-me de ver. Não acho
O Enforcado. Receia morte por água.
Vejo multidões que em círculos perambulam.
Obrigada. Se encontrares, querido, a Senhora Equitone,
Diz-lhe que eu mesma lhe entrego o horóscopo:
Todo o cuidado é pouco nestes dias.

Cidade irreal,
Sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,
Fluía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,
Jamais pensei que a morte a tantos destruíra.
Breves e entrecortados, os suspiros exalavam,
E cada homem fincava o olhar adiante de seus pés.
Galgava a colina e percorria a King William Street,
Até onde Saint Mary Woolnoth marcava as horas
Com um dobre surdo ao fim da nona badalada.
Vi alguém que conhecia, e o fiz parar, aos gritos: "Stetson,
Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!
O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu leito?
Conserva o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterrá-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! – mon semblable –, mon frère!"

(Trad. Ivan Junqueira)

A PANTERA

A PANTERA

ROGEL SAMUEL

1.

Eu não sei há quanto tempo já que estou aqui, perdi a consciência da minha vida e de espaço, nessa letargia com que espero, de uma felicidade calma, e apática tristeza. Não sei mesmo nem onde estou, no meio dessas imensas árvores, por onde os verdes pássaros passam com seus gritos, e os silvestres silvam fortemente.
Em minha frente o lago verde se estende, largo e sinistro, sem nome, onde minha companheira pesca, imóvel.
Ela é uma estátua imóvel. de lança parada, no ar parado, no silêncio morno, no calor úmido, no mormaço da tarde.
Talvez eu esteja aqui há muitos anos.

Talvez não.

O mundo desapareceu, e se mudou, e se fechou. O tempo é morto, as lembranças mortas, o espaço morto, o verde incompreensivel.
Por que de nada me lembro? - Por que de nada me não quero lembrar? Digo. Ouço a espera do porvir, a espera da guerra final.

Nesse momento o som de arco perfura a água, eu nem me volto para vê-la, pois sei que quando atira raramente erra. 

Jara é jovem.
Está comigo desde cedo. Silenciosa, atenta, misteriosa, meiga. Como protetora, amiga, amante. Ou inimiga. Não sei por que os mestres permitiram que ela ficasse aqui. Ela apareceu, e ficou. Vieram alguns guerreiros, dias depois, à sua procura. Jara os mandou retornar, com uma única frase e um gesto. Seus irmãos desapareceram. Não olharam para mim.
Eu vejo Jara como uma sentinela, aqui para alertar sobre aproximação do exército inimigo. Mas por que me aceitaram? Será mesmo que virão os inimigos? Talvez estejam planejando matar-me. Talvez eu seja o inimigo. Mas minha falta de reação agressiva, minha apatia com tudo, minha indiferença fez Jara permanecer em paz.


E calma. 

terça-feira, 17 de março de 2015

O DOM NÃO ERA O VEN. ANURUDHA

O DOM NÃO ERA O VEN. ANURUDHA

ROGEL SAMUEL

Quem conheceu o Ven. Anurudha sabe do que estou falando: o Ven. Anurudha era muitíssimo mais fascinante, muitíssimo mais impressionante.
A mim um dia segredou para mim que tinha atingido um grau de meditação cujo nome não me lembro que antecede à iluminação, grau esse que depois de atingido se perde (ao contrário do mais baixo nível de iluminação).
O Ven. Anurudha me disse que atingiu o que no Visudimaga se chama “falsa iluminação”, que é um estágio “que dá e passa”.
Quando começou a construção do retiro de Santa Teresa ele começou a perder alguma coisa de sua força, - e quando deixou o manto mais ainda.
Ven. Anurudha dos primeiros dias era um ser mágico e intuitivo, trazia a força da tradição de 2500 anos de Budismo Theravada – ou seja – da sua boca podia-se ouvir a voz de todos os Budas do passado, bastava a pessoa saber ouvir...


NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE


NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE

SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL


Os fundamentos substanciais daquelas regras anteriores ao pós-modernismo, se as penso pela ótica de Gianni Vattimo , àquela época, não poderiam ser criticados e, muito menos, reformulados, ou mesmo refundamentados, pois eram fundamentos considerados absolutos, consagrados, inquestionáveis. Assim, a ficção do século XX final, entrópica, sinalizou-se como a ficção do não-fundamento. Aqui, repenso aquela informação perfeita, artística, sucinta, citada páginas atrás: “Como nessa matéria nada é absoluto”. Esta afirmação endossa o meu texto reflexivo-interpretativo, sobre o diferenciado narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, o narrador-personagem Ribamar de Sousa, neste meu texto teórico-interpretativo, conscientemente fragilizado, porque se coloca nitidamente como pioneiro (e que, certamente, sofrerá repetidas investidas, contrárias, das hostes intelectuais, brasileiras ou não, proprietárias das eternas verdades teórico-críticas institucionalizadas).
Contudo, voltando à ficção do século XX, entrópica, reafirmo, pela minha própria forma de entender o pensamento de Gianni Vattimo, que esta se sinalizou como a ficção do não-fundamento. Os ficcionistas-criadores de uns anos para cá não instituíram os chamados fundamentos corretos, não estabeleceram verdades absolutas, negaram uma disposição e distribuição do fazer narrativo pelo modelo tradicional, desenvolveram um diferenciado exame da realidade de suas propostas ficcionais. Esses ficcionistas do século XX, extremamente não-convencionais, procuraram uma adequação ao estado entrópico de suas realidades existenciais. Já que não possuíam mais a confiança e firmeza do substancialmente instituído, valeram-se de suas dúvidas diárias, vazias, desenvolvendo gradativamente suas lutas titânicas com as palavras ainda não-substancialmente formalizadas.
A verdade do narrador-personagem Ribamar de Sousa foi o estabelecimento da não-verdade do criador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pois este não possuía, naquela altura, um fundamento histórico sobre os Numas, já que estes provieram da dimensão mitológica.

Mas, o que é a verdade ficcional nesta narrativa, especialmente? A anterior verdade instituída (sobre “coisa” de difícil explicação), apresentada sublinearmente pelo narrador-personagem Ribamar de Sousa, já fora asfixiada pelo “rio deserto” (plano sem palavras conceituais, amorfo), inserido na fábula númica do narrador diferenciado. O momento sócio-existencial de sua realidade próxima ainda não estava a permitir-lhe novos fundamentos ficcionais. A entropia narrativa, à moda da primeira fase pós-modernista, ainda teria de se fazer presente em seu relato. Entretanto, mesmo repudiando as exigentes “verdades” instituídas e se debatendo em uma realidade enrolada e espetacularmente diversificada, o ficcionista pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conformou um outro rumo ou nova sondagem para explicitar a sua verdade ficcional. E esta nova conformação respaldou-se na incerteza da própria conformação, na luta constante para se chegar a um bom termo explicativo-ficcional.