segunda-feira, 30 de novembro de 2015

SANTOS CHOCANO


Las Orquídeas

Anforas de cristal, airosas galas
de enigmáticas formas sorprendentes,
diademas propias de apolíneas frentes,
adornos dignos de fastuosas salas.
En los nudos de un tronco hacen escalas;
y ensortijan sus tallos de serpientes,
hasta quedar en la altitud pendientes,
a manera de pájaros sin alas.
Tristes como cabezas pensativas,
brotan ellas, sin torpes ligaduras
de tirana raíz, libres y altivas;
porque también, con lo mezquino en guerra,
quieren vivir, como las almas puras,
sin un solo contacto con la tierra.

ADÉLIA PRADO






  


ADÉLIA PRADO

  
  

     Quando o encontro com alguma coisa provoca em mim um sentimento de estranhamento e de beleza, eu estou tendo, nesse momento, uma experiência poética. Essa experiência é sempre um sentimento de gozo, uma coisa prazerosa. É um sentimento de plenitude, porque ele preenche uma falta em mim, ele me tira da orfandade, porque me dá um pai, um sentido, uma ordem supra-real que me acolhe e na qual eu fico inserida.  
     Eu vejo algo quando estou tendo uma experiência poética. Eu vejo algo, é uma visão, é uma aparição. Essa experiência toca um lugar em mim onde a lógica não alcança, onde os argumentos racionais não têm ressonância. Não é um argumento que me demove dessa experiência. A pessoa que está tendo uma experiência na ordem da poesia, e isso é uma experiência dada a todos nós, ela diz assim: “Eu sei que é assim, é porque é, é como ver Nossa Senhora”. Não há como demover uma pessoa de uma visão dessa ordem, ela sabe que é assim.   
     E o discurso conotativo, quando eu quero dizer para outra pessoa que tive esta experiência de estranhamento e de beleza diante das coisas, não funciona, o discurso filosófico não adianta nada, nem o discurso doutrinário. Eu preciso, então, para registrar essa experiência, de uma língua nova, de um signo novo, uma ordem que eu chamo ordem simbólica. É isso que vai segurar para mim essa experiência porque a arte, nesse caso, é pura expressão que resolve e que sabe contar o que eu estou sentindo. Por isso a arte, a poesia, qualquer arte (cinema, teatro, pintura) é expressão pura, nunca é um discurso a respeito de alguma coisa. Ela tem de ser a coisa mesma.   
     Nós vamos a um teatro, por exemplo, ou ao cinema e, quando a coisa começa a ficar discursiva, a gente sai, a gente não agüenta, por isso a gente não suporta a arte engajada. A arte engajada é uma idéia tentando ser arte, porque a experiência da beleza pede uma linguagem que é pura expressão. Se uma rosa me comove e eu vou fazer um poema, ele não pode ser a respeito da rosa, porque a rosa eu vou ao jardim e olho para ela, ela já está lá, ela não precisa de um texto que fale a respeito. O poema tem de ser a própria rosa. E há poemas tão perfeitos, tão maravilhosos que as pessoas, às vezes, vão conferir um céu estrelado, depois que viram o céu estrelado no poema. Ou, então, conhecem o mar melhor no texto do que o mar que vêem todo o dia, por causa do poder de simbolização da linguagem poética.  
     Como a Vera já falou, a poesia é, na sua essência última, a revelação do real. Ela é maravilhosa porque ver o real é ver a beleza. Isso não é uma coisa minha. Santo Tomás de Aquino já falava isso. Todo o ser é bom, o que vale dizer todo o ser é belo. Se eu conseguir encontrar a realidade dessa taça, quem vai me mostrar isso não são os meus olhos comuns, não é o discurso da ciência, nem da filosofia a respeito, mas é o discurso da arte. Então, a pintura desse copo vai me mostrar a alma do copo, e essa visão é sempre de beleza. Ela constrange a gente. A beleza é uma coisa constrangedora. Este é o único recado que a arte tem: de me colocar diante da beleza. E beleza é igual à realidade. Isso aqui anula esse preconceito, mais infeliz do que qualquer outro, de que o artista é aquele que tem os pés fora da realidade. É exatamente o contrário: ele é que está centrado no real e que o revela. Eu sinto assim. Tem uns ipês que eu vi nessa viagem minha, uns ipês-brancos que eu nunca tinha visto, assim, dessa maneira, e certas árvores que a gente tem encontrado por aí, que geram angústia, tal é a beleza, que pede expressão. Então, eu preciso de língua para isso, e essa língua é a arte. No meu caso, a poesia. Essa experiência é, no seu substrato íntimo, uma experiência de natureza religiosa. Ela é mística por uma razão muito simples: ela me religa a um centro de natureza inconsciente que me instala numa ordem de pura felicidade. Por que a gente vai a um teatro triste, a um cinema triste? A gente vai para chorar, a gente sabe que é triste, vai e chora, e vai assim mesmo. Não é por causa da tristeza em si, é por causa da informação da tristeza na beleza da obra, é por isso. E a obra toca aquilo em mim onde nada mais toca, ela me comove, ela é dirigida aos afetos, por isso esse poder arrasador da arte.  
     Onde eu aprendi mais sobre educação de filhos foi numa peça de um cubano cujo nome esqueci, infelizmente, chamada A noite dos assassinos. Então, todo o discurso sobre educação de filhos, sobre relacionamento familiar, às vezes discursos tediosos, aquilo foi dito de maneira artística no teatro, e a peça comove, arrasta e desarma. Eu não tenho o que discutir com a obra de arte. Eu discuto com filósofo, eu discuto com político, com toda a ordem de discursos, mas eu não tenho elementos para discutir com a arte, porque ela não permite isso, é uma outra ordem de conhecimento e de abordagem, é a ordem do afeto. O mundo é movido pelos afetos. É o afeto que move o mundo, não é a pura ciência.  
     Essa experiência atinge todos os níveis da realidade física, psicológica, espiritual. É uma experiência que é dada a todo o mundo. A única diferença entre o autor e o leitor é que o autor, supõe-se pelo menos, tem elementos e poder para simbolizar uma experiência. E, quando ele dá o teatro, quando ele dá o cinema, quando ele dá o poema, o leitor fala assim: “Ah, eu sei o que que é isso! Como é que ele sabe o que eu também sei?” É exatamente porque a obra me espelha, é o caráter universal que ela tem. Essa é uma participação no inconsciente coletivo onde nos movemos. A arte me espelha e eu posso falar: “Sou humana, olha lá, a minha experiência verbalizada e simbolizada”. Por isso a arte é tão solidária, é tão fraterna. Ele me salva da angústia de não ter um verbo, o artista tem para mim.  
     Lá em Curitiba, um grupo de teatro fez, numa praça, uma representação com uma bonequinha cantando, uma espécie de fantoche. E tinha pessoas muito simples, com escolaridade muito pequena, vendo o espetáculo. Na hora em que acabou, uma moça perguntou: “Vocês gostaram?” Cada um deu uma opinião e um menino, um gari, que estava lá cuidando do jardim, falou assim: “Eu gostei muito da gesticulação”. Ele falou aquilo de uma forma tão cidadã, ele tornou-se um cidadão quando usou uma palavra pouco usual para ele, porque foi oferecido para ele um signo, uma verbalização da experiência da beleza. Então é isso que a poesia faz.  
     Eu escolhi uns poeminhas, que, espero, ofereçam para vocês uma oportunidade de verificação dessa “teoria” sobre o que eu acho que é poesia.   
  
  



Briga no beco 

  
  

Encontrei meu marido às três horas da tarde  
com uma loura oxidada.  
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.  
Ataquei-os por trás com mão e palavras  
que nunca suspeitei conhecesse.  
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,  
gritei meu urro, a torrente de impropérios.  
Ajuntou gente, escureceu o sol,  
a poeira adensou como cortina.  
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,  
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,  
uivava.  
Gritei, gritei, gritei, até a cratera axaurir-se.  
Quando não pude mais fiquei rígida,   
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,  
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,  
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.  
Desde então faço milagres.   
   
Casamento  
Há mulheres que dizem:  
Meu marido, se quiser pescar, pesque,  
mas que limpe os peixes.  
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,   
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.  
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,  
de vez em quando os cotovelos se esbarram,  
ele fala coisas como “este foi difícil”  
“prateou no ar dando rabanadas”  
e faz o gesto com a mão.  
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez  
atravessa a cozinha como um rio profundo.  
Por fim, os peixes na travessa,  
vamos dormir.  
Coisas prateadas espocam:  
somos noivo e noiva.  
   
A esfinge  
Ofélia tem os cabelos tão pretos  
como quando casou.  
Teve nove filhos, sendo que  
tirante um que é homossexual  
e outro que mexe com drogas,   
os outros vão levando no normal.  
Só mudou o penteado e botou dentes.  
Não perdeu a cintura, nem  
aquele ar de ainda serei feliz,  
inocente e malvada  
na mesma medida que eu,  
que insisto em entender  
a vida de Ofélia e a minha.  
Ainda hoje passou de calça comprida  
a caminho da cidade.  
Os manacás cheiravam  
como se o mundo não fosse o que é.  
Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.  
Não quero contar histórias,  
porque história é excremento do tempo.  
Queria dizer-lhes é que somos eternos,   
eu, Ofélia e os manacás.  
   
Duas horas da tarde no Brasil  
Tanto quanto a vida amo este calor  
esta claridade metafísica,  
este pequeno milagre:  
no ar tórrido os alecrins de seda não se crestam,  
espalmam como os jovens hebreus cantando na fornalha.  
Quem sofre é meu coração,  
às duas horas da tarde quer rezar.  
Quem me chama é Deus?  
É Seu olho centrífugo o que me puxa?  
A vida tão curta e ainda não tenho estilo,  
palavras como astrolábio desviam-me de meus deveres,  
a forma de um nariz por semanas ocupa-me,  
seu jeito triste de fechar a boca.  
A quem amo enfim?  
Acaso fui seduzida pelo Filho do Homem  
e confundo você, mesquinho,   
e confundo você, vaidoso,  
como o que me quer com ele  
gemendo na sua cama de cruz?  
O europeu diz-se aturdido com o desperdício do sol.  
Obrigada, respondo, com vergonha de carnaval,   
de batuques, de meus quadris excessivos.  
Jesus é búlgaro? Afegão? Holandês da colônia?  
Brasileiro não é. Estranhíssimo sim,  
com seu corpo desnudo e perfumado,  
mendigando carinho, igual ao meu.  
Minha pátria, como as outras, tem folclore,  
cantigas cheias de melancolia.  
Como posso aceitar que morreremos?  
E a alma do povo, a quem aproveitaria?  
Frigoríficos são horríveis  
mas devo poetizá-los  
para que nada escape à redenção:  
Frigorífico do Jibóia  
Carne fresca  
Preço jóia  
De novo quero rezar para não ficar estrangeira  
“meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”  
Dizei-me quem sois Vós e quem sou eu,  
dizei-me quem sois Vós e quem sou eu. 
  
  



domingo, 29 de novembro de 2015

ADEUS, NAURO MACHADO



CALENDÁRIO

Tomaste parte em nenhuma outra guerra.
Não perdeste pés ou mãos dentro desta.
Não abriste túmulo em nenhum lugar.
Nada quiseste além dos teus haveres.
Teu país de bois na aurora plantados,
levou-o o tempo na usura do ocaso.
Fizeste nada sábado, domingo,
segunda, terça, quarta, quinta e sexta.
Igual a todos, somaste semanas,
Unindo a noite ao dia e o dia às noites.
Escuta: o tempo passa! E o teu passou.
Passou o bonde, o colégio, a criança.
Já o adulto vai-se: está chegando ao fim
como um ronco doído em cosa podre,
como um enlatado para ninguém.
Made in Brazil. Tonel à água lançado
No porto noite. Minha família! Ó alma.

         Masmorra Didática, 1979


FILA INDIANA

Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros
na perícia dos próprios dramas).

um após do outro, atrás um do outro,
anos após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.


AS PRAGAS

Porque não estive às portas de Madri,
de onde escuto, ainda, o “no pasarán”.
Te abjuro, Senhor, enfim, e a Ti,
a quem, outrora, chamei de pai e bom.

Porque não estive às portas de Madri,
lutando, às claras, com porcos-burgueses,
luto e lutarei, em trevas, por aqui,
Te abjurando, Pai, por milhões de vezes.

Entanto, saibam-no todos, e ouvi
que aos homens-bestas, com meus punhos, sorvo-os
enquanto, ao longe, às portas de Madri,
se erguer, incólume, o sangue dos povos!

         Décimo Divisor Comum, 1972


CAXANGÁ

Há um desespero real na palavra,
um desespero contra o desespero,
enlouquecido em tudo que é palavra
incapaz de dizer o real nela,
e um desespero dentro, um desespero
da palavra assentada na palavra,
de palavra assentada nela mesma,
canal e boca de uma angústia virgem,
de um dia novo contra a noite fora
envolvendo de luto os nomes todos:
Antônio, tênis, sonho, árvores, morte.
Sombra dentro de sombra, mas girando
em rodopio eterno, o pião da sombra,
o que fazer da voz, senão clamar
em uivos de absurda sombra, à noite
geradora de braços e destroços
vagando intérminos no extinto brado?



Morreu na madrugada deste sábado (28) o poeta e escritor maranhense Nauro Machado. Aos 80 anos, ele estava internado desde terça (24) em um hospital em São Luís (Maranhão) em razão de uma hérnia de disco. O velório seria realizado, na Academia Maranhense de Letras ainda neste sábado. O enterro será no domingo (29). Traduzido para o inglês, o francês e o alemão Nauro ganhou prêmios e honrarias, inclusive da Academia Brasileira de Letras. Em agosto, recebeu uma homenagem da Academia Maranhense de Letras pelos seus 80 anos. Com 37 livros publicados, o literário autodidata lançou em novembro de 2014 o último trabalho, "Esôfago Terminal". Inspirado na sua luta para superar um câncer de esôfago, é composto de 284 poemas.




Da doença nasce a poesia: Nauro Machado lança O Esôfago Terminal


SÃO LUÍS – Versos memorizados e, somente depois, postos no papel. Assim foi o processo de criação do novo livro do escritor maranhense Nauro Machado. O Esôfago Terminal reúne poemas pensados durante a internação do literário na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro, enquanto lutava contra um carcinoma no esôfago. O autor, que passou por uma cirurgia, criou 284 poemas sobre enfermidade e morte e, após sair do hospital, recompôs estrofe por estrofe. Em entrevista ao Imirante.com, ele falou sobre a obra que reafirmou qualidades como força e capacidade de memorização.

“Foi escrito durante, aproximadamente, 40 dias. Todo mentalmente. Somente depois passei a mão. Sempre fui assim. Anos atrás, eu perdi o original de um livro chamado Zoologia da Alma. Mandei pelos Correios, e foi extraviado. Eu fiquei desesperado. Consegui reconstituir todo o livro, o que causou a maior surpresa. Vírgula por vírgula o livro foi recomposto”, contou.

Machado ressaltou que escrever poesia sempre foi uma necessidade na sua vida, por isso começou bem cedo, aos 12 anos. “Poesia foi o que sempre fiz na minha vida, a vocação que eu sempre tive. É a justificativa para minha vida que algumas pessoas dizem ser inútil e frustrada. É necessária para a poesia são-luisense” afirma.


Hoje, aos 79 anos, ele entrega uma obra que nasceu do sofrimento no leito de um hospital. O lançamento de O Esôfago Terminal, pela Editora Contraponto, ocorre nesta quarta-feira (12), às 19h, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, na Praia Grande.

aviso - l. ruas



aviso - l. ruas

quando vires o pássaro ferido
vagando antes que surja a madrugada
não o tanjas nem o chames
deixa-o voar. não te apiades
deixa o pássaro voar.
ele comeu a estrela
e conserva no desenho do seu vôo
as dimensões incontidas
dos humildes gestos perdidos para sempre.
não chames o pássaro ferido.
não te ouvirá pois não sabes os seus nomes.
e ninguém há de estancar o vôo
que jorra eternamente
de suas vísceras fecundadas
pela essência intocada da estrela
sua prisioneira e amor.
uma estrela de fogo e de basalto.
de basalto e fogo, não esqueças.
e o pássaro mais ferido pela luz
do que pelas cinco pontas da estrela
sempre voará.
deixa o pássaro voar. quando ouvires
o tatalar – apenas ritmo – cansado
mas não vencido
de suas penas molhadas de arrebol
deixa o pássaro voar. não tentes


http://rogel-samuel.blogspot.com.br/2015/11/l-ruas-aparicao-do-clown.html


sábado, 28 de novembro de 2015

COMO CONHECI O BUDISMO - Rogel Samuel

COMO CONHECI O BUDISMO - Rogel Samuel
Meu primeiro professor de Budismo foi um comunista ateu, meu professor de história no Colégio Estadual do Amazonas e se chamava Rodrigo Otávio. Ele era um orador brilhante. Deu uma aula sobre a vida do Buda, que ele nomeou com todas as letras: “Sidharta Gotama Sakyamuni, o Buda, o Desperto”.
Depois falou das Quatro Nobres Verdades.
Aquilo me impressionou. Nunca esqueci. Lembro-me até hoje. Eu devia ter 15/16 anos. 
Com 18 anos vim para o Rio sozinho fazer o vestibular de letras, morei em sórdidos quartos alugados, quase passei fome, logo comecei a dar aulas no Calabouço, em cursinhos e colégios, sobrevivendo à ditadura militar...
Virei vegetariano, participei da diretoria da Cooperativa dos Vegetarianos, que ficava na Praça Tiradentes, em frente à Sociedade Teosófica, onde morava o recém chegado monge Anurudha.
Um dia, com um grupo de amigos íamos acampar numas grutas no estado do Rio, mas começou a chover e o Genaro Quintanilha nos convidou a mudar de planos e ingressar num retiro “com um certo monge budista” que ia ser realizado em Araruama.
O monge era o Ven. Anurudha e então fomos inscrever-nos.
Chegando lá me impressionou aquele estranho e alto homem quase negro, vestido de manto amarelo, que se curvou à nossa chegada e como ia começar o puja, tivemos de assistir.
O Ven. cantava tristemente os sutras e aquela entoação era verdadeiramente hipnótica, como se viesse do fundo da noite escura de 2500 de história da Índia antiga e evocava um ensinamento e um mestre que saía como que de dentro de nossas próprias mentes...
Sobre o retiro eu conto depois.

POSSÍVEL FRAGMENTO DE ABUL-ATAHIA



JORGE TUFIC

POSSÍVEL FRAGMENTO DE ABUL-ATAHIA

Secos provérbios, distração noturna
à luz de chaves mortas, quanta asneira
move as palavras que não têm peneira
para reter o entulho que repugna.
Que olhos canhestros revistando a furna
da existência banal sequer a poeira
da mais restrita fábula caseira
sabem ver nos pedaços de uma urna?
Textos e sombras ardem neste alpendre
no qual, se dorme o corpo, a alma se vende
e o que foi há-de ser quando será.
Ó provérbios sem nome, quanto adorno,
quanto arabesco nesse vão retorno
do pensamento ao mesmo que virá.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

DOIS ORATÓRIOS

CLARISSE DE OLIVEIRA




Dois Oratórios‏


Na casa onde nasci, em Ipanema, havia um anexo no meu quarto, onde colocaram um Oratorio de Jacarandá.
O Oratório tinha uma cruz em cima, também de madeira negra, e incrustada no vértice do
pé e da madeira horizontal, uma cruz de ágata vermelha.
As portas eram entalhadas com ramagens ornamentais e tinham imagens de bronze incrustadas e também incustações de ágata.
Havia uma espécie de mesa diante de quem se ajoelhava, para apoiar os braços e dentro dessa mesa, eram guardados reliquias, livros de missa, e pães e folhas secas dos dias de
Ramos e Santo Antonio.
Ajoelhava-se num acolchoado de veludo violeta e na parte inferior do santuário, um grande medalhão em bronze com a cena da circunsição de Jesus Cristo.
Da cruz que batia no teto do recinto, pendia uma lamparina bizantina em correntes de prata. A lamparina era cheia com óleo e uma pequena chama boiava numa cruzinha
de papelão encerado.
Da minha cama, no quarto adjunto, eu via a lamparina acesa na escuridão.
Santos antigos em madeira entalhada, santos de porcelana e duas cruzes: uma grande,
em marfim, com Jesus entalhado e outra também em marfim com o Salvador.
A vida de minha mãe se deteriorou com os aluguéis baixos das propriedades, que, naquela época era dificil de serem aumentados e o desquite "com comunhão de bens",
que lhe levou a metade da melhor casa e negação de pensão com a declaração de renda
das proriedades - por isso, o Oratorio foi vendido com seus santos.
Eu senti muita falta do Oratorio...era ali que eu me ajoelhava e rezava, me sentindo oprimida por uma vida familiar totalmente em desacordo com minha sensibilidade.
..............................................
Herdeira, do que restou, eu estava em Madurai, Sul da India.
Visitei muitos templos e minha guia na viagem, perguntava:
- É este?
- Não, ele tem umas montanhas baixas atrás...
Depois de perguntar a um taxista do hotel onde estava hospedada por um templo que tinha umas montanhas baixas atrás, e era consagrado ao deus Shiva, o taxista respondeu:
- Eu sei o que a senhora está dizendo... o templo fica fora da cidade, mas amanhã eu levo a senhora lá...
O taxista me levou... de frente ao templo, eu não vi as montanhas, mas entrei descalça com a cabeça baixa, temendo mais uma decepção...foi então, que das paredes do santuário me chocaram os reflexos saturados de saudade de dois séculos...Tive um choque e comecei a chorar; quando quis me aproximar do altar, os hindús fizeram uma corrente com os corpos para impedir a aproximação maculada de uma ocidental. O altar
tinha imagens enegrecidas pelas fumaças dos tabletes de cânfora e o templo não tinha salas amplas, como o de Menakshe - ficou em minha lembrança na volta ao Brasil, depois de por fotos eu enfim encontrar as baixas rochas atrás do templo, a impressão de algo escuro, como o Oratório de jacarandá, que, segundo constava, pertencera à D. Pedro II, Imperador do Brasil. Prontamente, substitui em minhas preces, o Oratorio pelo recinto do Templo do Subramania, Murunga, Filho do deus Shiva.
Do Livro de Missa com capa em marfim entalhado, composto em Portugal e impresso na
França, por milagre, agora em meu poder, herança de minha avó Clarisse Indio do Brazil:
Livro da Missa e da Confissão
com
Os officios dos domingos
e principais festas do Anno
As Vesperas, Semana Santa, e outras devoções
Edição
Feita sobre a do prior d`Abrantes
Revista, emendada e augmentada
por um lente de Theologia
Aprovado por S.E.R. o Arcebispo primaz de Braga
Pariz
Antiga Casa Morizot
La Place, Sanchez E Ca, Editores
3, Rua Séguier.

Ofertorio
Preparou-se o meu coração para o opprobio e miseria; e esperei que alguem comigo se
contristasse, e não houve quem assim o fizesse. Procurei quem me consolasse, e não achei; antes me deram fel por alimento, e na minha sêde me apresentaram vinagre.
Secreta - Concedei, Senhor, como vos rogamos, que este Dom, offerecido aos olhos de vossa magestade, nos alcance a graça de uma piedade sólida e nos adquira o effeito de uma feliz Eternidade. Por Nosso Senhor Jesus Christo, que convosco vive e reina em unidade de Deus Espirito Santo.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

CIDADES


Cidades
  

Rogel Samuel


 Desta janela vejo a torre da capela, entre as árvores, no sopé da montanha. As magnólias reverdecem. O resto é floresta. Que será aquela igrejinha no meio das árvores da floresta ? Uma grande torre de nuvens se ergue no céu, parecendo mais alta do que as mais altas montanhas. Um aeroplano cruza o espaço. Em Katmandhu, quando o céu está limpo e claro, se podem ver as brancas e grandes geleiras dos Himalaias, ao longe, como uma dentadura de reluzente cristal. Eu quero muito voltar para lá, rever Boudanath e Thamel. Há cidades incorporadas na nossa substância mental : Manaus, Sydney, Katmandhu. E esta Poços de Caldas. As cidades são nossas personalidades edificadas em pavimentos e ares. Um dia, um amigo disse, em Manaus : « Amanhã o R. vai-se sentir em casa » porque eu voltava para Rio. Mas eu não consigo ver o Rio dentro de mim, senão quando estou muito longe. Aí me ocorrem imagens, lembranças, músicas. Marchas de carnaval. A estupa de Jerukhanshor, em Boudanath ; o Teatro Amazonas, em Manaus; a casa do Chris, em Portland; a UBC, em Vancouver. Onde eu realmente gostaria de estar? Não sei, não tenho raízes profundas. Um dia Lothar, em Frankfurt, me disse que ele era cidadão das cidades. Ele era da Mendelshonstrasse, onde morava. Em Manaus, morei na rua Sete de Setembro. Pelas janelas dos fundos se via o Rio Negro. Havia um  gavião que morava num buraco perto do telhado da edificação de uma velha fábrica. Todas as tardes, ao por do sol, eu ia de binóculo vê-lo. Parecia uma águia romana, desafiando o espaço, de asas abertas. Aquela fábrica datava da época da borracha. Ficava nos fundos do cinema que havia nas margens do igarapé, creio que Cine Éden, ex-Alcasar, hoje igreja evangélica. As ruas guardam também muito sofrimento, camadas de lembranças acumuladas e mortes. Como os trechos escuros de Paris. Qual a cidade mais alegre ? Depende de cada um, de suas lembranças. E das magnólias. 


(FOTO DE R. SAMUEL)

SYDNEY


A grande graça de Sydney
Acontece no Showgrow
Os hinos os finos sinos
Os trompetes o amor
Não saio daqui mais não
Sydney levo pra onde eu for
Bem tatuada no peito
Que é de namorar direito
Mais fácil é amar em Sydney
Que sua graça maior
É a liberdade de estar


                  ROGEL SAMUEL

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

ESTRASBURGO, PARIS, MANAUS




ESTRASBURGO, PARIS, MANAUS

Rogel Samuel


A caminho do Aeroporto. De volta ao Brasil. Passando pelo Metrô, ali passamos sempre. A feira, estação Duplex. Paris cinzenta, fria, elegante. Minha estada em Estrasburgo decepciona. Cidade cheia de mendigos. Na Praça Kleber, um MacDonald e outras novidades escandalosas. Placas de anúncios coloridos. Um prédio moderno agride a arquitetura. É a FNAC. Decadência. Desemprego. Prostituição. Dificuldade. A cidade anoitece deserta. Sem alma, sem vida. À noite as cidades exibem suas entranhas. 
A catedral continua um esplendor...
Em Paris, uma  chuva fina molha o chão das ruas, põe as folhas das árvores pensativas. 
Como amazonense,  adoro Paris. Manaus, que era miniatura parisiense. Na minha infância, a Casa Louvre, A la ville de Paris, Café da paz, Au  bon marché, Livraria Palais Royal, Casa Sorbonne, Bijou . "Manaus, pequena Paris". No 'Café da paz', no 'Siroco', sorvetes de creme, em bolas. Taças finas. Em frente, o Teatro Amazonas, um monumento ao esplendor, à glória, ao grandioso e adágio do passado, com seus mortos, suas sobrecasacas, seus vestidos de seda rósea, as luvas, deslumbramento dos múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de reluzente e vívido ouro muito louco, Manaus rica, copia Paris. Comerciantes riquíssimos. Ostenta o Teatro Amazonas os seus reflexos de cristal. Milionários dedos jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, atleta, estípite. O enxalso, o frontão de canela. Galilé. Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias. Bissoc. Pâtisserie. Du sucre, des fruits, de la crème. A la ville de Paris, Au bon marché, Quartier du temple, Casa Louvre, Livraria Palais Royal na rua Municipal, n0 85,  Livraria Universal, Agência Freitas, Casa Sorbonne dentro do Grande Hotel, a Confeitaria Bijou, a Padaria Progresso. Faroletes de pedra de morona e de puraquequara. Villa Fany. Cais dos Barés, Biblioteca Provincial. Um Serviço Telefônico serve a cidade. Manaus, a  primeira cidade brasileira a ter eletricidade. Calçadas da Praça São Sebastião, em pedras portuguesas pretas e brancas, em ondas, alegorizavam o 'encontro das águas' Negro e Solimões (posteriormente imitadas na praia de Copacabana). Bondes elétricos da Manaus-traways. Veuve Clicquot, truffes, champignon. Huntley & Palmers, Cross & Blackwell. A Cork, a Pilsen, o Bordeaux, o fiambre, o Queijo da Serra da Estrella. Lagostas, a Goiabada Christalizada. Charteuse, Anizette. Champagne Duc de Reims. O Vermouth. Água de Vichy. Leite dos Alpes Suíços. Casacas inglesas, o H. J., o pongê, o filó. Bengalas, castão de ouro. Cartolas, luvas, perfumes franceses, lenços de seda. Pistolas de prata e cabo de marfim. Gramophones de Victor. Discos duplos de Caruso. Casas aviadoras. Manaus-Harbour. Tabuleiro de Xadrez. Óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia. A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária. Vidros de Quinino Labarraque. Óleo de Fígado de Bacalhau. Vinho Silva Araújo. Regulador da Madre. Pílulas Rosadas. Café Beirão. Winchesters, cabo encerado de mogno. Asilo de Mendicidade (construído pelo Comendador). Ponte da Imperatriz, Igarapé da Cachoeira Grande. A Serraria, no Igarapé do Espírito Santo. Banhos de no Igarapé das Sete Cacimbas. Buritizal. Jogos, no Parque Amazonense. Ida a Barcelos. Noite no Jirau. Muro do Leprosário do Aleixo. Vista da Bomba d’Água. Manaus-Belém, Manaus-Santa Isabel, Manaus-Iquitos, Manaus-Marari, Manaus-Santo Antônio do Madeira, Manaus-Belém-¬Baião. Gonçalves Dias no Hotel Cassina. Coelho Neto no palacete da rua Epaminondas. Euclides da Cunha no chalé da Villa Municipal. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se o Teatro Amazonas, em 1896 - a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária, importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da altura de um homem, tapetes persas - tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de firma americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil mansões luxuosas.  Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O Teatro custou 10 mil vidas. Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil,  com cursos de Direito, Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras... 
Annie quis passear no Jardin du Luxembourg, no dia de minha partida. No caminho, passando pela feira livre, debaixo da estação Duplex do Metrô, encontro um CD desconhecido de Nelson Freire. Andamos pelo bosque. A música dos tempos me hipnotizam, me transfiruram, me atordoa. Em pleno delírio, vôo. O Brasil logo ali, ao alcance da mão. 

domingo, 22 de novembro de 2015

Quem está preso a uma estrela



Quem está preso a uma estrela


Rogel Samuel


Disse Leonardo da Vinci: 
“Quem está preso a uma estrela não anda para trás”, no sentido de que não entra em decadência, no sentido de que consegue completar e triunfar com toda a glória tudo o que começou, todos os seus projetos, todas as belas coisas por que se inflamou. Significa que consegue trazer à tona, “trazer à luz do dia, de modo puro e formulado, os contornos do conteúdo vislumbrado” (Bloch).
Isso se aplica aos gênios como Leonardo, e aos povos. Mas também se aplica aos mortais como nós, aos nossos desejos, como escreveu o jovem Goethe: “Desejos são pressentimentos das capacidades que estão dentro de nós, prenúncios do que seremos capazes de realizar”.
É quando esses atos prospectivos trabalham em nosso favor e obtém êxito  “a partir da tremenda expectativa que deles se apoderou, a partir da afinidade com a estrela que ainda se encontra abaixo da linha do horizonte. A partir do futuro. É quando “a água que eu toco jamais foi navegada” de Dante. Citações  todas do princípio esperança de Bloch que reúne juventude, mudança, produtividade, não com arrogância, mas com a visão do que deve ocorrer nas ocasiões da criação.       

AS NUVENS


As Nuvens

BILAC

Nuvem, que me consolas e contristas,
Tenho o teu gênio e o teu labor ingrato:
Essas arquiteturas imprevistas
São como as construções em que me mato...


Nunca vemos, misérrimos artistas,
A vitória deste ímpeto insensato:
A um sopro benfazejo, que conquistas!
A um hálito cruel, que desbarato!


Nuvens de terra e céu, brincos do vento, 
Vai-se-nos breve a essência no ar varrida... 
Irmã, que importa? ao menos, num momento,


No fastígio falaz da nossa lida, 
Tu, nas miragens, e eu, no pensamento, 
Somos a força e a afirmação da Vida!

sábado, 21 de novembro de 2015

FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS





Lucilene Gomes Lima


FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas

http://ociclodaborracha.blogspot.com.br/

O ficcionista e ensaísta Jorge Tufic, ao fazer um levantamento da produção ficcional sobre o “ciclo da borracha”, declara que A selva e La voragine, obra do romancista José Eustásio Rivera, encerrariam essa produção e destaca que as obras do ciclo não atingiram “um vago contorno geral da realidade em causa”.[151] Há, na avaliação do autor primeiramente, uma falha ao não considerar um veio de produção que continuou aberto para a temática do ciclo e, em segundo lugar, um juízo precoce sobre o grau de aprofundamento das obras.

            Ao destacarmos A selva como um romance que, seguindo a linha da abordagem histórica do ciclo, propicia uma compreensão abrangente do tema, não desconsideramos que em outros romances, como, por exemplo, Coronel de barranco, ocorra também uma construção ficcional contundente. O tratamento dado à obra em relação ao ciclo recebe o mesmo detalhamento didático de A selva. A selva e  Coronel de barranco são, por isso, dois romances em que a realidade em causa – “o ciclo da borracha” – é tratada com aprofundamento. Entretanto, a obra de Ferreira de Castro apresenta um diferencial em relação à de Araújo Lima que nos levou a elegê-la como recorte para esse estudo. Seu protagonista é partícipe e analista no mundo do seringal, enquanto Matias, de Coronel de barranco, é basicamente analista. O fato de ser Alberto um protagonista que vive as próprias situações que analisa confere densidade à narrativa através do embate que se cria entre sua consciência e o sistema com o qual se depara.

Tufic também observa que o romance La voragine diverge de A selva por possuir um caráter de libelo ou revolta enquanto o último somente relataria os dramas vividos no seringal. Embora não possa se assemelhar a um libelo, a abordagem do romance A selva denuncia a extorsão e a escravidão num seringal amazônico e seu desfecho propõe uma destruição desse sistema injusto, determinando também um sentido de revolta. Revolta que não é arquitetada nem praticada por seringueiros indignados. O fato de essa revolta ser praticada por uma personagem negra demonstra que a visão de mundo do autor, expressa pelas suas palavras de que em seu espírito sobrepõe-se “[...]‘uma causa mais forte, uma razão maior: a da humanidade’ ”[152], não tem como objetivo pôr em evidência apenas uma forma de injustiça. O negro Tiago, despojo de outro processo de espoliação é, por isso, o escolhido para pôr fim ao local que representa a injustiça (o barracão) e o elemento humano que a executa (o seringalista). Suas palavras de justificativa do ato que pratica surtem o efeito de uma sentença: “O homem é livre.”[153] A destruição não é eficiente, uma vez que o seringalista é apenas um elo, e inclusive o não mais poderoso, da grande cadeia de espoliação montada em vista da extração do látex, mas é a destruição que o romancista elege como possível no contexto em que se desenvolve o romance.
            Apesar de possuir características em consonância com o romance neo-realista português o qual recebe influência da ficção sócio-realista brasileira dos anos 30[154], A selva apresenta os pontos básicos do que Alfredo Bosi considera um romance de tensão crítica em oposição a um romance de tensão mínima, mais em acorde com a prosa neo-realista. Segundo o autor, o romance de tensão crítica alcança “uma verdade histórica muito mais profunda”, não se restringindo apenas a enfocar a cor local ou datar os fatos.[155]
            É, pois, A selva um romance que não se limita à perspectiva de enfocar fatos isolados característicos do ciclo e que procura concentrá-los e organizá-los sistematizando-os. Abrangendo tanto o centro quanto a margem, a narrativa demonstra o nexo causal entre eles. Não aleatoriamente, Alberto vive antes a experiência do centro e depois a da margem. Quando vem a se instalar na margem, já não é mais possível considerá-la sem a outra experiência. A manipulação do contas-correntes do seringal o põe a par de uma verdade que suspeitara ao receber a nota de seu aviamento e compará-la com a dos outros seringueiros no tempo em que ainda era um brabo como eles. As faturas lançadas evidenciam que os débitos dos seringueiros e o conseqüente crédito para Juca Tristão resultam de uma cobrança extorsiva do preço da mercadoria aviada e de um pagamento ínfimo pela produção da borracha, depois vendida a um alto preço. Paralelamente, toma conhecimento de que o trabalho não pago dos seringueiros proporciona as altas despesas do seringalista.

14ª EDIÇÃO


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

FERREIRA


O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE - NEUZA MACHADO

http://ofogodalabaredadaserpente.blogspot.com.br/

O capítulo intitulado CINCO: FERREIRA é uma referência ao personagem Antônio Ferreira, advogado, “agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho” [Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, seu sogro], (...) “um menino”, um “meninão branco, mãos delicadamente tratadas, cabelos anelados, negros, caindo aos cachos sobre os aros de ouro dos óculos”. Antônio Ferreira aglutina em si todos os aventureiros-espertalhões que transitaram por Manaus nos anos iniciais do progresso amazônico, e ali enriqueceram (muitos, por intermédio de casamentos por conveniência).
O capítulo processa-se por meio do discurso da duração atuante (o que os críticos, avaliadores de grandes epopéias, denominam como presente histórico). O advogado Ferreira é/será um elo importante para o desenrolar do relato ficcional, porque, por exigências do narrar pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, sua figura fará parte dos personagens/“corruptos” mais leais “ao tipo de capitalismo ali praticado, na época”. Somente este personagem, aparentemente passageiro ao longo do romance, ofereceria matéria importante sobre o assunto que ora está a movimentar-me, neste meu capítulo sobre o Capitalismo Primitivo do Império Amazônico em oposição aos Limites Ilimitados do Manixi Ficcional. Entretanto, o personagem de valia às minhas reflexões é Pierre Bataillon, inserido, por sua vez, no reduto dilatado do personagem maior da ficção rogeliana: o Seringal Manixi.
Ao idealizar ficcionalmente o personagem Pierre Bataillon, o senhor das terras do Manixi (a ilimitada, inominável, espetacular dimensão ficcional deste primeiro espaço geográfico de O Amante das Amazonas), o ficcionista de origem manauara o colocou em uma realidade extravital, oriunda de um imaginário-em-aberto dimensionado, caracterizando assim o pano de fundo das narrativas da pós-modernidade, propensas à manifestação de cenários grandiosos (aquilo que os críticos atuais chamam de simulacro ficcional).
Sobre esta minha adesão a um ponto de vista crítico abrangente, interdisciplinar (recuperado de diretrizes fenomenológicas, para interagir com a representação do poder político de Pierre Bataillon e com a dimensão extraordinária do Manixi, enquanto espaço geográfico ficcional diferenciado e, ao mesmo tempo, submisso às regras do Capitalismo Primitivo de base familiar do início do século XX, que por ali imperava, exercendo, por conseguinte, poderes de vida e de morte), será válido lembrar, aqui, a indução teórico-crítica de Roberto Machado, em sua “Introdução: Por uma genealogia do Poder”, sobre a “teoria geral do poder” de Michel Foucault, percebida como importante na nona edição brasileira de Microfísica do Poder.

LIVRO ESGOTADO DE R. SAMUEL


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O PALÁCIO NAS SELVAS


Lucilene Gomes Lima - FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas

Um dos pontos mais marcantes nos estudos históricos e na ficção do ciclo, o elemento que se caracteriza como o explorador, é retomado em O amante das amazonas sob um olhar distinto daquele que se convencionou na maioria das obras ficcionais. O que se torna central no romance não é a abordagem maniqueísta em torno desse elemento, mas sua relação com um processo econômico mais abrangente do que a monocultura local. No romance, a personagem Pierrre Bataillon, proprietário do seringal Manixi, em nada se assemelha às tradicionais personagens de seringalistas. Divergindo dessas personagens, Pierre representa uma linhagem “[...] nobre, neto de Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas [...]”,[223] vivendo como um “[...]fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo e de muitos livros [...]”.[224] Pierre não significa apenas o oposto do arrivista bronco enriquecido, seus hábitos e o palácio que constrói no meio da selva sintetizam o aspecto voraz do capital internacional e da cultura estrangeira, impondo sua hegemonia sobre a cultura local através de uma ostentação delirante e esquizofrênica:

 [...] O palácio era imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, com um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Begonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon [...] no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapé – e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte – cariátides, capitéis, folhagens da selva ...[...][225]

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A morte é a curva da estrada,



Fernando Pessoa




A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te oiço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.

Fernando Pessoa dobrou a curva da estrada em 30.11.1935. 
Continua, porém, a ser "visto" .

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

VASCO CABRAL



Vasco Cabral (Guiné-Bissau)

ESPERANÇA









É como se alguém me pisasse
e eu me risse
- uma alegria toda cor e luz.

É como se alguém me batesse
e eu cantasse
- um canto de amizade e paz.

É como se alguém me cuspisse
e eu passasse indiferente
- um caminho claro como o dia.

É como se alguém me apunhalasse
e eu o abraçasse
- um fogo de fraternidade humana.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
este vício secreto e interior
esta badalada do relógio da alma
este pulsar no coração do mundo
esta consciência duma ferida em chaga
este sentir a dor duma mulher pobre e faminta.

Eu sei o teu nome, eu sei o teu nome
Ó silencioso grito dos camponeses sem terra!
Ó vento da certeza que os carrascos temem!


Vasco Cabral, A luta é a minha primavera
in 50 Poetas Africanos, org. Manuel Ferreira
Vasco Cabral viveu entre 1926 e 2005 e é poeta da Guiné-Bissau.


Foi guerrilheiro do PAIGCV e politico eminente após a independência da Guiné, em 1974.

Em 1926 VASCO CABRAL nasce em Farim, no norte da Guiné-Bissau. - 1949: Participa, activamente, na campanha de Norton de Matos, candidato da Oposição anti-salazarista à presidência da República Portuguesa. - 1950: Conclui, em Lisboa, o curso de Ciências Económicas e Financeiras. - 1953: Em Bucareste, participa no IV Festival Mundial da Juventude; é preso ao regressar a Lisboa e só é libertado cinco anos depois. - 1956:Amílcar Cabral funda, em Bissau, o PAIGC, Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde. - 1957: Em Pidjiguiti, porto de Bissau, a tropa colonialista massacra 50 marinheiros e estivadores que reclamam aumento de salários. - 1961: Militante comunista, em Portugal Vasco Cabral passa à clandestinidade. - 1962: Numa fuga organizada pelo PCP, Vasco Cabral, juntamente com o angolano Agostinho Neto, de barco alcança Tânger. Ruma para o sul e vai procurar Amílcar Cabral para aderir ao PAIGC e lutar pela independência da Guiné-Bissau. - 1963: Início da luta armada na Guiné-Bissau. - 1973: A 20 de Janeiro, um bando de militantes do PAIGC, manipulado pela tropa colonial portuguesa, em Conakry assassina Amílcar Cabral. Vasco Cabral escapa por um triz ao atentado e não desistirá de perseguir os assassinos até conseguir a sua execução. - 1974: Em Portugal, a 25 de Abril, o MFA (Movimento das Forças Armadas) derruba o governo de Marcelo Caetano, sucessor de Salazar; no mesmo ano Portugal reconhece a independência da Guiné-Bissau, cujo primeiro presidente será Luís Cabral, irmão de Amílcar. - 1975: Portugal reconhece a independência de Cabo Verde, cujo primeiro presidente será Aristides Pereira. - 1980: Nino Vieira dá um golpe de Estado; o presidente Luís Cabral vai desterrado para Lisboa. Vasco Cabral não se opõe ao golpe. - De 1974 a 2004: Vasco Cabral, no Governo guineense, é ministro da Economia e Finanças, coordenador de Economia e Planeamento, ministro de Estado da Justiça e membro do Conselho de Estado. Será também vice-presidente da República. - 2005: A 24 de Agosto Vasco Cabral morre em Bissau.

Fonte da biografia e foto: www.vidaslusofonas.pt/

Rogel Samuel: Qualquer que seja a chuva desses campos




Frio. Dias escuros, chuvosos e frios. Mas a Primavera virá. O sol vai luzir no céu.

Rogel Samuel: Qualquer que seja a chuva desses campos

Há um soneto de Jorge de Lima que releio sempre, que não me canso de lembrar e que assim canta:

“Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas”.

Jorge de Lima, Invenção de Orfeu - Canto I – XXVI


Se tudo estiver bem, lembre-se de que tempos piores podem advir: “Qualquer que seja a chuva desses campos / devemos esperar pelos estios”. E quando a época ruim chegar, devemos contentar-nos com os sonhos. O poeta está sendo pessimista, espera os danos futuros. Pensa em não conseguir o amor sonhado, imortal: “Porém se não surgir o que sonhamos / e os ninhos imortais forem vazios, / há de haver pelo menos por ali / os pássaros que nós idealizamos”.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

sábado, 14 de novembro de 2015

Paris

Paris

Rogel Samuel


Havia uma chuva fina que molha o chão das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores àquela em Paris chovia sempre. Como adoro Paris, sonhei morar em Paris. Mas minha amiga Annie morreu, perdi o interesse. Annie está na foto.
“Somos morte”, diz “O livro do desassossego” de Pessoa. “Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real...” (p. 191). Sono foi o que ele escreveu, não sonho.
Cheguei a discutir com Annie minha mudança para Paris. Alugaria um estúdio no subúrbio, mas teria Annie por perto.
Não tão longe – algumas horas de trem - estaria Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Acordaria ao som de seus sinos, de seus hinos, de seus pinos, de sua imaginação. A catedral, maior do que a própria cidade. 
Um dia, estando em Frankfurt, em casa de amigos, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E o amigo respondeu: "Eu levo você".
Fomos, que era domingo.
Não sei se voltarei a ver e ouvir o relógio da Catedral de Estrasburgo. Naquele dia esperei dar 6 horas da tarde na Catedral.  A primeira coisa que acontece é abrir-se uma portinhola e dali sair  a Morte em pessoa: um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte com uma foice, que bate com um  martelo num sininho. Aquilo ecoa por toda a nave da igreja. É a hora da Morte. O passar do tempo. E o grande sino da Igreja responde, solene. Grave. 
Chove sempre que estou em Paris.
Com Annie Gerault, que não tinha medo de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des  Minimes", sob chuva forte, à noite. Fomos procurar um centro de budismo.
Mas Annie morava na Rue Fondary, não longe da Torre Eiffel.
Um dia saímos a ver a nova iluminação da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du Luxembourg.
Como carioca, logo pensei em assalto. O jardim estava deserto, a sensação era de calma.
Lembrei-me então: não estávamos no Rio.

         Não sei se voltarei a Paris. Estou velho, e solitário.
         Paris só sorri, só se serve acompanhado. E jovem. Como naquele outro tempo, quando tomei um porre de champanha no Café Flore. E depois saímos cantando pela rua deserta.
        
Hoje tudo mudou. Eu mudei, Paris mudou. Até assalto acontece em Paris.
         O mundo deu saltos para trás. O relógio do tempo expõe seu bonequinho mecânico da Morte, a fugacidade do tempo.
         A morte ali é um esqueleto com uma foice. O esqueleto toca um sininho, de som fino e penetrante.
Acordo, já não somos jovens.
O grave som do rugido animalesco do grande órgão da catedral abre os ares, as asas dos ares. O mundo se despedaça no horizonte, assustando as aves, anunciando a noite. 

         Talvez haja uma chuva fina, atapetando as calçadas. Eu tomaria um expresso no mesmo bar, acompanhado de um ovo cozido. Desceria a rua até o Metrô. E partiria para o mundo.