quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

TRÊS PALAVRAS



TRÊS PALAVRAS - Rogel Samuel

               Quando ouvi aquela belíssima canção, vinha atravessando o Largo do Machado.
               Nada mais pesadão, cafona, sentimental e antiquado do que as “Três palabras”, de Osvaldo Farrés.
                Mas nada mais belo.
               Bela simplicidade, breve, minimal, essencial. Clássico. É daqueles boleros que ninguém sabe por que nunca deixamos de ouvir, de amar. Todo cantor que se preze pode interpretá-lo com novas nuances, novas roupagens, novas colorações, novo tempo.
               Quando ouvi aquela belíssima canção, vinha atravessando o Largo do Machado.
               Era um cantor popular que fazia vender seu disco, que comprei: Rômulo de Alencar, se chamava. Um senhor magro, de cabelos brancos, e o CD independente tem, como única identificação, seu telefone celular: (21)9517-5683.
               Os boleros como “Três palavras” de Osvaldo Garrés foram interpretados por grandes nomes como Nat King Cole, Doris Day, Bing Crosby, Johnny Mathis, Maurice Chevalier, Plácido Domingo, Edith Piaff, Katina Ranieri, Pedro Vargas, Toña La Negra, Lucho Gatica, Olga Guillot, Sarita Montiel.
               Mas nunca me pareceu tão surpreendente belo como na voz de velho do sr. Rômulo de Alencar. Talvez devido ao tempo adotado, lento, à interpretação dolorida, funda, vinda do profundo do obscuro som. Sem recursos, pura paixão, sua voz de velho fez ali o essencial modular da dor e do amor.
               Os boleros de Osvaldo Garrés continuam sendo ouvidos e sempre que acontecer o aparecimento de um cantor como Caetano poderão acender as chamas dos nossos corações.
               Osvaldo Farrés, que passou residir nos EUA em 1962, nasceu em Quemado de Guines, Cuba, em 13 de janeiro de 1902, e faleceu em Nova Jersey, EUA, em 22 de dezembro de 1985. Foi carteiro, estofador, decorador, vidraceiro e pintor de paisagens. Teve um programa de rádio (que depois chegou à televisão) chamado "Bar melódico de Osvaldo Farrés", pelo qual passavam os artistas cubanos dos anos 50. Assim começa:

Oye la confesión
de mi secreto,
nace de un corazón
que está desierto.

               O texto começa com uma confissão de amor (“ouça a confissão”). Que é um segredo, e o transforma num enigma. “Ouça a confissão de meu segredo”, diz o autor, nas três primeiras palavras. O “segredo” impõe o clima de intimidade, de lirismo absoluto, de útero, se se pudesse dizer. Não é “só” a confissão de amor, mas de um amor secreto. Os amores secretos são os de que não se podem falar, não se podem publicar, não se podem explicitar. São os proibidos, os imorais, os ilegais, os proscritos, os míseros. Perseguidos pela polícia, pela sociedade, quando se transformam o amantes em terroristas, quando eles se encontram na vida com amor e com ódio, no vão da morte se encontram escondidos. São os maiores, os mais fundos, os mais graves. Os que nascem de “um coração que está deserto”. Ou seja, os que nascem no deserto.

Con tres palabras
te diré todas mis cosas,
cosas del corazón
que son preciosas.

               O amado profere que bastam três palavras para ele, que com três palavras apenas ele conseguirá atingir o coração da matéria, da materialidade amante, da substancialidade amorosa da vida. Por que todas as “suas coisas” residem unicamente ali, em três palavras, que resumem, que unificam, que sintetizam, que manifestam todo seu universo interno (o deserto), que são “as coisas do coração”, “as coisas preciosas”.

Dame tus manos, ven,
toma las mías
que te voy a confiar
las ansias mías.

               E diz “dá-me tuas mãos” que está pedindo socorro, ou seja, preciso de ti, socorre-me e “vem”. Não existe força maior de amor do que a forma verbal: “vem!” “Dá-me tuas mãos, vem, toma as minhas”. Não só pede, como oferece o socorro amante. E o poder crucial dessa união, dessa confissão, desse segredo, está no “confiar”, “que te vou confiar as minhas ânsias”. Confiar é ter confiança, ter fé, esperar, acreditar, pôr confiança, ter esperança em alguém. Mas é também comunicar, transmitir em confiança. Daí o confidenciar, o entregar-se em confiança, o fiar. Em quem mais se pode ter confiança? Sim, porque o amante é um crédulo, ele acredita. Que depois de dizer: “Ouça a confissão de meu segredo”, diz: “Somente minhas angústias”. Ou seja: há dúvidas, não há certeza, não há paz.

Son tres palabras,
solamente mis angustias,
y esas palabras son:
cómo me gustas.

               A emoção solitária, isolada, o clima de intimidade, a confissão as frases soltas, a alma solta, as palavras e sugestões imprecisas, mais musicais do que idéias. A poesia pode comunicar-se na sua musicalidade, mais sentida do que compreendida. Pois na música está o elemento significativo essencial dos amantes.
                Aquela belíssima canção vinha atravessando o Largo do Machado.

(NA FOTO, CLARISSE DE OLIVEIRA)

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

GENESINO BRAGA por ROGEL SAMUEL



GENESINO BRAGA por ROGEL SAMUEL


Nas mais antigas lembranças que guardo de G. B. eu era criança e ouvia a voz e suas sonoras gargalhadas já deitado no meu quarto no meio da noite: ele e sua esposa Dinoralva iam jogar cartas na casa de meus pais até tarde da noite – algumas vezes eles vinham, outras vezes eram meus pais que iam na casa dos Bragas.
Ainda hoje guardo (e uso) a caneta Parker 51 que me deu como padrinho de crismas. No meu aniversário ele não trazia brinquedos como todo mundo, mas livros de Monteiro Lobato e mais tarde a antologia que prezo ate hoje – “Obras primas da poesia universal”, de Sergio Milliet da Editora Martins.    
Fui um dos revisores tipográficos da primeira edição do seu “Fastigio e sensibilidade do Amazonas de ontem”. 
Ele era um homem extraordinário, tocava cavaquinho e gostava dos amigos. Dava grandes festas, a que acorria muita gente e era um anfitrião animado. Foi diretor do Rio Negro. 
Escreveu muito, mais de 1100 crônicas que ainda estão nos jornais de Manaus e correm o risco de se perder. Principalmente no “Jornal do Comércio”. Algumas são pura poesia. 
Ele era um homem que abria um vasto sorriso com facilidade. Era meu pai espiritual e eu o acompanhei durante sua vida literária e jornalística. Com 18 anos vim para o Rio de Janeiro, mas sempre o visitava quando ia a Manaus.  Estive presente no Rio de Janeiro quando ele recebeu a Medalha de Mérito da Ordem dos Velhos Jornalistas; estive no hospital em Belo Horizonte quando operou os olhos; e o visitei perto do fim de sua vida, quando já não falava, vítima de um AVC. Ele nasceu em 6 de dezembro de 1906 em Santarém, no Pará; e faleceu com 81 anos de idade em Manaus, em 19 de junho de 1988.
Foi jornalista, cronista, professor universitário, bibliotecário, diretor da Biblioteca Pública do Estado por muitos anos, membro do Conselho Estadual de Cultura e da Comissão Permanente de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Amazonas, redator oficial do Gabinete do Governador do Estado e integrante do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia - Inpa. 
Curiosamente, em 1935 elegeu-se Deputado à Assembléia Legislativa do Estado. 
É nome de rua, desde aquela época, no Japiim, em Manaus; membro da Academia Amazonense de Letras (desde 1951/1952); membro da  comissão de reforma do Teatro Amazonas no  governo João Walter de Andrade (1971-1974), de cujo gabinete era redator especial. 
Como jornalista começou em 1927, no Jornal do Comércio, onde escreveu por mais de vinte anos. Recebeu a Medalha do Mérito Jornalístico (1971), participou da fundação da Associação Amazonense de Imprensa (1937), e foi escolhido jornalista do ano em 1965 e 1973, em eleição pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas. 
Recebeu está a Medalha Machado de Assis da  Academia Brasileira de Letras. Sua biblioteca pessoal tinha livros autografados por grandes nomes da literatura brasileira e ele era amigo de Álvaro Maia. 
Escreveu: “Nascença e vivência da Biblioteca do Amazonas”, (1957), que eu digitalizei e está integralmente online no nosso LIVROS ON-LINE e no nosso blog; “Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem” (1960), editora Sérgio Cardoso; “Chão e graça de Manaus”, (1975) ; “Assim nasceu o Ideal Clube”; e “Lampejos de um cronista” (post-mortem), compilado pelo filho Carlos Genésio em 1992. 
Faleceu em Manaus em 19 de junho de 1988, aos 81 anos de idade.
Ele amava a vida. Quando vinha ao Rio, fazia questão de tomar um chopp no Amarelinho na Cinelândia com sua esposa, onde o acompanhei.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

A PANTERA 6 - ROGEL SAMUEL


A PANTERA 6 - ROGEL SAMUEL

Acrescentar eu devo que prosseguindo mudos naquela direção o dia inteiro do pico ainda estávamos distante ao anoitecer; e não mais senti a presença negra da pantera nos perseguindo, quando os olhos ao céu dirigindo vemos clarões brilhar como relâmpagos mudos e lumes dois ou três que a terra estremeciam e aí vejo que de Jara os olhos se assustaram, e ligeira logo se fez. E assim deparamos com uma pequena planície onde havia montículos de terra que pensei serem túmulos rasos. Mas “não”, disse-me Jara (pois se fossem os animais já teriam descobertos), e encontro sacolas de dinheiro e mochilas com armas e vestimentas, sapatos e botas e comida tudo envolvido em plásticos. Eu me aproprio das utilidades, visto-me de casaco e botas, encho um saco de maços de dinheiro, armas e um cantil. Ao que um terrível urro nós ouvimos da pantera que chegava que toquei nas armas ao que Jara me conteve, e já ela vestida de soldado e armada de faca e de fuzil me parecia protegida. E depois de revistar todos os montes e de umas mochilas que nos apropriamos, assim Jara partiu e eu a segui somente ao primeiros passos logo sentimos o peso da carga recebida, e sendo assim Jara e eu entramos na floresta que rara se fazia, e caminhamos por alguns dias subindo a encosta da montanha lentamente e passando ao mais alto, mas Jara revelava que aqueles sítios todos antes conhecera.
Do medo a cor que o gesto me alterara ao ver que aparecia, na ponta da planície, marchando célere em nossa direção, aquela pantera mas Jara, como escutando, espreita e me diz: ”quer ela nos atalhar e nos levar nesta direção” que aponta naquela direção antiga e de subida, - “é mister vencer nesta porfia”, - e da pantera a marcha acelerada nos adiantou e de lá saímos, buscando o alto da montanha, que é raro o parecer, e um ensejo de nos fazer guiar pelo caminho que entre abismos nos comunica. Ali, porém, já fui que a inimiga pantera constrangia-nos a fazer essa jornada. Que pensei, e pensando disse para Jara, que agora poderíamos fazer, para das sombras nos tirar dos seus precitos, com as armas de que agora dispúnhamos poderíamos a fera abater a tiros: “Esta é a pior solução” - dizendo ela, voltou-se para mim – e usando uma expressão nova: “esforça-te, querido, eu também sei o caminho que da grande batalha vai nos afastar” – “este paul que a fera cheira é o circundo da guerra e o tormento que de entrar já não podemos sem ira” – e não me lembro o que mais disse o pensamento e o olhar pondo no cimo chamejante que os olhos me prendia, vi que estava atenta, pois de lá longe o aspecto de horripilante explosões sucessivas que o chão estremecia, que com as unhas a pantera a terra arranhava e com suas patas o solo rebatia e com tal brado que à guerreira me acerquei de pavor cheio. Ela volta a face de fúlgida luz o rosto farto conserva a calma a encarar-me, transformando-se numa sorte de deusa e as mãos juntando às minhas mãos e os olhos no fundo dos meus olhos a amparar-me dessa arte, e logo um tufão distante fremiu impetuoso que de ardores explosivos se cercando, sem pausa fere a terra, que se abria como em leques de sonoridades entre nuvens de pó alevantando e após o mundo se cobriu de um estranho silêncio, mudo e quieto, mundo derradeiro e deserto que vem da insânia rara.

sábado, 26 de dezembro de 2015

A PANTERA 5



 A PANTERA 5

ROGEL SAMUEL

“E então” – disse-me ela – “vou em busca de alguma caça”. Mas da pantera o suspiro rouco ouvindo: “Não” – me diz – “se desvaneça o susto. Ela nada fará contra você, em si mesma consome o seu furor injusto” e, com a flecha uma espécie de pássaro abatendo que no alto voava que baqueou por terra a ave abatida, - mas de repente, com uma onda do mar se embatendo, e quebrando-se espumante, assim uma turba de aves negras se albaroa, aves em cópia, quase do céu escurecendo parte, nunca vistas antes, fardos de um lado e outro em grita ingente, rolando com suas asas ofegantes, como de um grande mal temidas e em volteios sem rumo assim no teto em círculo volteando que iam ao ponto oposto de todo o espaço nos semicírculos: - “Que são?” – a Jara perguntei, “que razão há para aqui estarem?” E ela respondeu: -“Não sei, de algo muito terrível estão fugindo!”. 
No dia seguinte me acordou ela e disse: “Desçamos agora e vamos esquivos, nossa demora aqui é perigosa”. E nossos passos da árvore onde nos abrigamos até uma fonte onde bebemos. Ali de uma fenda as águas brotam como se a alguma torrente e a sede saciamos e ao longo do seu curso nós baixamos, por caminho tão diversos nos movendo, até uma lagoa deparamos junto à encosta do triste ribeiro, que notamos dali seguira para um pântano, onde a tristeza morava, e portanto atravessamos e voltamos a subir o que seria uma vende encosta em direção ao vértice de um lugar mais fresco e longínquo da mais alta montanha.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

PRAZERES DE VERÃO


PRAZERES DE VERÃO

Rogel Samuel

Há quem escreva poemas contos novelas. Eu escrevo crônicas. Tenho alguns leitores. Há, também, quem escreva tratados. Quem deixou de escrever. Quem vá à praia. Bronzear-se. O Rio é balneário. Verões de sol. E de chuvas. Ainda bem. Achei um tempo para ir à praia. Antes, ia diariamente. Gostava do Pier, como todo mundo. Agora vou à Praia Vermelha, que não é comunista, nem lembra a Praça. Cercada de quartéis. Foi lá que a vi. Recentemente.

*   *   *

Conheço um maestro pela Quarta Sinfonia de Brahms. Ela diz quem é quem. Bruno Walter, com a Columbia Symphony Orchestra. Um mestre. Consegue a dimensão suprema. A orquestra excelente. Gravação de 1960. Walter, que nasceu em 1876, estava com 84 anos. Faleceu em 62. Todos já morreram: Klemperer em 73, Furtwangler em 54, Beecham em 61, Barbirolli em 70, Stokowsky em 77, Bernstein em 90, Karajam em 89, o
grande Mravinsky em 88, Scherchen em 66. Toda uma geração de grandes maestros. 
Na Quarta sentimos o mundo desabar como uma cristaleira de estrelas. Conheci uma pessoa que não a podia ouvir sem verter lágrimas. "Por que chora?" - perguntei, certa vez. "Choro pela magnitude, a beleza" - respondeu.

*   *   *

Mas o cronista enlouqueceu? passei da praia para Brahms? Gosto de escrever ouvindo música. Fui arrancado da praia. Quando a vi, ela vinha preparada: barraca, cadeira, bronzeador. Sentou-se a meu lado. Não me viu. Ainda uma bela mulher. Cerca de 60 anos. O corpo, excelente. Rijo, pleno. O rosto não. Marcava nas rugas todas as vicissitudes por que passara. Há muito sei que nada escreve. Parar de escrever é mortal, para poeta. E ela escreveu dois belos livros, há muito tempo. As rugas marcavam a expressão severa, tensa. Armada. Onde moraria? Que estaria fazendo? Quando eu já pensava em retirar-me, apareceu a amiga. Começaram a conversar em voz alta. Lembrei-me de sua cristalina voz. Pude ouvir que cuidava dos netos, estivera no supermercado, e assuntos domésticos. Nada, nem uma palavra de poesia. Saí, sem me identificar, reconhecer, sem me despedir. Ela, porém, não me tinha visto. Será que ainda me reconheceria?



quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Minha coluna de Natal


Minha coluna de Natal

Rogel Samuel

Eu adoro Natal.  Apesar de não ter família, ou por causa disso.
Minha família é o mundo. 
Lembro-me de quando ainda morava em Copacabana, na noite de Natal saí para jantar, bem tarde, num restaurante próximo que eu sabia aberto. 
Bebi champanhe, saudei os meus mortos, desejei feliz Natal para a humanidade. 
No fim, mandei embrulhar numa “quentinha” o meu jantar quase inteiro, que quase nada comi. 
E vim andando pela Barata Ribeiro deserta em direção à minha rua. 
Poucos carros passavam. 
Pessoas gritavam e riam em alguns apartamentos. 
Gritavam da alegria do Natal.
Súbito eu vi um velho mendigo do outro lado da rua, sentado na calçada, como que dormindo. 
Com quem sonhava aquele homem? 
Eu me aproximei e ele acordou rapidamente assustado, mas alegre ao receber aquela sua ceia natalina.
Por isso, adoro o Natal.
As pessoas ficam inspiradas. As estrelas brilham. O mundo respira uma atmosfera nova. 
Acredito que, não existisse o Natal, o mundo já se teria autodestruído.
No Natal a humanidade do mundo se renova.
Voltamos a ser compassivos, bondosos, pacíficos. 
Purificamo-nos.
E sempre há de aparecer um mendigo na calçada para ser nosso parente, nossa família, e receber nossos melhores presentes.
O nosso sorriso.



quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O dia inatingível

  O dia inatingível



Conto de Rogel Samuel




Um dia ele saiu de sua toca, digo, de seu pequeno apartamento e começou a andar pelo corredor imundo do caos daquela cidade.

Era o anoitecer do ultimo dia. Chovia. Não demorou estava fora da área urbana. Havia ameaças por todo lado, policiais armados, mulheres sujas, vozes aterradoras. Não pôde compreender tudo, mas, como não saía de casa há muitos anos, pensou que tudo poderia estar assim desde sempre. 

Grande Episódio.

Procurou um bar, pois estava com sede. 

Entrou, pediu um copo, e bebeu. 

O rapaz do bar perguntou:

- Com quê vai pagar?

Ele estranhou a pergunta, mas respondeu:

- Com dinheiro.

- Com que dinheiro, quis saber o rapaz.

Aí ele não soube mais o que responder. Imaginou que o mundo mudara, e que aquelas velhas células já não valiam nada. Resolveu arriscar:

- Veja, respondeu, exibindo o dinheiro.

À vista daquelas coisas, o rapaz do bar desmaiou e caiu, o dia amanheceu, as luzes se acenderam nas árvores e parou de chover.

Só então ele reparou que exibira, por engano, suas cartas de amor.

A DIMENSÃO DO MAR



A DIMENSÃO DO MAR

ROGEL SAMUEL

Escreveu Fernando Pessoa:

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290).  Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa:

Levantou-s' a velida,
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto
Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.
Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc.
Não. 
Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo. 
« Na noite escreve um seu Cantar de Amigo».  Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia amanhecer. 
Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver». 
E ele «ouve um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver. 

E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo».  Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões:
  
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; 
Vê-o também no meio do Hemisfério,     
E quando desce o deixa derradeiro;      

D.Dinis canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar».  Aponta o futuro. 
Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões. 
No maior jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir. De verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença. 
«Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nos
navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A PANTERA 4



A PANTERA 4

ROGEL SAMUEL


Chegamos junto, chegamos a uma íngreme pedra de umas grandes árvores cercada, cingida de um pequeno e claro riacho, que atravessamos com os pés nas pedras e caminhamos, graves, os nossos olhos meneando para aquelas árvores de aspecto majestoso, e com voz suave Jara me falava, mas eu o que ouvia não entendia, enquanto subimos aquela alta pedra pelos galhos, sobre um viso nós subíamos, e de lá, de cima, divisávamos dessas aves o bando numeroso, de verde esmalte - a guerreira me dizia e me indicava, egrégias aves inda me extasia o prazer com que vê-las exultava, relato não me dando fazer plena de todas, a comparsa então se dividindo por outra vereda comigo na trilha, do ar sereno ao ar que treme, vindo me diz, mas na sua língua adversa, que traduzo como: “Aqui chegamos, onde e quando a luz do dia não mais brilha e o espaço menos largo se compreende, mas onde o pungir da dor é mais profundo”. 

E aqui quedamos, armando de enorme galho nossas redes, a esperar que da noite as sombras nos cobrissem e o sono, misterioso e leve, nos tomasse. 

Mas logo conseguimos ouvir os infernais lamentos da onça negra que rugia como uma mar combatido de ventos, de tormenta ou furor nos perseguindo, nunca abatida que perpetuamente nos seguira em seu embate, recrescida, que à borda daquele abismo precipitava em ais, soluços, rompendo com blasfêmias, ouvindo então de Jara me dizer:  não se atemorize, pois como nós ela também está temendo ao capricho do vento, sem conforto neste longa série de avanços com seu grasnido assim no gemer seu que não descansa com que o vendaval fustiga denegrida. 

E em tumulto as invisíveis aves da noite volteavam ao capricho dos ventos, que as trazia no conforto e não lhes fazia  mais agonia, como nos ares longa série de abutres avançando por trás do tufão de sombras, em vão pelo seu pavor como saídos da tumba de demônios. 

E após aquelas aves foi o silêncio feito, que perguntei: “Que aconteceu agora?” 

– E Jara respondeu com um suspiro: 

“Cruel destino, triste congitar! Procederam do mar do fim do mundo”. 

Disse-lhe eu: “Oh Amiga, teus martírios me angustiam”, pois tinha nascido a flor do nosso afeto, como namorados éramos a sós naquele monte, e um ponto só nos deu guarida, pois a boca me beijou estremecida que tombei como corpo morto, mas: 

“Espera!” – me disse ela, subia ao alto colina onde da árvore alta pode observar uns novos clarões que vislumbrava. 


Enquanto que eu da pantera a respiração ouvia por toda parte ao longe e ao lado.


sábado, 19 de dezembro de 2015

NO NATAL



NO NATAL 

ROGEL SAMUEL

No oco de dentro, tudo morto e escuro. Ele abriu o armário, pegou o guarda-chuva. Olhou-se no espelho, achou-se envelhecido, cansado, os cabelos grisalhos não ajudavam a face pálida. Mas dirigiu-se para a porta da rua, resoluto. Não, não sabia aonde iria. Estava indo para a rua. Apesar da chuva. 
Na calçada. Ele estava na calçada debaixo da marquise. Chovia. Ele tinha de ir a um bar, ou a um restaurante qualquer. Já não agüentava ficar em casa, sozinho. Tinha preparado o seu Natal para passar sozinho em casa, sua ceia. Intocada. Nos dias anteriores se organizara, comprou um pouco de peru, castanhas, um bolo. Colocou a melhor toalha na mesa, arrumou tudo, até com certa beleza e elegância, graças às taças de cristal, herança da avó. Bacará. Mas não. Não agüentou ficar ali, vendo a solidão no vídeo da TV. Resolveu partir para a conquista da rua. Mas já era tarde, tudo estava parado, morto. A cidade dormia em silêncio. Ninguém mais andava na noite, naquela região perigosa, ali. Por isso, ele estava parado, olhava a pesada chuva, não se animava a atravessar a rua, debaixo da marquise. Que fazer? 
Lembrou-se da Missa do Galo que já devia ter acontecido: Que horas são? – Não trouxera relógio. 
Foi quando na esquina despontou um táxi, era sua sorte. Faz um sinal, aflito. O taxista, mal-humorado, dobrou, veio. Parou, ele se jogou lá dentro, como dentro da barca da salvação. 
– Para onde?, perguntou o taxista. 
Ele não soube responder. 
Rodaram pelo Centro sem rumo, à procura de um lugar onde ele pudesse passar a noite de natal, o restante da noite de Natal. Mas tudo fechado. Rumaram para a Zona Sul contudo. Já era muito tarde, ou não abriram, ou já tinham fechado os bares e restaurantes. Finalmente, no final do Leblon, um pequeno lugar, muito conhecido seu, ainda aberto. 
A casa cheia, ruídos e bêbados. Ótimo, pensou, já não estamos sós. O primeiro uísque bebido em pé, no balcão, meia hora depois vagava a mesa. O segundo e terceiro uísque bebeu entre conhecidas lembranças tristes e vagas que assaltavam, assassinas. Sim fora ali. Naquele mesmo lugar. Ele olhou e viu quando Ana lhe falara, anos atrás. Contara tudo, de chofre. Sem introdução. E dissera que já estava com o outro. "Que belo lugar, disse para si, apropriado, para passar este natal solitário!" Mas foi o único. Resolveu comemorar não sabia o quê. Depois do terceiro uísque, sentiu-se melhor, meio faminto de vida, e encomendou um peixe que ali se comia desde a época de Aninha. Mas a refeição permaneceu na mesa, ele via o dia vazio, que estava nascendo o dia, e a chuva, através da vidraça, fina, persistente. E olhava em volta à sua procura, as pessoas pareciam estranhas, as vozes cada vez mais longínquas. Cantavam. À sua volta cantavam. Por que aquilo não o contagiava? Por que no oco de dentro tudo morto e escuro? 
E a chuva parou, o sol levantou-se, ele pediu a conta, pagou e partiu em direção à praia. Atravessou a rua, cruzou com uns homens que corriam, atléticos. O mar estava limpo, plácido, como lago. Um espelho de mar. Num canto das pedras percebeu um estranho e gordo velho, encolhido, agachado. Tocava o mar com os dedos. Era um velho gordo, olhava fixamente o mar. A barba branca. Olhava fixamente o mar. Mais de perto, quase a seu lado, vejo quem era. No oco de dentro tudo já não estava morto e escuro: O sol, um enorme sol, brilhava no horizonte desperto. O velho olhava o mar. Tirava barquinhos de papel do saco de brinquedos e os punha sobre a água. Os barquinhos partiam, em direção ao outro lado do mundo.


MORRE KURT MASUR

Very sad news: Prominent Maestro Kurt Masur, the music director emeritus of the New York Philharmonic, passed away at the age of 88.
Kurt Masur is well known to orchestras and audiences alike as both a distinguished conductor and humanist. In September 2002, Mr. Masur became Music Director of the Orchestre National de France in Paris. Effective with the…
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sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Interpretar a Divina Comédia? - Rogel Samuel


Interpretar a Divina Comédia? - Rogel Samuel


Escreveu Otto Maria Carpeaux: “O próprio Dante distinguiu quatro níveis de interpretação e compreensão do poema: o sentido literal e histórico; o sentido alegórico e tipológico; o sentido topológico ou moral;e, enfim, o sentido analógico ou místico. Mas será este último jamais acessível a nós mortais?” (“Meu Dante”). Mas creio que o grande poema não necessita de interpretação, nem classificação. Basta-se a si próprio. Ou melhor, seu melhor sentido é “veja-me”, “eis-me”. Ou seja: “leia-me”. O poema máximo diz:”Veja como sou bem construído, perfeito”, pois Dante é muito bom de ler, afinal ele conta algo, uma estória, tem um “enredo”, é um livro de viagem, uma viagem fantástica, extraordinária, em versos de certo modo claros, bons de ler, onde se vai a algum lugar, a um certo fim, a uma finalidade, onde se espera chegar em paz, talvez à morte, ou ao eterno, pois vida é uma vereda perigosa, onde os rochedos desabam, desmoronam (...e poucos, só poucos podem dizer no fim: “e ao brilho caminhamos das estrelas”), e esta estranha estrada não diz aonde leva, aonde vai, nem que:

Se prosseguir agora vos apraz,
passai por esta grota, onde se abriu
uma vereda, e chegareis em paz.

A RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE - 2


A RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE - 2

ROGEL SAMUEL

No mundo arcaico, a destruição da violência e a so-brevivência da sociedade eram tarefa da guerra. A trans-cendência da razão, em lugar de eliminar a violência, de-fine a violência como o mal, e confisca a violência para que fique submetida sob controle do Estado. No mundo arcaico, a violência pura não tinha assim essas caracte-rísticas de mal. O mundo moderno instaurou um dualismo entre bem e mal, tentando o império do bem sobre a vio-lência do mal. Este império do bem seria a violência sob o controle do Estado, O mundo dualista só admite a violência como forma de exclusão racional da violência individual, através das instituições do Direito e da Justiça, através do militarismo, O Bem passa a ser uma exclusão da violência de todos, destituída de todos, assumindo o Estado o papel de representante da violência coletiva. A fraqueza do mundo dualista é não oferecer um espaço de legitimação da violência, assim como o impasse do final do Século XX é a impossibilidade de um confronto entre os Impérios. A repressão da violência por parte do Estado, e por parte do Império, não a erradica, nem a libera. Acumulada, por parte do Estado ou do Império, a violência parece ainda mais ameaçadora. Se o Bem e uma exclusão da violência, isso acaba funcionando em proveito da violên-cia, pois o Bem não está excluído de usar a violência, e a violência do Bem acaba transferindo o Bem para o outro lado, já que um Bem violento aparece. 
A exclusão da vingança individual do mundo moderno (transferida para o Direito) , deixa aberto um perigoso espaço a violência, que a moralidade racional não tem sabido neutralizar.
Com mediação, a própria divindade do Bem, o Cristo, sofre a violência em si, em seu “corpo”, tal qual quando havia a possibilidade da vingança individual. O “olho por olho” é transformado em “Cordeiro de Deus”, para que seja neutralizada a violência, e para que seja restabelecida a ordem perdida. A própria divindade do Bem se oferece como vítima da violência do Mal. E os Deuses gloriosos são substituídos por um Deus sacrificado” pelo homem. Trata-se de uma inversão: O Deus passa a vítima do homem. Trata-se de um Deus que sofre a violência, não mais que a exerce, revelando que o homem, para impor-se nadificou a divindade, que se torna vítima e se renuncia a si mesma. Antes, o homem se sacrificava a divindade; hoje, o homem sacrifica a divindade, O estudo deste problema é apontado aqui.
Se o homem moderno e capaz de sacrificar Deus, não devemos ter dúvidas de que é capaz de sacrificar qualquer ser (a Primeira Guerra Mundial fez treze milhões de vítimas, a Segunda cerca de trinta milhões) ou de sacrificar qualquer coisa. Porque é da natureza do homem o sacrifício. É próprio da natureza do homem a criação de mitos para serem sacrificados.
Como mediador entre o Bem e o Mal, o mito e um produto. O mundo da mediação é um produto . A finalidade da produção arcaica era a destruição do excedente improdutivo. No mundo capitalista, a finalidade passa a ser o próprio excedente, como acumulação do capital.
As sociedades modernas são edificadas para que as forças produtivas cresçam cada vez mais, e respondam às necessidades básicas da Empresa Estatal, que não hesita em sacrificar o próprio capital (como antes sacrificou o próprio Deus) sob a forma da produção de guerras econômicas.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE

A RECONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE

ROGEL SAMUEL


 O capitalismo regido pelo Estado nasceu para enfrentar o perigo que representava, para o sistema, um antagonismo declarado entre classes, para bloquear o conflito de classes através da “racionalização”. O sistema de capitalismo de serviços se define por uma política que assegura as massas certas gratificações compensadoras, como política de evitar os conflitos que nascem das necessidades que se situam na periferia do domínio do Estado. Tais conflitos são conflitos de interesses, já que as perigosas confrontações de classes foram camufladas e se tornaram latentes. As diferenças de classe ainda existem, no que se refere ao nível de vida, aos hábitos de vida e às atitudes políticas. A classe dos assalariados é mais tocada pelas disparidades sociais do que os outros grupos, criando-se assim uma certa hierarquia de privilégios, uma pirâmide no que antes era constituído por dois blocos distintos: a classe dominante e a classe dominada, O sistema tratou de confundir ou dissolver esta perigosa distinção, numa fusão de interesses, criando-se a noção de um poder distribuitivo e expansivo. O sistema se defende contra o que o coloca em perigo através de um feed-back legitimador permanente, que aperfeiçoou através de séculos de representatividade parlamentar, desde os tribunos do povo, no Império Romano, desaparecidos na Idade Média, mas reintegrados no jogo democrático do século XVIII. A dominação tem feito, pois, uma política “de fachada” sempre, no que se refere a esta repartição compensadora do poder e dos privilégios, e estes interesses transcendem às fronteiras latentes entre as classes dissolvidas.

Entretanto, no Terceiro Mundo não foi totalmente erradicado o importante perigo e todo o potencial do conflito entre classes, porém a “racionalização” já conseguiu um deslocamento da zona conflitante para setores subprivilegiados da vida social, como o dos negros e dos índios. Mas trata-se, apesar de tudo, de substituir a insolúvel confrontação de forças pela solução de redistribuir as energias sociais da decisão e, conseqüentemente, de dissolver o sistema ao máximo, permitindo interesses econômicos envolvidos. Passamos assim da noção de classe dominante e classe dominada, para um reescalonamento de privilégios, a uma hierarquização dos privilégios, indefinidamente distribuídos, no aparente crescimento da idéia de progressão social. Não é sem motivo que a sociedade vive cheia de mitos modernos de ascensão social individual, de indivíduos que tiveram “sucesso na vida”, estimulando-se assim o próprio condicionamento. E a atual onda de crises econômicas serve para desviar a atenção do verdadeiro problema.




GLEEN GOULD - ROGEL SAMUEL



GLEEN GOULD - ROGEL SAMUEL

Ouço, obsessivamente ouço, e repetidas vezes, o Concerto nº 1 BWV 1052 de Bach com Gleen Gould. Ele o tocou pela primeira vez em Toronto, 1955, e a partir de então, também, por mais de 30 vezes, repetiu a obra. A gravação, que ouço, é a de 1957, Mono, Columbia Symphony Orchestra. E Bernstein. Também possuo outra, da Internet, em MP3, de que nada sei porque nada é dito, cujo tempo me parece um pouco mais rápido, e as “loucuras” de Gleen Gould mais radicais, como as “invenções”, “modificações”, caminhando da lucidez, da precisão clássica/barroca para a variação jazzística, nas suas ondulações sonoras, intermináveis e recalcitrantes. A gravação da Internet desse Concerto obsessor deve ser a mesma e está, entretanto, incompleta, faltando alguns minutos do segundo movimento, o “Adágio”.

Gould fez sucesso obstinado com este concerto.

Em Leningrado, diz Otto Friedrich, seu biógrafo, lugares extras foram colocados no palco, 1.300 assentos foram vendidos, 1.000 ingressos de lugares em pé (!), e mesmo policiais tiveram de ser convocados para conter a multidão, que se comprimia do lado de fora, sem poder entrar. Até os músicos da orquestra que não foram convocados se acotovelavam na coxia para ovacionar o pianista. Rebentaram as palmas. Explodiram vivas. Lançaram-se flores. Ele ficou assustado: “Foi opressivo e amedrontador”, disse, depois.

Ele parecia criança quando esteve pela primeira vez com Leonard Bernstein. Existe aquela famosa foto sua com o maestro americano: Gould belo menino, em transe, os cabelos cobrindo os olhos, e Bernstein de cabeça baixa, sério. “Ele realmente fez coisas maravilhosas no Concerto em Ré de Brahms”, disse. Mais tarde, em gravação que tenho, dádiva do pianista americano Christopher Schindler, o criticou o maestro em público, pois o pianista forçou leitura lentíssima do Concerto de Brahms com a Filarmônica de Nova Iorque. Mas, depois de ouvir várias vezes, começamos a sentir que é assim mesmo, naquele tempo lento, que o grande Concerto deve ser ouvido. Na época, Gould foi duramente criticado. Disseram justamente até que ele atrasou o tempo porque não era capaz de superar as dificuldades técnicas de execução. A crítica bateu feio nele e ele sentiu a pancada. Parece que ficou ferido. Por outras razões abandonou o palco. Criticavam os seus trejeitos malucos ao piano, as suas contorções, caretas e tudo mais. Falavam de sua vida sexual, se seria ou não homossexual, da sua indumentária horrorosa, dos seus medos e fobias, das doenças imaginárias. Gould tinha dos concertos uma idéia pejorativa, dizia daquilo uma competição, exibicionismo, aparição moralmente má. Do tipo: “Devo decorar esta frase elegantemente para o concerto”. O pianista no palco ia participar de um show que era uma luta por uma espécie de prêmio mundano, cheio de desafios, disputas, rivalidades, tão longe da transcendência em que mergulhava – a música uma espécie de religião, meditação, êxtase e orgasmo. Não, nada de exibição de virtuose. Mesmo com orquestra, ele é um “solista”, em meditação. A orquestra, um acompanhamento. Ali não emerge o ego de um virtuose. O concerto não deveria ser uma batalha entre o piano e a orquestra [apud Michael Stegemann], um espetáculo de arena. Gould rejeitava a idéia do psicanalista Stevens de que os virtuoses educam a sensibilidade do público. Ele foi “o último puritano”, se referindo a si próprio tomava emprestado o título da novela de George Santayana. “Esta era a visão da arte como instrumento de salvação, e dos artistas como seus advogados missionários”, disse Stegemann. Arte como educação espiritual e meditação. Elevação mística. Tal Ragas orientais.

Enfim recolheu-se à solidão dos mosteiros, digo, estúdios, à sua casa, aos seus passeios de carro, às suas noites solitárias, em que importunava os amigos com longos telefonemas, durante horas, em que ele freneticamente falava sem parar.

O tempo lento do Concerto de Brahms me lembra a gravação, lentíssima, de Celibidache da Sinfonia Novo Mundo de Dvorak. Dura 113 minutos. É magistral. Celibidache velho, velhíssimo, rege, pesadamente sentado na cadeira, economiza gestos, mas poderoso, e sua música aparece como uma despedida, adeus. Ele, antes tão exuberante, dramático, que pulava e bailava no pódio, agora sentado, poupa-se, transformando a Novo Mundo em sua transcendência para a nova vida, a morte.

Pois Gould era realmente, absolutamente louco. Louco como só os gênios o podem ser.

Ele teve dificuldades em gravar com orquestra.

Disse: “...meu problema com orquestra é econômico... com orquestra, seja o que for que você tenha de fazer, só dispõe da orquestra no estúdio por um limitado número de horas... se tiver sorte pode fazer duas ou três gravações... mas quando estou numa sessão solo posso fazer nove ou dez gravações” diferentes, para escolher uma, a melhor.

Ele somente teve dois mestres: Alberto Guerrero e sua mãe, Florence. “Tudo o que há para saber sobre piano pode ser ensinado em menos de meia hora”, dizia.

Sim, dizia. Ele.

* * *

Antes do Concerto de Brahms, a fala de Bernstein para o público é a seguinte, resumida: “Eu estava com medo de que o Sr. Gould estivesse no piano agora... eu não costumo falar antes de concerto... mas vocês vão ouvir uma performance nada ortodoxa do Concerto de Brahms... eu não posso dizer que concordo com a concepção do sr. Gould... uma questão interessante é: por que eu vou reger assim?... é porque o sr. Gould é um artista tão valioso e sério, que tudo que ele concebe é interessante suficientemente para ser ouvido. Mas uma questão continua: Quem num concerto é o patrão? O solista ou o maestro? A resposta é... algumas vezes um, outras vezes outro... depende das pessoas envolvidas.. entretanto... eles têm de trabalhar juntos... de convencer um ao outro pelo carisma, pelo charme ou por um pacto para atingir uma performance unificada... mas essa é a primeira vez que eu me submeto à vontade de um solista para fazer algo completamente incompatível e esta é a última vez que acompanho o sr. Gould...”.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

PARA O NATAL





OS MISTÉRIOS DE UNS VERSOS



Olavo Bilac escreveu:

Língua Portuguesa

OLAVO BILAC

Ultima flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma 
De virgens selvas e de oceano largo! 
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

E me chama logo a atenção as críticas veladas à língua portuguesa que se encontram ali, e as oposições do tipo “esplendor e sepultura”, “ouro - ganga impura”, etc – mas principalmente  “O gênio sem ventura [Camões] e o amor sem brilho [da mãe do poeta]”.
Bilac nunca é simples tanto quanto parece [mesmo nos mistérios de sua vida].
Que Camões tivesse tido uma vida “desventurada” tudo bem... mas não a sua obra, principalmente “Os lusíadas”, que é o melhor e o mais moderno poema épico da Modernidade, a epopéia do imperialismo capitalista, da globalização moderna que se seguiu. Camões, é hoje autor universalmente consagrado, “apesar” da língua portuguesa (que Bilac critica, que chama de “sepultura”), ao nível de Dante, Shakespeare etc.
A crítica camuflada a essa “língua-túmulo” pode ser lida talvez como da acanhada vida literária brasileira daquela época, em comparação com Paris e com a consagração imediata de um escritor como Victor Hugo...
Mas Bilac aqui era o “príncipe”... um refinado dândi, elegante e vaidoso... Suas conferências enchiam as salas... Talvez por isso é que a rebeldia modernista o atacou com tanto ódio.
Não podia reclamar.
Mas só uma crítica psicanalítica pode entender esse “amor sem brilho” no que se refere ao amor de sua mãe. Algo curioso que ainda vou pesquisas na enciclopédia da vida literária daquela época que é o “Diário secreto”, de Humberto de Campos.
Mas para isso tenho de descobrir os dois volumes na minha sala desorganizada. 

P.S.: BILAC BRIGOU COM SEU PAI E CEDO SAIU DE CASA E NUNCA MAIS VOLTOU. IA VER A MÃE MAS NÃO ENTRAVA, FICAVA NA RUA. A MÃE LAVAVA ELA MESMA A SUA ROUPA. BILAC MOROU EM PENSÕES MODESTAS E NO FIM NA CASA DE SUA IRMÃ. COELHO NETO CONTA QUE ELE TEVE UM FILHO, MAS NUNCA SE PROVOU ISSO. MEDEIROS DE ALBUQUERQUE INSINUA QUE BILAC ERA GAY. NA HORA DA MORTE, SEU PAI SE RECONCILIOU COM ELE E ENCONTRARAM O LIVRO MUITO USADO DAS POESIAS DE BILAC ESCONDIDO NA CAMA DO VELHO, QUE ERA MÉDICO E QUERIA QUE O FILHO FOSSE MÉDICO E NÃO... POETA., .

domingo, 13 de dezembro de 2015

Língua Portuguesa faz hoje 800 anos

Língua Portuguesa faz hoje 800 anos




Faz hoje 800 anos que foi escrito o primeiro texto oficial conhecido em língua portuguesa, o testamento de D. Afonso II, de 1214.

Para assinalar a data vai ser entregue um manifesto no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa.  

O documento, que pretende destacar a importância da língua portuguesa no mundo, é subscrito por vários politicos, músicos, escritores, professores e jornalistas de Portugal, Cabo Verde, Timor e Guiné-Bissau.

Ao início da tarde, em Belém, vão ser ainda lançados 800 balões.



O Amor é Mais Frio que a Morte - MARIA AZENHA

O Amor é Mais Frio que a Morte - MARIA AZENHA



Cinco retratos para Fassbinder

I
Nestas cidades desertas há rosas de neve
onde não passa ninguém.
O poema aflora aos anéis da matéria.
É tempo de caça.
II
A criança está amarrada a uma ave cega
e o seu coração sangra de um espelho
para dentro da luz
III
O Cavaleiro escarlate
solta a poeira do espelho
num cavalo preso
a duas árvores sempre quietas
Entra pela primeira vez
dentro da morte
IV
Protege-se da demência das horas
na poeira secular de um segredo.
O Amor é Mais Frio que a Morte

V
Noite profunda áspera aquela
que cria a Criação


© maria azenha

TERCEIRO CAPÍTULO DE "A PANTERA" - ROGEL SAMUEL



TERCEIRO CAPÍTULO DE "A PANTERA" - ROGEL SAMUEL


Porque Jara me impeliu como queria não sei o que, saímos dali e pelo caminho entramos alto e selvagem, naquele ar sem estrelas, naquele mundo sem nome e sem traço, à morte acreditando que eu colhia de um largo rio à margem dirigindo, Jara me fez parar e então, baixando os olhos fui vendo uma flexa especada, mas dela, serena, o gesto me fazia, sem vozes, sem blasfêmia, arco em punho:
- Por aqui, meu, Jara dizia, e enquanto assim dizia a terra tremeu num solavanco e foi tão forte o movimento que do medo da terra lacrimosa rompeu um vento e um clarão rompeu avermelhado, como de um sono profundo fui tirado por aquele hórrido estampido, estremecendo.
Mas a Jara perscrutou por saber onde se achava e a tudo no lugar sinistro atenta.
- Temos de partir, nos afastar, - me disse ela, na sua linguagem selvagem, da força daquele vale tenebroso:
- Eia! – disse ela, nos afastemos da treva do mundo – ela me disse enfiando-se por uma descida: “Eu descerei primeiro, tu segundo”. Tornei-lhe, a palidez sua notando:
- “Como hei-de ir, se és de espanto dominada, quando segurança e conforto estou de ti esperando”?
- “Vamos, - disse-me ela, sem se deter – essa jornada exige pressa, porque o abismo a estreitar-se já começa -  e escutei, vibrando no ar do espaço inteiro os murmúrios longínquos das bombas que estrugiam, e eu vi que no meio da selvagem terra nós fugíamos da guerra, sem parar, pela selva penetrando e longe ainda divisando, o hemisfério das trevas alumiando, dali distante de onde nos achávamos, mas não tanto que não discerníssemos em parte o clarão brilhante e o rumor que a nós vinha, como que saíssemos de um fúlgido castelo de aspecto majestoso cujos altos muros, cercados por sombras inimigas e malévolas.