MACHADO "O FUTURO"
1º. DE MAIO DE 1863.
Os extremos tocam-se, dizem. Eu,
de mim, acho que é uma verdade; e, para não ir além da aplicação que ora me
convém, lembro apenas que os pequenos infortúnios têm um ponto de contato com as
grandes catástrofes; e a bancarrota de um negociante de grosso trato não o
afligirá mais do que me aflige o desfalque de assunto para a crônica desta
quinzena.
Afligia-me, devo eu dizer; porque
a boa estrela que preside aos meus dias, sempre me depara, na hora arriscada,
com uma tábua de salvação.
Desta vez a tábua de salvação é
uma carta, uma promessa e uma notícia. – Parecem três coisas, mas não são,
porque a notícia e a promessa vão incluídas na carta.
A notícia é de um romance por
fazer; e é promessa que me fez em uma carta um amigo a cujos escrúpulos de
modéstia não posso deixar de atender; e de quem não
posso assoalhar o nome.
Estou certo que o leitor não
levaria a mal que eu desse neste ponto dois dedos de conversa acerca do meu
salvador. Nada lhe direi; e a razão é que uma pintura viva e completa daria em
resultado imediata contestação do retratado. Sucintamente posso dizer-lhe que só
por vergonha é que o meu amigo não se faz anacoreta; mas se jamais veio ao mundo
um homem com disposições à vida solitária e contemplativa é aquele; olha os
homens por cima do ombro e prefere-lhes muito e muito as rolas e as cegonhas.
Das cegonhas fala aplicando sempre a observação de Chateaubriand, “que as vi
saindo aos bandos da península grega para África, do mesmo modo por que saíam no
tempo de Péricles e de Aspásia. Tal é o contraste da mobilidade das coisas
humanas com a imobilidade do resto da natureza”, acrescenta o autor dos Mártires e o meu amigo adere do fundo
d'alma a essa opinião. Pelletan tiraria de fato uma
conclusão favorável à humanidade; mas o meu estranho amigo pensa diversamente e
acredita de convicção que esta com a verdade.
Não conteste o leitor, porque eu
faço o mesmo.
“Meu amigo,
escreve-me ele, à força de não pensar no que me rodeia, atingi a um estado de
desapego às coisas da vida que às vezes me acredito o único escapo de um cataclisma universal. Imagina com que sabor volto de quando em quando o pensamento para os sucessos do
tempo. É uma nova ocasião de confirmar-me nas minhas anteriores impressões.”
Dias passados lembrei-me de ser
poeta. Vê lá a que ponto cheguei! Tomo a poesia como
uma coisa dependente da vontade, como a construção de um prédio ou a fabricação
de um pergaminho.
“Deixa passar a heresia.”
Lembrei-me de ser poeta; e como
não tenho vocação para isso, atribuirás tu esta
disposição do espírito ao amor. O amor! Posso eu senti-lo? Reparo às vezes no
cuidado com que, em todas as línguas que conheço, esta palavra é construída! Até
as mais duras, como a de Pope,
encontram o seu melhor som para exprimir este sentimento. Mas existe ele? Existe
como deve ser, despido de toda a preocupação terrena, puro como o resumo que é
de todos os outros amores? Nos livros dos poetas, de certo; na humanidade, não
acredito.
E como não acredito, lembrei-me de
escrever algumas páginas onde me ocupasse do contraste flagrante que há entre o
sentimento e as hipóteses do fato. Imaginei um Pílades, três
Orestes e uma Safo. Que se pode fazer com estas cinco
figuras? Um romancinho, mais ou menos acidentado. O amor de Pílades e Safo; o amor de Safo e dos Orestes; a alternativa
constante desta balança que se chama vida, cujas conchas se levantam e se abatem
por singulares disposições do acaso e da criatura. Adubo a narração com a
pintura do sofrimento de Pílades, e, se me parecer, acabo por fazê-lo lorpa de corpo e de alma, o que não será
novo, mas será agradável de ler, porque não faz chorar. Que me dizes ao
pensamento? Não dá para cem páginas de oitavo? Penso que sim; já tenho algumas
folhas de papel escritas; não sei se acabarei; talvez acabe; e então posso
colocar a minha obra sob a proteção da tua amizade, que a fará inserir no Futuro.
“Talvez achem a história muito
velha; responderei que ainda assim é bom repetir essas coisas; e como eu tenho
de encarar a história por um ponto de vista pouco explorado, naturalmente lhe
hão de achar novo sabor. Teu S.”
Fico
implorando o deus dos poetas para que esta promessa se torne todo o caso, embora
não venha a obra prometida, ganho eu com ela que me forneceu matéria para encher
as páginas da minha crônica.
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ResponderExcluirBela postagem, mestre Rogel! Migrei para o facebook! Estou linkado com 90 redes sociais dos 5 continentes!Recomendo! Sou lido no mundo inteiro!
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