quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
GENERAL DR. FILETO PIRES FERREIRA
Raul de Azevedo
No cenário da política do Norte, antes de 1930, 0 General Dr. Fileto Pires Ferreira foi um nome falado e discutido, com valores próprios. Era, então, tenente do Exercito, e fora da Câmara dos Deputados para a curul governamental do Amazonas. Depois, promovido a Capitão.
Homem inteligente, de sólida cultura, era ele de verdade uma figura interessante. Onde estivesse estava o movimento. Tinha acão, - pronta, enérgica e decisiva.
Orador excelente, veemente, arrebatador de assistências, a sua frase tinha calor. Era um homem norteado pelo bem e com atitudes e gestos nobilitantes.
Tinha princípios em política. Idéias firmes, ardente vontade de trabalhar pelo Amazonas, onde se radicara, e pelo Brasil.
Republicano dos melhores.
Fui um dos seus companheiros, um dos seus amigos, um dos seus auxiliares na linha da frente pró-Amazonas. Sei bem dos seus sentimentos, dos seus serviços, do seu idealismo. Foi talvez o discípulo mais amado de Benjamim Constant, um dos fundadores da Republica. Possuía uma fotografia do General com a mais alta e nobre das dedicatórias.
Ardoroso, vibrante, às vezes impetuoso, era um homem de comando. Há homens que nascem para comandar, assim como outros para serem comandados...
Ele era dos primeiros.
Trabalhava sempre, trabalhava muito.
Pensava de certo com Rojon, - "l'homme Ie plus heure c'est Ie plus ocupe" .
Um resumo biografico:
- Nasceu Fileto Pires Ferreira a 16 de marco de 1866, no município de União, Estado do Piauí. Filho de pais piauienses, capitão Raymundo de Carvalho Pires e D. Lydia de Sant' Anna Pires, fez os seus primeiros estudos em Terezina, onde tirou os preparatórios com brilhantismo.
Com decidida vocação pela carreira militar ,seguiu para o Rio de Janeiro, em 1883, como soldado do Batalhão de Engenheiros, matriculando-se na Escola Militar do Rio Grande do SuI, em 1884.
Aí repetiu, com o melhor êxito, os preparatórios de matemática, merecendo o grau distinto. Em 1885, foi transferido para a Escola Militar do Rio de Janeiro, tirando o primeiro e o segundo ano com aprovações distintas, conquistando o posto de alferes aluno em 1886. Até setembro estudou o 3.° ano, quando doença grave fê-lo interromper. Em 1888, entretanto, concluiu esse ano, sendo classificado em 1.° lugar nas duas matérias principais. Em 1889 fez o 4.° ano, com exames também de algumas matérias complementares, criadas no curso pelo regulamento Thomaz Coelho .
Republicano desde os bancos escolares, educado nas idéias modernas e liberais, Fileto Pires, em 1889, tomou parte saliente em todo o movimento republicano, distinguindo-se pelo seu talento e valor.
Discípulo amado de Benjamim Constant, esteve ao seu lado no preparo e na execução dos pIanos de 15 de novembro de 1889. Tomou parte em todos os acontecimentos revolucionários, marchando com a célebre 2.a Brigada, sob o comando de Benjamim Constant e depois de Deodoro da Fonseca.
Proclamada a Republica, onde a sua cooperação se salientou, fez o serviço da guarnição no Quartel General nos dias subseqüentes. No Diario Oficial de setembro de 1891, ha um documento honrosíssimo para Fileto Pires, referente ao movimento republicano.
Foi um dos que sufocaram a revolta do 2.° Regimento, em dezembro de 1889.
Em 1.° de janeiro do ano seguinte, embarcou para o Amazonas, a disposição do Governador, 1o tenente Augusto Ximenes Villeroy, depois general reformado do Exercito. Em viagem soube que fora confirmado no posto de 2.° tenente e promovido imediatamente a 1o tenente, por serviços relevantes prestados à Republica.
Chegando a Manaus, seguiu para Teffé como superintendente municipal, dispensando os seus vencimentos. Regressou pouco depois, seguindo para o Rio de Janeiro, para completar o seu curso em janeiro de 1891, quando recebeu o grau de bacharel em matemática e ciências físicas e naturais.
Formado já e prestes a ser promovido a capitão, soube que a promoção estava feita, com classificação em Mato Grosso. Não querendo seguir para aquela região, pediu licença e foi transferido para o Estado Maior de 1.a classe. Incompatibilizado com o Governo de então por acontecimentos políticos do Piauí, seguiu para Minas Gerais, onde esteve quase um ano, trabalhando como engenheiro da Estrada de Ferro, regressando ao Rio em fins de 1891, licenciado pela Diretoria da Estrada.
Por essa época deu-se 0 golpe de Estado. 0 Ministro da Guerra ordenou a sua presença no Quartel General, sendo, então, nomeado ajudante de ordens do 1.o distrito militar, no Pará. Aproveitando a sua ida ao Norte, o Marechal Floriano Peixoto confiou-lhe uma comissão importante e reservada - conferenciar com os chefes do movimento contra o golpe de Estado.
Em Pernambuco teve ciência do contragolpe, tendo-se entendido já com Moreira Cesar, na Bahia, CaIheiros, em Alagoas e Coronel Câmara, em Pernambuco, quando recebeu telegrama do Marechal mandando aguardar ordens do Governo no Amazonas e agradecendo os serviços que prestara.
Em dezembro de 1891, Fileto Pires chegou a Manaus. Do dia da sua chegada ate 27 de fevereiro de 1892, deu-se o celebre movimento revolucionário amazonense, que acabou na deposição do Governo Thaumaturgo de Azevedo. A 11 de Março chegava o dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro; escolhendo e nomeando secretario do Governo o ilustre republicano, tendo servido nessas funções ate 16 de maio, cooperando eficazmente para o desenvolvimento do Amazonas.
Serviu gratuitamente na Diretoria de Obras Públicas, sendo nomeado depois para servir nas Obras Militares. Em 1892 foi eleito deputado ao Congresso do Amazonas, sendo designado com três colegas para fomar o projeto da Constituição do Estado.
Em setembro, promulgada esta, retirou-se para a capital da Republica, de onde regressou a 11 de fevereiro de 18937 quando se deram os fatos da pretendida deposição do dr. Eduardo Ribeiro pelo Coronel Bento Fernandes. Defendeu o governo legal, salientando-se na sufocação desse movimento.
A 20 de março, eleito deputado federal, seguiu para o Rio de Janeiro, apoiando incondicionalmente os atos do bravo Marechal Floriano. Na Câmara Federal a sua figura foi saliente, discutindo as questões mais importantes, agitadas naquela casa.
A 25 de julho do mesmo ano consorciou-se, na Capital Federal, com a Exma. Sra. D. Maria Lucrecia Gomes de Souza, pertencente a uma das famílias mais distintas do Rio de Janeiro, e filha do velho general Francisco Gomes de Souza, maranhense.
Estalando a revolta de setembro de 1893, apresentou-se ao Governo, tendo servido com todo o patriotismo e abnegação nas Fortalezas de Santa Cruz e São João.
Fez com rara pericia toda a obra de defesa da Fortaleza de S. João, tendo seguido logo após em comissão reservada do Governo para Santos, para a fortificação da cidade, de onde regressou a 11 de março de 1894, para assistir ao ataque decisivo da esquadra.
Nesse tempo, em 1.o de março, era reeleito deputado federal pelo Amazonas, continuando na Câmara a apoiar o Marechal Floriano, ao lado dos seus amigos e companheiros general Francisco Glycerio, general Quintino Bocayuva e general Pinheiro Machado.
Apresentou-se em 1894 a candidatura do Senador Manoel Francisco Machado para Governador do Estado do Amazonas, e esse fato abriu cisão no seio do Partido Democrata, sendo por esse tempo fundado o Partido Republicano Federal, sob a chefia do senador referido, sendo o dr. Fileto Pires escolhido um dos representantes do Partido, na capital da Republica. Acompanhou-o nessa situação o militar e deputado federal Gabriel Salgado. Travou-se então luta renhida entre as duas facções do Partido, tendo o dr. Fileto Pires, no Rio, dirigido todo o movimento político.
Divergências posteriores entre moço piauiense e o senador Barão de Ladario arrastaram o senador Machado para as fileiras do sr. Costa Azevedo (Barão de Ladario). - Houve rompimento, ficando a política dividida em três grupos: - um dos Moreiras, representado pelos srs. coronel Joaquim José Paes de Silva Sarmento, outro do desembargador Antonio Gonçalves Pereira de Sá Peixoto e coronel Francisco Ferreira de Lima Bacury, e finalmente o terceiro, pelo sr. dr. Fileto Pires Ferreira e Gabriel Salgado.
Regressando a Manaus, o distinto militar apresentou nos últimos dias de 1895 a candidatura do sr. Gabriel Salgado para Governador do Amazonas, sendo recusada. Então os amigos de Fileto Pires assentaram a sua candidatura que, a princípio, recusou e finalmente, depois de muita insistência e principalmente atendendo a um apelo do dr. Eduardo Ribeiro, foi aceita e eleito governador do Estado do Amazonas a 25 de março de 1896, tomou posse a 23 de julho do mesmo ano.
De acordo com a lei promulgada pelo Congresso do Estado em 25 de março de 1898, foi concedida licença ao Dr. Fileto Pires para retirar-se do Amazonas, afim de tratar de sua saúde gravemente abalada, e na Europa se operar, tendo seguido dias depois, passando o Governo ao seu substituto legal Coronel Jose Cardoso Ramalho Jr., Vice-Governador.
Em agosto de 1898, estando ainda na Europa, alguns dos seus "amigos" e protegidos se tornaram seus adversários políticos, falsificando sua assinatura, forjando sua renúncia a presidência do Estado.
É a página mais negra e a mais repulsiva da política do Amazonas de outrora. Deixando a política, dedicou-se exclusivamente a carreira militar, tendo dado desempenho a diversas e importantes comissões.
Entrando para o Corpo do Estado Maior, ocupou a chefia da 1.a Divisão. Em 22 de outubro de 1916, o Diario do Congresso estampou um parecer de sua lavra sobre o projeto da criação de um Estado Maior Mixto, de Defesa Nacional, que merecera a aprovação do General Moraes Rego, bem como do General Bento Ribeiro.
Quando enfermou tinha em elaboração um regulamento do Exercito em campanha, sendo da sua autoria o projeto de regulamento sobre Administração nos corpos que, em 1917 foi publicado no Boletim do Estado Maior, tendo em vista o regime das Massas.
Comandava o 9.° Regimento de Artilharia, quando a morte o surpreendeu.
Faleceu 0 General Fileto Pires Ferreira no Rio de Janeiro a 11 de agosto de 1917, em sua residência, a Rua Visconde de Itamarati, 116. Vitimou-o um ataque de uremia.
Assisti os seus funerais. Tomei parte em todas as homenagens que lhe foram prestadas. 0 seu enterro no cemitério de S. Francisco Xavier, no mesmo dia da sua morte, movimentou os seus inúmeros amigos e companheiros, militares e civis.
Houve urna coincidência singular, - o seu falecimento ocorria no mesmo dia em que era lavrado pelo sr. Presidente da Republica o decreto da sua reforma.
Fileto Pires Fereira teve os seguintes filhos: - 0 ilustre major Alkindar Pires Ferreira, falecido, senhoritas Nair e Iberina, e capitães Ibere, Ivan e dr. Helio Pires Ferreira.
Era sobrinho do Marechal Firmino Pires Ferreira, que foi Senador Federal e Chefe político no Piauí, e cunhado do brilhante Dr. Guido Gomes de Souza, desembargador aposentado do Superior Tribunal de Justiça do Amazonas e do almirante Heráclito Belfort Gomes de Souza, ambos falecidos.
O Amazonas, pelo motivo da sua morte, prestou-lhe diversas homenagens, - os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, imprensa e povo.
Antes, fora um dos homens mais caluniados do Brasil. A politicalha precisava abatê-lo.
Ai acima ficou uma referencia sobre um retrato do General Benjamim Constant oferecido ao dr. Fileto Pires Ferreira. A dedicatória do fundador da Republica vale por uma proclamação, - "Alma pura, coração generoso, francamente aberto aos nobres sentimentos, que mais honram a nossa espécie". Está datada de 1890.
O sr. General Vicente Guimarães, ao desligar da Guarnição da Bahia o então major dr. Fileto Pires Ferreira, escreveu, - "Oficial disciplinado, disciplinador, devotado ao engrandecimento material e moral de sua classe, irrepreensível no cumprimento de seus deveres, o major Fileto prestou relevantes serviços a esta administração, já cooperando na construção dum campo de exercícios práticos e linhas de tiros que foi levada a efeito na fazenda da Ponta d'Areia, onde permaneceu durante 4 meses, ministrando instrucões a um contingente do 9.° batalhão, já na seleção dos voluntários que se destinavam às fileiras, base primordial para a organização do nosso Exército. Louvando o referido oficial pela lealdade, pela dedicação, inteligência e competência que sempre patenteou, quer no exercício de suas funções, quer no desempenho de comissões que lhe foram confiadas por este comando, cabe-me congratular-me em nome desta guarnição, com a do 2.o distrito, pela aquisição que vai fazer de tão distinto quão prestimoso camarada".
Foi ruidoso no Pais o caso da chamada renúncia do dr . Fileto Pires Ferreira ao cargo de Governador do Amazonas. Ele publicou mesmo um livro interessantíssimo sobre o triste assunto, largamente documentado. 0 seu período governamental foi iniciado a 23 de julho de 1896, tendo recebido 0 mandato a 25 de março daquele ano. Seria por 4 anos. Foi privado dele, pela felonia, a 1º de agosto de 1898, tendo governado somente dois anos, alias proveitosos e fecundos para o Estado. Toda essa época ficou fora do serviço militar, dentro das prerrogativas emanadas da Lei pelo motivo do seu mandato de Governador. Era implicitamente a comprovação, por parte dos poderes constituídos, da sua situação política.
O dr. Fileto Pires Ferreira deixou a administração a 4 de abril de 1898, embarcando doente para a Europa, com a sua família. Tinha que se submeter a uma grave intervenção cirúrgica. Fora em licença legal concedida pelo Congresso do Estado.
De Paris, datada de 27 de Junho,o Congresso Legislativo recebeu a renúncia do Dr. Fileto Pires Ferreira, que então ali se encontrava, e aceitou-a. Mas a assinatura fora falsificada e com firma reconhecida. Foi feita por pseudos amigos seus, a quem protegia.
Mas neste ensaio não pretendemos discutir nem tratar de atos subalternos. 0 nosso intuito é apenas salientar a obra magnífica daquele que foi sempre um homem digno, com serviços a Pátria, - Soldado e Cidadão.
Já falamos do Soldado, - dos melhores , que o Pais tem tido .
Falemos agora do Cidadão.
Prefeito, Deputado ao Congresso do Estado, Deputado ao Congresso Federal, Governador do Amazonas, - ele prestou bons serviços ao País, particularmente ao Amazonas. Os seus pareceres, os seus discursos, - orador notável que era - a sua ação, e os seus trabalhos confirmam esses dizeres.
Difícil será uma síntese dos seus dois anos de governo. Desde o primeiro ao último dia estivemos ao seu lado, auxiliar, companheiro e amigo.
Oficial de Gabinete e depois Secretario do Estado, acompanhamos a sua obra de construção e reconstrução.
Recebeu o dr. Fileto Pires Ferreira o Estado com um deficit de quase 4.000:000$000, e apenas em dezenove meses de governo, entregou-o com um saldo em dinheiro de quase 9.000: 000$000, e o Amazonas sem dividas, - e ainda com uma serie avultada de obras !
Encontrou todas as construções suspensas, vultosas dividas, e o Tesouro sem dinheiro. Teve que realizar um pequeno empréstimo, primeiro mês de administração, para completar o pagamento do funcionalismo. Entregou o Estado com todas as obras em andamento, outras iniciadas, sem dívida alguma e com um enorme saldo. Era, pois, um grande administrador.
Uma das suas preocupações maiores era a demarcação dos limites do Estado Amazonas-Para, em litígio há muitos anos. Procedidos os estudos, feito o entendimento com o Pará, ao tempo governado pelo eminente dr. Jose Paes de Carvalho, foi o Governador até Belém afim de assinar o acordo com o Governo, finalizando, assim, a tradicional divergência. Secretario do Governo, fiz parte da pequena comitiva, e subscrevi o tratado de limites, que consultava a verdade, a justiça e os interesses de todos.
Fileto Pires reorganizou a Justiça do Estado, respeitando os seus direitos, ampliando a sua ação.
Acabou com as verbas orçamentárias, ilimitadas e as autorizações contrárias aos interesses do Estado. Fixou as verbas.
Deram-lhe, sem que ele pedisse, no orçamento, autorização para contrair um empréstimo de £ 2.000.000, e muitas outras concessões e delas nunca se utilizou.
Publicava todos os seus atos. Dava liberdade à imprensa. Clamou por uma devassa na sua vida publica e particular, quando foi traído.
Mas a intervenção federal não se deu. A renúncia ficou entre os casos consumados da época.
O seu programa principal foi organizar uma fiscalização séria e rigorosa, e desenvolver fontes de renda. Educação, saúde, Lavoura, Agricultura, Pecuária, Transportes, - melhorar tudo, como melhorou.
Quando os sertões de Canudos se revolucionaram, Fileto Pires, oficial competente do Exercito, correu em defesa da Republica, enviando forças policiais amestradas para a luta. Tiveram grande êxito, sob o comando do depois general reformado Candido Mariano, falecido.
Gritou contra a linha de limites com a Bolívia que estava sendo traçada, e que esbulhava o Amazonas e o Brasil. Pediu fosse verificada a nascente do Javary, e foi atendido. Cuidou dos limites do Amazonas com Mato Grosso.
Estabeleceu harmonia e respeito dos poderes, prestigiando-os. Sendo maiores as rendas do Estado, aquele tempo, provenientes dos direitos cobrados pelas exportações da borracha e da castanha, alvitrou que os orçamentos fossem calculados em ouro.
A questão cambial era então assunto momentoso, premente, de importância capital, para a própria vida do Estado. Cresceu no seu governo a produção da borracha e devido à baixa cambial, as cifras subiram, apresentando grandes arrecadações, devido também ao seu programa intransigente de fiscalização. Muita vez, com ele, fizemos fiscalizações de embarques.
Trabalhou pela instrução pública, desenvolvendo-a, instalando escolas, grupos e cursos. Remodelou-as. A alfabetização do Brasil, de toda a vasta região sob o seu governo, era uma das suas preocupações continuas.
Cuidou seriamente da catequese e civilização dos índios. Reorganizou enfim a estatística, serviços de higiene e meteorologia.
Abriu novas comunicações, e é sua a primeira boa estrada de rodagem para, Sao Joaquim, no Rio Branco, e conseguiu que a Municipalidade da Labrea auxiliasse a exploração de outra para o Beny.
Fazia o controle das rendas municipais e o seu emprego. Desenvolveu muito a vida comercial do Estado e, em reconhecimento, a Associação Comercial e todo o alto comércio ofereceram-Ihe, antes da sua partida para a Europa, um grande banquete.
Alargou, desenvolveu, a navegação interna e de longo curso, beneficiando o Estado. Cuidou de regulamentar seriamente a venda e demarcação de terras publicas, acabando com os escândalos profissionais existentes.
Reformou o contrato da viação urbana, substituindo a tração a vapor pela elétrica, reformou o seu material, sem maiores agravos para o Estado.
Transformou, aperfeiçoando, o serviço telefônico, substituindo as linhas aéreas por cabos subterrâneos. Cuidou dos serviços de imigração. Melhorou o abastecimento d'agua e esgotos, calçamentos e nivelamentos da Cidade, fez obras internas e externas em muitos edifícios públicos, inaugurou o belo Teatro Amazonas, cuidou dos Palácios da Justiça e do Governo, do Ginásio, a construção do Instituto Vacinogênico, do desinfetório, da hospedaria de imigrantes, do bosque, parques, jardins.
Trabalhava e agia em toda a parte. Era um empreendedor.
Fileto Pires Ferreira - escreveu no seu livro sobre a política do Amazonas, esta frase certa, - "é a história que há de confessar os esforços que fiz, no sentido de nobilitar a autoridade que encontrei enfraquecida e rebaixada, a dedicação com que trabalhei para implantar um regime de ordem, disciplina, moralidade e economia" .
De Milton e o conceito, - tout ce qui fait l'homme un homme est le veritable objet de l' enseignement .
O Dr. Fileto Pires Ferreira foi um General e um Cidadão. Era um Homem.
(IN: RAUL DE AZEVEDO. "TERRAS E HOMENS". RIO DE JANEIRO, PONGETTI, 1948)
domingo, 24 de fevereiro de 2008
ESTRASBURGO, PARIS, MANAUS
Rogel Samuel
A caminho do Aeroporto. De volta ao Brasil. Passando pelo Metrô, ali passamos sempre. A feira, estação Duplex. Paris cinzenta, fria, elegante. Minha estada em Estrasburgo decepciona. Cidade cheia de mendigos. Na Praça Kleber, um MacDonald e outras novidades escandalosas. Placas de anúncios coloridos. Um prédio moderno agride a arquitetura. É a FNAC. Decadência. Desemprego. Prostituição. Dificuldade. A cidade anoitece deserta. Sem alma, sem vida. À noite as cidades exibem suas entranhas.
A catedral continua um esplendor...
Em Paris, uma chuva fina molha o chão das ruas, põe as folhas das árvores pensativas.
Como amazonense, adoro Paris. Manaus, que era miniatura parisiense. Na minha infância, a Casa Louvre, A la ville de Paris, Café da paz, Au bon marché, Livraria Palais Royal, Casa Sorbonne, Bijou . "Manaus, pequena Paris". No 'Café da paz', no 'Siroco', sorvetes de creme, em bolas. Taças finas. Em frente, o Teatro Amazonas, um monumento ao esplendor, à glória, ao grandioso e adágio do passado, com seus mortos, suas sobrecasacas, seus vestidos de seda rósea, as luvas, deslumbramento dos múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de reluzente e vívido ouro muito louco, Manaus rica, copia Paris. Comerciantes riquíssimos. Ostenta o Teatro Amazonas os seus reflexos de cristal. Milionários dedos jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, atleta, estípite. O enxalso, o frontão de canela. Galilé. Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias. Bissoc. Pâtisserie. Du sucre, des fruits, de la crème. A la ville de Paris, Au bon marché, Quartier du temple, Casa Louvre, Livraria Palais Royal na rua Municipal, n0 85, Livraria Universal, Agência Freitas, Casa Sorbonne dentro do Grande Hotel, a Confeitaria Bijou, a Padaria Progresso. Faroletes de pedra de morona e de puraquequara. Villa Fany. Cais dos Barés, Biblioteca Provincial. Um Serviço Telefônico serve a cidade. Manaus, a primeira cidade brasileira a ter eletricidade. Calçadas da Praça São Sebastião, em pedras portuguesas pretas e brancas, em ondas, alegorizavam o 'encontro das águas' Negro e Solimões (posteriormente imitadas na praia de Copacabana). Bondes elétricos da Manaus-traways. Veuve Clicquot, truffes, champignon. Huntley & Palmers, Cross & Blackwell. A Cork, a Pilsen, o Bordeaux, o fiambre, o Queijo da Serra da Estrella. Lagostas, a Goiabada Christalizada. Charteuse, Anizette. Champagne Duc de Reims. O Vermouth. Água de Vichy. Leite dos Alpes Suíços. Casacas inglesas, o H. J., o pongê, o filó. Bengalas, castão de ouro. Cartolas, luvas, perfumes franceses, lenços de seda. Pistolas de prata e cabo de marfim. Gramophones de Victor. Discos duplos de Caruso. Casas aviadoras. Manaus-Harbour. Tabuleiro de Xadrez. Óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia. A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária. Vidros de Quinino Labarraque. Óleo de Fígado de Bacalhau. Vinho Silva Araújo. Regulador da Madre. Pílulas Rosadas. Café Beirão. Winchesters, cabo encerado de mogno. Asilo de Mendicidade (construído pelo Comendador). Ponte da Imperatriz, Igarapé da Cachoeira Grande. A Serraria, no Igarapé do Espírito Santo. Banhos de no Igarapé das Sete Cacimbas. Buritizal. Jogos, no Parque Amazonense. Ida a Barcelos. Noite no Jirau. Muro do Leprosário do Aleixo. Vista da Bomba d’Água. Manaus-Belém, Manaus-Santa Isabel, Manaus-Iquitos, Manaus-Marari, Manaus-Santo Antônio do Madeira, Manaus-Belém-Baião. Gonçalves Dias no Hotel Cassina. Coelho Neto no palacete da rua Epaminondas. Euclides da Cunha no chalé da Villa Municipal. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se o Teatro Amazonas, em 1896 - a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária, importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da altura de um homem, tapetes persas - tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de firma americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil mansões luxuosas. Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O Teatro custou 10 mil vidas. Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, com cursos de Direito, Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras...
Annie quis passear no Jardin du Luxembourg, no dia de minha partida. No caminho, passando pela feira livre, debaixo da estação Duplex do Metrô, encontro um CD desconhecido de Nelson Freire. Andamos pelo bosque. A música dos tempos me hipnotizam, me transfiruram, me atordoa. Em pleno delírio, vôo. O Brasil logo ali, ao alcance da mão.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
OS MUNDOS OSCILANTES
Contam que, depois de cassada pelos militares, em 1969, Adalgisa Nery ficou sem dinheiro. Tinha 64 anos. Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1905. Em 1976 se internou, numa clínica de idosos de Jacarepaguá, no Rio, onde faleceu em 1980, aos 75 anos. Consta que Adalgisa, desamparada e pobre, quando na Itália o grande Murilo Mendes soube e de lá veio para lhe dar os quadros de Ismael Nery, ex-marido de Adalgisa, falecido em 1934. Murilo tinha sido o grande amigo de Ismael Nery. O pintor lhe dera os quadros antes de morrer. Dizem mesmo que todo quadro de Ismael era pintado exclusivamente para Murilo Mendes.
Assim o poeta ofereceu as obras de Nery à grande poetiza. Murilo era amigo de André Breton, René Char, Albert Camus, Magritte, foi traduzido por Ungaretti e, na Espanha, por Dámaso Alonso e Angel Crespo. Em 1972 recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Foi professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma e depois, na Universidade de Pisa. Murilo Mendes terminou a vida em plena glória. Adalgisa Nery terminou a vida esquecida e pobre. Hoje, nenhum de seus livros é lido, ou melhor, publicado.
Adalgisa Nery casou-se depois da morte de Ismael Nery com Lourival Fontes, chefe do DIP de Vargas. Separou-se em 1953. Em 54, tornou-se colunista diária do jornal «Última Hora». Eleita deputada à Assembléia Nacional Constituinte em 1960, pelo Estado da Guanabara (Partido Socialista Brasileiro). Em 1962 é novamente eleita deputada estadual, pelo PTB. Em 1966, é reeleita, agora no MDB, ano em que se desligaria do jornal Última Hora. Em 1969 teve o seu mandato e direitos políticos cassados pelo AI-5 da ditadura militar. Eu gostaria de ler sua coluna em «Última hora», quem publicará?
Murilo Mendes nasceu em 1901, em Juiz de Fora, Minas Gerais e em 1920 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde seria o maior amigo de Ismael Nery. Ismael era de Belém, e nasceu em 1900, morrendo em 1934, muito jovem. Ismael era um rapagão bonito. Depois da morte de Ismael Nery, em 1934, Murilo se converteu ao catolicismo. Mas são informações que circulam nas conversas literárias e carecem de confirmação.
Em Adalgisa Nery, «a poesia se esfrega nos seres e nas coisas» (“Mundos oscilantes”, José Olympio, 1962, RJ). Ela sente a força misteriosa da modernidade, algo animal, de circo, de locomotiva, carinho e aeroplano, alegre e triste, socialista:
Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!
Quando estava no poder, Adalgisa Nery tinha a casa freqüentada pelos grandes intelectuais da época, como Aníbal Machado, Álvaro Moreira, Jorge de Lima, Mário Pedrosa, Manuel Bandeira e o próprio Murilo Mendes. Ela, famosa, talentosa, grande escritora, escrevia em «O jornal» e em «O cruzeiro», antes da sua coluna diária. Era bonita, socialista, sensual, polêmica, avançada e amante, No «poema da amante», exemplo de sua poética amorosa, diz ela:
Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que está presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda está ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
Desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
(Mundos oscilantes. José Olympio, 1962, RJ )
Os títulos eram femininos e ousados, como «Eu em ti» (1937, poesia), «A mulher ausente» (1940, poesia), «A imaginária» (1959, romance). Escreveu poemas eróticos extraordinários. A temática passional, quente, neo-romântica. Ela ainda seria lida com prazer, hoje, e espero que não esteja esquecida simplesmente porque era socialista.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
MURILO MENDES
PEDRA E ÁGUA
Toda vez que se lê um poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados dos pontos cardeais, e tudo, cada leitor pode ler-se ali, ver-se ali, ir por ali para um ponto desconhecido. É o poema 'Pedra e água', de Murilo Mendes:
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
Ora, o que é esta 'mulher sem fim'?
Será a mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe natureza eternamente produtiva e úbere de vida renovável, abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas se inunda no infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na atemporalidade, no espaço largo e no espaço tão amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas, na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher básica e buscada, retratada na memória, a mulher futura ou possível, a que vive dentro de nós mesmos como o Outro Obscuro e Insaciável, aquela que não existe no mundo externo, porque no externo não está mais do que no aquém do objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é essa que é sem fim, e portanto sem começo, que tudo o que termina começou um dia, e se não tem término não nasceu, é a não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a ser, a aparecer, a crescer.
Oh amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te encontras? Por quem és, responde, acontece, mostra-me o mapa e o rosto da rota a via de acesso para a tua realidade, infinita amada?
Esta mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a todas as noites, nas noites insaciadas sobre outras noites, aquelas que se sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se retira nunca?
Ela é a musa, o motivo do poeta, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção, a criadora e a mãe que socorre.
«Essa mulher sem fim, e a noite sobre a noite» - só, em si, é uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas lástimas e alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas.
Sim, essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas carícias e idas, superfícies e sedas, nas redes, máscaras e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca esquecida, dessa raiz funda no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade, de nome familiar em solidão,
Caminhamos a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas vagas desse trafegar oceânico pelos descaminhos de nossas aspirações e esquecimentos.
Essa mãe é a família e a natural beleza da nossa moldura e mito, pátria e lar.
Espuma do mar eternamente e a pedra.
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domingo, 17 de fevereiro de 2008
sábado, 16 de fevereiro de 2008
RAUL DE AZEVEDO
RAUL DE AZEVEDO
RAUL DE AZEVEDO - Agnello Bittencourt
Raul de Azevedo nasceu a 3 de fevereiro de 1875, na cidade de S. Luiz do Maranhão, falecendo a 27 de abril de 1957, no Rio de Janeiro, sendo sepultado no Cemitério de São João Batista.
Foram seus pais Belmiro Paes de Azevedo e Francisca Rosa de Brito. Fez seus estudos na cidade natal, não chegando, porém, a realizar nenhum curso de ensino superior. Sua aguda inteligência e contÍnua leitura, baseada em ótima inclinação filosófica, lhe deram uma cultura bem larga e profunda, nos objetivos de sua vida burocrática e literária. Viu, no Amazonas, a estrela polar do seu destino de homem de Sociedade.
Para lá se dirigiu, na qualidade de jornalista, procurando um lugar ao sol. Foi festivamente recebido e, logo, é convidado pelo governo do Capitão Fileto Pires Ferreira para exercer a alta função de Secretário Geral do Estado, cargo esse que lhe permitiu ficar em contacto com o mundo oficial e com a elite da população. Foi o seu ponto de partida numa estrada que teria de per lustrar por mais de 65 anos, ora transitando por cima de flores, ora de espinhos.
Uma das características da compleição moral de Raul de Aze vedo, foi a lealdade posta a prova de fogo nos entrechoques do partidarismo, quando os cameleões da política aproveitam a oportunidade para mudar de cor, procurando saber para onde se inclina o fiel da balança.
Convém realçar esse procedimento das almas nobres, hoje raro, reportando-nos a um episódio de antanho com o qual se concretizou a renúncia de Fileto Pires Ferreira, alijando-o do governo para o qual fora eleito.
Fileto que se achava fora do Estado, uma vez em Belém, sabedor do que se passava em Manaus freta um navio para imediatamente regressar. No meio da viagem é cientificado de que Manaus estava em pé de guerra e ali não desembarcaria. O cabo telegráfico sub-fluvial estava interrompido, no momento. Sabe-se naquela que o navio em que viajava S. Excia. partira para aportar em dia certo, pela manhã. Com receio da aventura, volta a Belém, enquanto que na outra capital, de nada se informa. Raul de Azevedo, Redator-Chefe do “Rio Negro”, órgão do seu Partido e do governo alijado, prepara um número especial para a recepção em “hora-certa”. Nesse número, havia um noticiário bombástico em que se avisava haver S. Excia. chegado e que girândolas de foguetes estrugiram nos ares, o povo se apinhava no litoral dando vivas a S. Excia. e que o Sr. Dr. F. proferiu um empolgante e comovido discurso de agradecimento, bem assim que o Coronel Ramalho Júnior ainda no Poder fugiu com seus amigos. O “Rio Negro” já havia sido distribuído pela madrugada e pela manhã do “dia certo”. Corre o dia todo e nada de S. Excia. Somente à noite é que realmente Manaus foi informada, pela chegada de outra embarcação, do que acontecera. A antecipação do noticiário do órgão oficioso foi um grande “tableau”; gargalhadas se davam na cidade. E Raul de Azevedo, vexadíssimo, teria de conjecturar uma explicação. E achou-a, dizendo, no dia seguinte, em outro jornal, que tudo resultou de um erro dos revisores (como esses auxiliares da imprensa têm as costas largas...); que todos os verbos do noticiário estavam no futuro e que eles, por um descuido, passaram-no para o pretérito perfeito... Esse “dia certo” foi fatídico por ser o último para aquele jornal e para o Partido de Raul. Foi o “canto de cisne” de uma situação do “consumatum est”, da qual Campos Salles, então Presidente da República não quiz tomar conhecimento. Esta explicação de um fato escandaloso e deprimente para o Amazonas parece uma pertinência pueril, no meio de uma biografia. Passou para a História e da geração atual, pouca gente a conhece.
Raul de Azevedo caíra de pé. Aparentemente derrotado, para quem o jornalismo não era apenas um ofício, mas um sacerdócio, não ficou desempregado pois sua lealdade ao amigo, foi-lhe uma recomendação.
Entrado na política e no apreço dos homens, fez-se Deputado à Assembléia Legislativa por várias vezes como em cargos de importância e de confiança dos altos Poderes do Estado. Serviu de Chefe de Gabinete de vários governadores, destacadamente de Silvério Nery e Antônio Bittencourt. Foi Cônsul do Chile por muitos anos e exerceu o desempenho de Comissões importantes do Estado e Federal. Fundou vários jornais. Concorreu para criar algumas associações culturais e científicas, entre outras a Academia Amazonense de Letras e o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Sua função permanente foi a de Diretor do Departamento dos Correios e Telégrafos no Amazonas, em Juiz de Fora e no Rio de Janeiro, servindo de Diretor Geral por algumas vezes. Não conheci melhor burocrata, sob o ponto de vista de dinamismo e probidade. Com ele, tudo andava na linha. Os seus Relatórios constituem atestados de quanto pode um homem na direção de um serviço imenso, complexo e de enorme pessoal.
Raul de Azevedo aposentou-se nesse Departamento do Serviço Público Federal. Aproveitava suas férias em viagens pela Europa. Era um grande admirador de Paris, onde esteve creio que por três vezes. Como jornalista e publicista foi dos mais ativos. Sua bibliografia conta cerca de 30 obras, fora os folhetos e numerosos artigos de jornais. Vejamos, dentre outros livros, os seguintes: “Doutor Renato”, “Tríplice Aliança”, “Amores de Gente Nova”, “Onde está a felicidade?” “Roseiral”, “Aquela Mulher”, “Amigos e Amigas”, “Senhores e Senhoritas”, “Homens e Livros”, “Alma inquieta das mulheres”, “Aspectos e Sensações”, “Louras do Sul, Morenas do Norte”, “Meu livro de Saudades”. Os livros do escritor, com exceção de dois, pararam na primeira edição.
A Raul de Azevedo não faltavam qualidades para realizar sempre e sempre um bom livro. Não seja por isso que devamos menosprezar um homem que teve, na sua psiquê, a mania absurda, em plena velhice, amor às jovens, ainda que em retrato desnudo, diante de sua banca de trabalho, para achar inspiração para novos romances.
Raul de Azevedo foi casado, por duas vezes. No primeiro casamento com a Sta. Julieta Lessa, de cujo enlace nasceram o Dr. Herbert Lessa de Azevedo, assassinado tragicamente em Coari e a Sta. Marilda Lessa de Azevedo, alta funcionária do Ministério da Fazenda. E no segundo matrimônio com a Sta. Camélia Cruz, com quem teve duas filhas.
Devo reafirmar que o Coronel Raul de Azevedo — assim o chamavam — honesto, culto, trabalhador, morreu pobre, jamais possuindo uma casa própria. Também não foi um perdulário. Amou as jovens, louras e morenas, como amou as flores, os perfumes, o teatro, a música. E partiu para o Oriente Eterno, com saudade desta vida, como se estivesse nos seus vinte anos.
(Agnello Bittencourt. Dicionário amazonense de biografias. Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1973. pp.421-423).
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ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA (A.COUTINHO & J.GALANTE DE SOUSA):
AZEVEDO, Raul de (São Luís MA, 3 fev. 1875 — Rio de Janeiro, RJ, 29 abr. 1957), romancista, contista, teatrólogo, crítico, ensaísta, conferencista, político, da Acad. Amaz. Letr., Acad. Maranh. Letr., Acad. Cear. Letr., Mina Literária (Belém, PA, 1895- 1899). Pseud.: Iberê, Raulim. BIBL.: Artigos e crônicas. 1896; Ternuras. 1896 (contos); Na rua. 1902 (crôn.); A esmo. 1903 (crôn.); Doutor Renato. 1903 (rom.); Homens e livros. 1903 (crít.); Tríplice aliança. 1907 (rom.); Aspectos e sensações. 1909 (crôn.); Terra a terra. 1909 (crôn.); D’além mar. 1913 (viag.); Vida elegante. 1913 (contos); Amores de gente nova. 1916 (rom.); Confabulações. 1919 (ens.); Onde está a felicidade. 1919 (rom.); Amigos e amigos. 1920 (misc.); A alma inquieta das mulheres. 1924 (confer.); Senhoras e senhorinhas. 1924 (contos); Roseiral. 1932 (rom.); Hora de sol. 1933 (misc.); Aquela mulher 1934 (rom.); Bazar de livros. 1934 (crít.); Meu livro de saudades. 1938 (crôn.); Vida dos outros. 1938; Vida e morte de Stefan Zweig. 1942 (biogr.); Louras do sul, morenas do norte. 1947 (rom.); Terras e homens. 1948 (ens.); Brancos e pretos. 1955 (rom.); Elisabete. 1955 (contos e teatro); Dona Beija. 1957 (ens.). Fundou e dirigiu a rev. Aspectos, Rio de Janeiro. Colab. em periódicos de Manaus, AM, Fortaleza, CE, e Rio de Janeiro. REF.: Albuquerque, Medeiros e. Páginas de crítica. 1920. p. 169-76; Blake Dic., VII, 101; Coutinho Brasil, 1, 118; Ferreira, Carlos. Feituras e feições. 1905. p. 260-3; Inocêncio Dic. XVIII, 341; Lima Estudos, 1, 292; Meneses Dic. , 78; Ribeiro Crítica, III, 289-91; Souza Teatro, II, 93. ICON.: Confabulações. 1919 (do autor); Ilust. Bras., maio/jun. 1957.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008
Elpídio Pereira ( Márcio Páscoa )
O compositor e violinista Elpídio Pereira veio para o Amazonas numa leva de valores intelectuais maranhenses, que incluía, dentre outros, Eduardo Ribeiro e Raul de Azevedo.
Nascido em Caxias (MA) em 16 de outubro de 1872, Elpídio Pereira tomou seus primeiros estudos musicais com os mestres de banda de sua cidade natal; primeiro Antônio Cariman, depois Antônio Coutinho. Seus pais reconheceram seu talento e interesse e mandaram-no para Lisboa, onde entrou no conservatório com o fito de se preparar para o exame de admissão no Conservatório de Paris. Indo para esta escola francesa, passou a freqüentar a classe de harmonia do professor Taudou, na qualidade de aluno-ouvinte, oportunidade em que conheceu Francisco Braga, que também tornar-se-ia compositor. Neste meio tempo, mantinha aulas particulares de harmonia com Domenico Ferroni, posto que seu objetivo maior era o domínio da composição musical.
Mas, entre 1892 e 1893, uma grave crise brotava no Brasil e atingiu diretamente o pai de Elpídio Pereira que, sem meios de continuar provendo o sustento do filho, chamou-o de volta. Foi neste momento que o compositor veio para o Amazonas pela primeira vez. Teve uma breve estada em Belém, onde permaneceu algum tempo, mas o seu destino era Manaus, posto que sua família tinha aqui membros e amigos.
Em Manaus, Elpídio Pereira encontrou 2 irmãos e o Visconde de Vila Gião, amigo chegado da família, e recebeu um convite de Adelelmo do Nascimento, professor público de música e afamado concertista, para participar de um recital, onde poderia tocar 2 peças. Elpídio Pereira escolheu então uma composição sua, a «Serenade Brasilienne», para a primeira vez em que sua obra seria ouvida no Brasil. Foi visitar a família em Caxias, oportunidade em que deu concertos em Belém, Teresina e São Luís. Na capital maranhense, Elpídio Pereira foi convidado por Joaquim Franco, que ele conhecera em Manaus, a integrar a orquestra da companhia lírica que correria o norte naquela temporada. Após a estação lírica fixou-se por 2 anos em Belém, até que o pai foi trabalhar em Manaus, como agente da Companhia de Navegação Maranhense. De volta a Manaus, Elpídio Pereira trabalhou de início com o pai, e depois quando um incêndio destruiu os bens da família, na Casa Marius & Levy.
Mas esta situação não duraria muito tempo. Com a aposentadoria de Adelelmo do Nascimento das suas funções do Gymnasio Amazonense, Elpídio Pereira foi chamado para ocupar interinamente a vaga, de vez que privava da amizade do chefe de gabinete do Governador Fileto Pires, o escritor e crítico teatral Raul de Azevedo. Foi justamente este amigo quem sugeriu a Elpídio Pereira sua nova ida para a França, desta vez como bolsista do Estado do Amazonas. Neste meio tempo em Manaus, o musicista maranhense já se envolvera com os freqüentes concertos festivos da Catedral. Sua estada em Paris como bolsista do Amazonas durou de 1898 a 1902, tendo retomado seus estudos com Ferroni. Antes de seu retorno a Manaus, deu 2 concertos na Sala Hoche, regendo a Orquestra dos Concerts Lanmoureux, que executava exclusivamente peças suas. No retorno ao Brasil, daria ainda outro concerto em Lisboa.
Chegado a Manaus em maio de 1902 fez vários concertos com obras suas, com orquestra e grupo de câmara, tendo tomado parte o maestro Joaquim Franco, os violinistas Lourival Muniz, Gentil Bittencourt, Armando Lameira, o violoncelista Cesare Vesce e muitos outros, quase todos ligados à Academia Amazonense de Belas Artes.
Elpídio Pereira partiu então para uma turnê a capitais de outros estados brasileiros, dentre eles Rio de Janeiro e São Paulo, divulgando as obras que compusera no gozo da bolsa de estudos que o Amazonas lhe proporcionara. Em 1906, no início da gestão de Antonio Constatino Nery e com a perspectiva de receber novo estipêndio para retornar a seus estudos na França, Elpídio Pereira retornou ao Amazonas e permanceu mais 2 anos em Manaus.
Além de habituais concertos, inclusive na condição de organizador, redigiu as críticas operísticas para o jornal «A Platéa», que com seus 14 números cobriu a temporada lírica de 1907. Utilizava o pseudônimo de Elpis, visto que chegou a se apresentar na Catedral em um concerto com os membros da Companhia Lírica Francesa deste ano, trazida por Joaquim Franco.
Ainda em 1907, no mês de maio, 2 bandas militares e um coro infantil de mil vozes executaram o Hino Escolar do Amazonas, composto pelo maranhense.
Entretanto, mudanças no mando do governo estadual apagaram de vez as expectativas de Elpídio Pereira em receber nova subvenção do Amazonas. Ele ainda permaneceu em Manaus até abril de 1908, retirando-se depois para o Rio de Janeiro. Na capital carioca conseguiu uma bolsa do governo federal e retornou à França em 1913. Em 1921 obteve a nomeação de auxiliar do Consulado do Brasil, em Paris, de onde se aposentou em 1940, retornando definitivamente ao Rio de Janeiro, onde faleceu em 13 de abril de 1961.
Elpídio Pereira deixou uma ópera, chamada «Calabar», sobre o personagem histórico. Segundo sua auto-biografia ele deve ter começado a concebê-la ainda nos anos em que esteve ligado ao Amazonas. Entretanto, tendo terminado de escrevê-la somente nos anos 10, encontrou alguma resistência para montá-la, havendo quem o criticasse por ter escolhido um personagem titular de conduta considerada duvidosa. Elpídio Pereira pode ter escolhido o assunto influenciado pelas correntes políticas libertárias que abundavam no Norte do Brasil, não sendo a sua ópera a primeira escrita na Amazônia sob tais auspícios. De qualquer forma, «Calabar» não conseguiu ser montada e uma execução parcial foi feita em meados dos anos 10.
A obra de maior êxito de Elpídio Pereira foi o balé «Les Pommes du Vosin» montado no teatro parisiense «Gaité Lyrique», com enorme sucesso, chegando a 76 representações consecutivas.
terça-feira, 12 de fevereiro de 2008
AMÉRICA DO SUL
Jorge Tufic
Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bizontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.
II
Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.
III
Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos deixados a caminho?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?
Numa rede de dormir
os brancos degustam teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.
IV
Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam,
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.
V
Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.
VI
A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.
Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.
Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?
Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.
VII
Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
semelha um tigre às costas de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.
VIII
Nos porões soterrados debaixo
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.
Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
exterioriza o silêncio dos mortos na estática
de teus músculos altivos
prateados de neve.
A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.
IX (a lição dos rios)
Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.
Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.
Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.
X (balada enquanto seja)
Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.
Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.
Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.
Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.
XI (Thiago de Mello)
Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.
Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.
Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!
Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,
retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.
XII (a Pedra do Reino)
Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.
XIII (entrefala e louvação)
Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.
Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.
Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.
Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.
Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.
Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.
XIV (sursum corda habemus)
O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.
Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na madrugada,
eles rastreiam fragrâncias, matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.
Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.
Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.
Oh América do Sul.
(publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008.
Jorge Tufic
Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bizontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.
II
Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.
III
Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos deixados a caminho?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?
Numa rede de dormir
os brancos degustam teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.
IV
Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam,
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.
V
Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.
VI
A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.
Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.
Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?
Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.
VII
Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
semelha um tigre às costas de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.
VIII
Nos porões soterrados debaixo
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.
Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
exterioriza o silêncio dos mortos na estática
de teus músculos altivos
prateados de neve.
A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.
IX (a lição dos rios)
Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.
Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.
Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.
X (balada enquanto seja)
Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.
Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.
Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.
Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.
XI (Thiago de Mello)
Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.
Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.
Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!
Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,
retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.
XII (a Pedra do Reino)
Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.
XIII (entrefala e louvação)
Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.
Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.
Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.
Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.
Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.
Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.
XIV (sursum corda habemus)
O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.
Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na madrugada,
eles rastreiam fragrâncias, matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.
Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.
Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.
Oh América do Sul.
(publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008
A VÃ FEITIÇARIA
O feiticeiro Lêdo Ivo escreveu:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
Encontro este poema, que li quase menino, encontro ao acaso, folheando a «Poesia completa» de Lêdo Ivo, poema que recito quase de cor, como tudo por que a gente apaixona na adolescência, mas que, hoje vejo, não nunca lhe penetrei os labirintos de sentido contidos escondidos entre aqueles misteriosos versos, meio herméticos, daquela feitiçaria... Mas necessita a poesia ser realmente compreendida? Porque eu continuo lendo, hoje relendo, entoando esses versos e vejo que bailo na musicalidade de suas sílabas, seu invento, seu encanto, e me delicio pelo que nada sei, hipnotizado por suas metáforas feiticeiras.
Os primeiros versos dizem:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Ora, agora, vejo, perturbado, emocionado, que o sujeito poético inventou a flor, o orvalho, o espelho, o amor, a vida, a rosa eterna, a rosa!, a rosa mística!, o sonho, o sonho de um sonho, a vida, o vento, a rosa eterna, o mundo vão...
Sim, eu logo que tomo este gigantesco volume das «Poesias completas» (são 1099 páginas!), logo eu senti que o encontraria, por uma intuição de leitor deste Ivo - mas logo me desviei e comecei lendo o «Estudo introdutório» do poeta Ivan Junqueira, que me convenceu e agradou. Ivo é, segundo Ivan, aquele «lírico elegíaco», cujo enigma é não seguir o breviário estético de sua geração de 45, ainda que, como todos os outros, nunca se libertou da «idéia parnasiana» que em todos nós nasce, morre e renasce... Desde Rimbaud. Aliás, diz Ivan Junqueira, que o verso «desabo em ti como um bando de pássaros» poderia ter sido escrito por Rimbaud, assim como:
Muda-se a noite em dia porque existes
feminina e total entre os meus braços
E, diríamos nós, que os versos:
e o tempo entronizado sai da mó
que transforma as austrálias em diademas
São dos mais belos daquela poética rimbaudiana de que todos os poetas nunca se libertaram de todo, por serem contagiados pelo barco bêbado da invenção da poesia moderna - e Lêdo Ivo também, mas logo se libertou, posteriormente.
Cheio de sortilégios é Lêdo Ivo poeta, feitiçaria nada vã da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna que vai além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página da filósofa Hannah Arendt em que fez a distinção entre eternidade e imortalidade.
A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.
A nossa feitiçaria é vã.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
O feiticeiro Lêdo Ivo escreveu:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
Encontro este poema, que li quase menino, encontro ao acaso, folheando a «Poesia completa» de Lêdo Ivo, poema que recito quase de cor, como tudo por que a gente apaixona na adolescência, mas que, hoje vejo, não nunca lhe penetrei os labirintos de sentido contidos escondidos entre aqueles misteriosos versos, meio herméticos, daquela feitiçaria... Mas necessita a poesia ser realmente compreendida? Porque eu continuo lendo, hoje relendo, entoando esses versos e vejo que bailo na musicalidade de suas sílabas, seu invento, seu encanto, e me delicio pelo que nada sei, hipnotizado por suas metáforas feiticeiras.
Os primeiros versos dizem:
Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Ora, agora, vejo, perturbado, emocionado, que o sujeito poético inventou a flor, o orvalho, o espelho, o amor, a vida, a rosa eterna, a rosa!, a rosa mística!, o sonho, o sonho de um sonho, a vida, o vento, a rosa eterna, o mundo vão...
Sim, eu logo que tomo este gigantesco volume das «Poesias completas» (são 1099 páginas!), logo eu senti que o encontraria, por uma intuição de leitor deste Ivo - mas logo me desviei e comecei lendo o «Estudo introdutório» do poeta Ivan Junqueira, que me convenceu e agradou. Ivo é, segundo Ivan, aquele «lírico elegíaco», cujo enigma é não seguir o breviário estético de sua geração de 45, ainda que, como todos os outros, nunca se libertou da «idéia parnasiana» que em todos nós nasce, morre e renasce... Desde Rimbaud. Aliás, diz Ivan Junqueira, que o verso «desabo em ti como um bando de pássaros» poderia ter sido escrito por Rimbaud, assim como:
Muda-se a noite em dia porque existes
feminina e total entre os meus braços
E, diríamos nós, que os versos:
e o tempo entronizado sai da mó
que transforma as austrálias em diademas
São dos mais belos daquela poética rimbaudiana de que todos os poetas nunca se libertaram de todo, por serem contagiados pelo barco bêbado da invenção da poesia moderna - e Lêdo Ivo também, mas logo se libertou, posteriormente.
Cheio de sortilégios é Lêdo Ivo poeta, feitiçaria nada vã da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna que vai além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página da filósofa Hannah Arendt em que fez a distinção entre eternidade e imortalidade.
A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.
A nossa feitiçaria é vã.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.
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