segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A amizade é um refúgio

A amizade é um refúgio











A amizade é um refúgio


Rogel Samuel



Quando somos jovens temos naturalmente muitos amigos, espontaneamente. São colegas de rua, de colégio, de faculdade.

Na meia-idade diminui o número de amigos.

Mas na velhice (e eu me incluo aqui) são raros os amigos. Muitos já morreram. Outros mudaram-se, moram longe, em outra cidade, ou país.

Também o velho fica chato, fala menos, reclama mais, sente dores, seu corpo não agüenta longos encontros nos bares, pára de beber, tem de fazer dieta e por aí vai.

As velhas amizades permanecem. Mas há um problema: as pessoas mudam, ficam reacionárias, repetitivas, conversar com um velho às vezes é já saber o que ele vai dizer.

E há velhos que param de ler, ou só se limitam a reler os velhos livros já sabidos.

Algumas pessoas até ficam desagradáveis, só falam de filhos e netos, ou de doença.

Mas para mim o pior velho é aquele cujas opiniões são formadas pela televisão, pela imprensa em geral (que no Brasil mente sem pudor).

"A amizade é um refúgio, diz Dugpa Rinpochê, uma comunidade sagrada, fraterna. É um dos "refúgios preciosos" de que falam os diferentes Budas. No tumulto do mundo moderno, o homem e a mulher devem encontrar refúgio. Quando se encontrou refúgio, os problemas desaparecem como um vôo de pássaros perturbados pela pedra. Perdem o seu peso, e põem-se a dançar.

"Precisarias da força ascética do eremita, do mestre de sabedoria, para te libertar a ti próprio da cegueira e da ilusão. Hoje, o homem moderno não pode fazer nada sem a ajuda dos outros. Não vive nas solidões do Tibete, fora do mundo, protegido dos profanos pelo recinto sagrado do mosteiro. É o diálogo, a partilha, a reciprocidade que nos libertam, e nos trazem de novo à nascente Única, comum a todos os seres", conclui ele.

domingo, 26 de agosto de 2018

estrada clara - rogel samuel

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas em pé, atividades ao ar livre, natureza e água
estrada clara - rogel samuel
depois de alguns novos passos
cheguei aquela estrada amada
simples, reta, clara, nada
impedia ao reino me levava
estrada clara

e os sóis e as madrugadas
pelos vales verdes e azuis
de repente me abriam
doce esplendor desse mundo
posso passar sem mais nada
vejo belas paisagens
entrada clara
depois de alguns passos
cheguei à estrada amada
estrada ao nada

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O PALÁCIO



Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho.

Nós retornávamos à elaboração do nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz. O Palácio (que era assim conhecida aquela construção que depois entrou em decadência, ruína e morte, depois da quebra da borracha), o límpido e repentino Palácio nos esperava na tranqüilidade dos seus pontos e ângulos com que nos acenava e encontrava com sua imortal bem-aventurança sobre placas de negras e primitivas águas vindas da origem da vida do mundo, nas faces do Igarapé do Inferno deslizavam as riquezas das cabeceiras do mundo, da Fronteira, do Inevitável, do Inexato, das Árvores do Princípio. Perdidas, devolutas, indemarcáveis... Sim, porque tudo a fortíssima codificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno, da construção, que aquilo era uma edificação (depois abandonada) de dois andares mais porão de procedimento art-nouveau cingida de finos gradis de ferro torneado em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas de elegante e efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decorando a escadaria de mármore torto e enfático, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias. Que majestade é algo que logo se sente à distância, pois de longe já dava para sentir a majestade e diferença, o interesse de se re-apropriar das sacadas e balcões que avançavam no ar... - mas tudo aquilo está hoje em ruína descontínua, mas tudo aquilo hoje não está e a minha descrição corresponde ao que era o Palácio há muitos anos na minha mocidade e na proliferação da minha memória perdida, ah, sim, porque estou velho mas não estou louco, e as minas no meio da floresta lá estão como cultura e substância ainda para confirmar a existência e elaboração. Vejo bem o corpo retorcido daquele evasivo edifício oitocentista (depois saqueado), no alto da terra-firme, plantado em relação a uma verdade naquele limite da Terra por conta de rios de sangue e de escândalo de toneladas de libras esterlinas de ouro reluzente de borracha - oh, Deuses!, porque existiu aquele luxo não admitido ou suposto, aquela desventura e extorsão, aquele desbarato dos prazeres da riqueza na sede do Seringal Manixi que era longe, muito longe, afastado de tudo, afastado de si, distante 3.100 km da cidade de Manaus ...

domingo, 19 de agosto de 2018

VIAGEM AO MARCO EXTREMO DE NÓS MESMOS

VIAGEM AO MARCO EXTREMO DE NÓS MESMOS

O TRAJETO DA VIAGEM OU A VIAGEM AO MARCO EXTREMO DE NÓS MESMOS

NEUZA MACHADO





"Porém embarcado chegaria em Manaus sem tropeços depois de 6 dias de viagem a 8 milhas por hora. E 2 dias mais tarde passava pela Boca do Purus, 5 dias após entrava na Foz do Juruá. Não navegávamos dia e noite? Na Foz do Juruá o Rio Solimões mede 12 km de largura e pássaros de vôo curto (o jacamim, o mutum, o cojubim) não conseguem atravessar, morrendo cansados afogados no fundo de ondas pinceladas de amarelo da travessia. Em 8 dias de navegação pelo Juruá chegávamos no Rio Tarauacá e atracávamos em São Felipe, de 45 casas, vila bonita, e arrumada. 9 dias depois entrávamos no Rio Jordão, de onde não prosseguiu o Barão, que não tinha calado, a gente seguindo desse modo de canoa pelo Igarapé Bom Jardim, subindo pois e encontrando nosso termo e destino, a ponta do nosso nó, o término, o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre ─ atingíamos finalmente o Igarapé do Inferno, limite do fim do mundo onde se encontrava, e envolto no peso de sua surpresa e fama, o lendário, o mítico, o infinito Seringal Manixi ─ 40 dias depois de minha partida de Belém, 3 meses e 5 dias desde a minha partida de Patos". (O Amante das Amazonas)

"Mas não disse que vinha à procura de Tio Genaro e meu irmão Antônio, aviados no Manixi. Não. Pois eles tinham sido trabalhadores seringueiros do Rio Jantiatuba, no Seringal Pixuna, a 1.270 milhas da cidade de Manaus, onde anos depois naufragaria o Alfredo. Eles freqüentaram o Rio Eiru, numa volta quase em sacado, e dali partiram em chata, barco e igarité até ao Rio Gregório, onde trabalharam para os franceses, e de lá partiram para o Rio Um, para o Paraná da Arrependida, aviados livres que eram, subindo o Tarauacá até o ponto onde dizem foi morto o filho de Euclides da Cunha, que delegado era, numa sublevação de seringueiros. Depois viajaram. E foram para o Riozinho do Leonel, seguiram para o Tejo, pelo Breu, pelo belo Igarapé Corumbam – o magnífico! –, pelo Hudson, pelo Paraná Pixuna, o Moa, o Juruá-mirim até o Paraná Ouro Preto onde, pelo Paraná das Minas entraram pelo Amônea, chegando ao Paraná dos Numas, perto do Paraná São João e de um furo sem nome que vai dar num lugar desconhecido". (O Amante das Amazonas)

Os aventureiros europeus, como os franceses e alemães, à época, por não se acharem os “donos” da Colônia, penetraram naquele templo de pureza mítica, conhecido como Floresta Amazônica, com a intenção evidente de apropriação do local. O fato era que os colonizadores espanhóis e/ou portugueses, cada um em seu tempo histórico, estavam mais preocupados com a costa brasileira, alvo de vários ataques de navios piratas (ingleses, holandeses, franceses), do que propriamente, por motivos óbvios, com a região amazônica da fronteira latino-americana: julgavam que terras tão inóspitas não iriam merecer a atenção dos aventureiros de outros reinos de Além-Mar. Por este aspecto, retomando as minhas inferências sobre o Manixi ficcional rogeliano, a partir do reconhecimento histórico de uma região sem igual, além de repensar a presença do personagem francês Pierre Bataillon, como chefe importante da região, medito sobre a presença missionária dos padres católicos alemães, na figura do personagem Frei Lothar, objetivando catequizar os indígenas e mestiços, mas sofrendo os males da expatriação, afundando-se no desmazelo corporal e no vício da bebida, e, conseqüentemente, na desilusão espiritual.


MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda da Serpente: Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O filho de Letícia


O filho de Letícia

Rogel Samuel

Ela estava grávida de oito meses quando se viu no meio da guerra. As balas atravessavam os ares, zumbiam no espaço, atravessavam o céu. Bombas explodiam por todos os lados. Era julho de 1769. Seu marido estava lá, jovem oficial de 20 anos, lutava. Ela, com 19 anos de idade, destemida, mas gestante, tinha vindo acompanhar a guerra de perto, por não abandonar o esposo, corajosa.

         Chefiados por Paoli, meses antes eles tinham vencido, expulsaram os franceses para o mar. Letícia, a linda Letícia, acampara próxima, com um filho de colo, para seguir a guerra de perto. Seu pai, seu avô também lutaram, primeiro na Itália, de onde provinham, depois ali, naquela ilha. Sabiam que o inimigo era muito forte, mas venceram.

Agora ela estava grávida outra vez. Os filhos, naquele pequeno país, a riqueza de uma família.  Quando seu primeiro filho nasceu, ela tinha quinze anos.

- Nossos filhos não serão escravos da França, dizia ela.

Mas logo o perigo aumentou, a França, o rei Luiz envia novas tropas, que desembarcaram na praia, bem perto de sua casa. O rei insistia em anexar aquela ilha genovesa no império. Maria Letícia fez levarem seus sete filhos para um abrigo nas altas montanhas e acompanhou Carlo, o marido, mesmo que grávida, na nova luta.

Perderam.

Paoli teve de fugir para Gênova. Carlo, seu ajudante de campo, compareceu ante o conquistador e capitula. Era julho de 1769.

No dia 15 de agosto do mesmo ano, Maria Letícia dá à luz um menino enfezado, raquítico, miúdo e feio.

Ela o chamou de Napolione.

Com o sobrenome do pai Carlo, que era de família de pequena nobreza, passou a chamar-se Napolione di Bonaparte, e depois Napoleão Bonaparte. 

Eis como nasceu na Córsega aquele de que nos fala Gonçalves de Magalhães, em “Napoleão em Waterloo”, de que transcrevo alguns versos:

Waterloo! ... Waterloo! ... Lição sublime
Este nome revela à Humanidade!
Um Oceano de pó, de fogo, e fumo
Aqui varreu o exército invencível,
Como a explosão outrora do Vesúvio
Até seus tetos inundou Pompéia.



Dizem que Napoleão foi inspirado por sua mãe, Maria Letícia, que por isso alcançou tantas vitórias e a glória em que até hoje brilha o seu nome.  


(QUADRO DE DAVID)

domingo, 12 de agosto de 2018

MEU PAI

MEU PAI

MEU PAI

Rogel Samuel

Um homem corta a grama
Do outro lado da rua.
Meu pai se foi há muitos anos,
Mas a lembrança dele me desperta.
Vem de certa cena antiga
Onde aparece com seu sorrir
E o mesmo jogo de andar
Lançando os braços para trás.
Um homem corta a grama no seu quintal.
E muito tempo se passou
E não sei por que subitamente
Choro sua morte.
Tudo está em seu lugar
E por que me vejo triste?
Meu pai já não existe
Ele se decompôs no ar.
Um velho corta a grande grama
Da outra margem desta rua.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE

EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE


EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE 

Rogel Samuel 

Faço aqui uma breve tentativa de ensaio crítico sobre este grande poeta – e como “ensaio”, algo provisório, limitado a alguns poemas de “Harpa submersa” (1952), para mim reveladores, indicadores daquela arte do poeta acreano, no centenário de seu nascimento. Até hoje, ele ainda é o poeta mais lido do Brasil, porque popular, fácil, melódico, oral. De certo modo, o maior poeta para o povo brasileiro. Famosíssimo mesmo hoje, tantos anos depois de sua morte (1987), publicou 36 livros, um romance, 2 LPs, várias músicas, manteve programa de rádio, é nome de rua no Rio de Janeiro e em várias cidades brasileiras. Suas músicas foram gravadas por Orlando Silva, Nana Caymmi, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Agnaldo Timóteo, etc. Foi professor do Colégio Pedro II, no tempo em que lá só chegavam grandes mestres.  Enfim, uma vida plena e gloriosa. Morreu aos 73 anos. A obra literária, sua poética, se confunde com a sua ideologia política, que ele escreveu para povo, para o leitor semialfabetizado, rural, proletário, operário, para as belas normalistas suburbanas, que com elas queria comunicar-se, para as massas, deu voz às massas, como poeta. Creio que foi o único parlamentar brasileiro moderno que conseguiu eleger-se como poeta, com a fama de Poeta, com a popularidade de seus livros, que eram publicados e vendidos aos milhares, mesmo no interior brasileiro, em papel jornal pela Editora Vecchi. “Amo!” vendeu 80 mil. Ele foi o único poeta brasileiro que vendeu mais de um milhão de livros. JG por volta dos 18/19 anos. Foto cedida por Rogel Samuel, retirada de livro do poeta. Nasceu em 20 de maio de 1914, em Tarauacá (que na época devia ser uma pequena vila na beira do rio), no Acre. Curso primário no Acre, secundário nos Colégios Anglo-Americano e Pedro II do Rio. Em 1931, ainda estudante, publicou um poema no “Correio da Manhã”, depois transcrito no popular “Almanaque Bertand”, em 1932. Em 1932, no Externato Pedro II, foi escolhido “Príncipe dos Poetas”, saudado por Coelho Neto. Estudou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Foi orador oficial do CACO, da União Democrática Estudantil, precursora da UNE, da Associação Universitária.  Foi locutor e redator da Rádio Nacional, Tupi e Eldorado. Em Coimbra, recebeu o título de “estudante honorário” e na Alemanha fez Curso de Extensão Cultural na Universidade de Berlim. Elegeu-se Deputado Federal em 1970, pela Guanabara, reelegendo-se para o terceiro mandato em 1978. Ocupou a vice-liderança do MDB e a presidência da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados. Só não foi reeleito pela 4ª vez devido na uma greve dos Correios, que (dizem) o deixou endividado e deprimido, morrendo anos depois, em 1987, creio que em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Ele adorava Friburgo. Politicamente, era homem de esquerda, desde estudante, quando combateu o “Estado Novo”. Preso e perseguido várias vezes. Deixou de ser orador de sua turma por estar detido na Vila Militar, em 1937.    Ficou famoso como Poeta do Povo e da Mocidade, pela mensagem socialista da sua obra lírica. Um dia, uma pessoa querendo me ofender, me disse: - Sabe quem gostou do seu livro?... A minha empregada! Isto não seria problema para o grande J. G. de Araújo Jorge, que se dirigia à massa proletária! Ele mesmo tem um livro que se chama “O poeta na praça” (1981). Sua poesia é oral, livre, espacial, fácil. Como não compreender sua poética? “O diabo é que não sou complicado / sempre sei o que sinto, o que quero, / pelo menos no momento que passa. // Por isso não tenho dificuldade em meu verso, / na verdade, não tenho nenhum trabalho, / ele vem e me diz: aqui estou! / Pois bem: que cante!” (“Harpa Submersa” 1952 ) No seu “Canto Banal”, ele diz: “Não te quero dizer palavras difíceis e deformantes / nem inventar imagens que embelezam talvez / mas que não reconheces. // Não tocarei música para os teus ouvidos / nem criarei poesia para a tua imaginação, / nem nada esculpirei que já não esteja em ti... // Nesse instante serei banal, / não respeitarei nem mesmo o silêncio, / nada que nos eleve além do plano em que estamos, / não serás estrela, não serás a nuvem, não serás a flor... // Quando chegares, e eu tomar teu corpo em meus braços nervosos, te direi apenas: / - meu amor!” (“Harpa Submersa” 1952). Ele também sabia dizer coisas como: “Meu coração, como uma harpa submersa, / jaz no fundo de que ignorado oceano? / Que estranhas correntes arrancam de suas cordas / sons líquidos e redondos que se perdem côncavos / antes de chegar à tona?... // Que peixes cegos tiram notas imprevistas / e se vão tontos na ondulação do canto que despertam / entre espectros calcários e verdes algas trementes? // Que músicas borbulhantes se agitam, nascidas / de que movimentos sem origens, incognoscíveis, / marcando um tempo morto e imensurável? // Meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem.” (“Harpa Submersa” 1952). Que significa Harpa Submersa? Harpa Submersa “/ Este retardatário gosto de pureza, / que me vem à boca do fundo coração, / não sei se é tédio ou o sinal de alvoradas renascentes. / Na areia branca onde a onda tenta apagar/ vestígios de pés e levar todas as conchas, / me deixo à espera de outras vagas carregadas de conchas / ou de passos que tatuem novas marcas / na epiderme do coração. / Pobre coração marinheiro, tão marcado, / de que canto obscuro desenterras imprevistamente / esta harpa cheia de algas e de sons submersos?” (“Harpa Submersa” 1952). A água é signo feminino. Ele sabe tocar o âmago da mulher, tocar a sua Harpa, o seu ventre submerso. O canto lhe vem à boca, do fundo do mar do coração. O canto nasce imprevisto do obscuro das algas, do som submerso daquela harpa cheia de algas, de pureza retardatária, do seu itinerário, das marcas na areia do chão de sua vida. Harpa Submersa significa “ventre submerso”. Ele é o poeta do sentimento, do amor, do itinerário da vida. Ele era um “poeta popular” sim.  E a depender dos leitores, o poeta da Harpa Submersa vai se tornar eterno. Ele não entrou na Academia Brasileira, mas se sentia “Imortal”: “Me sinto na academia, me sinto “imortal” / Não sei bem de que academia / nem sei a que morte me refiro / sei que neste momento me sinto como as crianças / e os animais / para quem a morte não é nem mesmo, / uma palavra que se lê.” Por que deputado? Por que o grande poeta do povo entrou na política? Por que foi um grande político de esquerda, tão grande que morreu pobre e endividado? Porque toda poesia é uma política. Política entendida como a arte de mudar o mundo. Era no mundo grego a “arte da polis”. A consciência comunicativa vigorava na polis grega, entre os homens livres. Mas a poesia só manifesta “arte” na medida em que está a serviço da “polis”. O mundo poético é o mundo da sociedade. A poesia, tal como ele a praticou, resume uma grande força política em prol do desenvolvimento espiritual dos povos. O poeta dá voz aos povos, como um profeta, as massas se identificam com ele. Ele não era porta-voz da classe dominante, da elite intelectual dominante, que combateu e por isso ela se vingou, apagando o seu nome das histórias da literatura. Mas ele não precisava disso. Sua legitimação vinha do povo. Ele fez política, fez política com a sua poesia de amor. Quando canta: “meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem” – tais peixes atuam, nadam no subconsciente revolucionário das massas proletárias. Poucos como ele sabem que a poesia pode mudar o mundo. Por isso ele não consta das histórias literárias e a crítica o ignora. O seu público é outro: JG escreveu para a massa proletária dos “homens tristes” (de que ele sempre fala), para o verdadeiro Brasil operário. Hoje ele seria aceito? Não sei. Talvez. Mas não pela mídia, que a elite dominante continua a mesma e mais entrincheirada. O Brasil está cheio de grandes poetas esquecidos da mídia e da crítica. Mesmo assim JG colecionou prêmios acadêmicos, como o “Prêmio Raul de Leoni”, para o melhor livro de poesia do ano, prêmio oferecido pela Academia Carioca de Letras, com o livro “Eterno motivo”, em 1943. E até agora ele vende muito: seus livros são os primeiros a vender nos sebos, quando aparecem. Suas obras estão quase todas na Internet. Mas em Tarauacá, onde nasceu o poeta, não existe nenhuma livraria... ________________________________________________________________________________ ROGEL SAMUEL é doutor em Letras e professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. Poeta, romancista, cronista, webjornalista. É autor, entre outros, de O Amante das Amazonas (2005, 2a edição), Novo Manual de Teoria Literária (2013, 6a reimpressão); Teatro Amazonas (2012); e Modernas Teorias Literárias: breve introdução (2014). Visite a página pessoal do autor: literaturarogelsamuel.blogspot.com

A linguagem da matéria

A linguagem da matéria


Baudelaire sobretudo, sobe, eleva-se para chegar ao centro de tudo, hegeliano, eleva-se para materializar-se, numa ascensão ao concreto, mergulho no coração do real da realidade, como no sistema de Hegel que faz a manifestação do saber concreto, que pretende ser a própria realidade que toma consciência de si mesma, quando a realidade torna-se sujeito de si mesma. A “experiência faz a consciência em seu apreender efetivo”. É a dialética que faz a logificação do concreto, a ascensão ao concreto, na ultrapassagem da fase anárquica para a conceituação lógica final. Lógica que não é do pensamento, mas lógica do movimento da realidade. Esta “ascenção” do abstrato ao concreto faz um movimento que atua no conceito da logificação da realidade, progredindo do entendimento à razão, e da razão que observa para a razão que opera e unifica. A poesia é a manifestação dessa logificação, dessa materialidade.

Elevação

Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,
Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.
Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os céus lúcidos e serenos!
Este cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manhã num vôo ascensional,
- Que plana sobre a vida a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS – ROGEL SAMUEL


VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS – ROGEL SAMUEL

Li hoje (2.8.2018) na Folha que cresce a violência contra os professores nas escolas de SP.
Eu tive um professor chamado Cascais, que era major do Exército, e tinha uma excelente didática. Ele era amigo de minha mãe.
No início de cada aula ele escrevia uma sinopse do seria explicado no quadro negro com aquela sua letra impecavelmente caligráfica. A mesma didática que anos mais tarde eu vi fazer por minha professora Titular de Didática Geral Irene Melo de Carvalho na Faculdade de Educação da UFRJ onde eu comecei a trabalhar. Irene era uma senhora elegante, da alta sociedade carioca, e não pegava no giz, pois quem escrevia era uma assistente.
Na primeira aula, nosso professor Cascais começou escrevendo sua sinopse quando um aluno jogou uma bolinha de papel no quadro que acabou rebatendo no seu rosto, dando-lhe um susto.
Ele interrompeu a escrita, voltou-se para a imensa turma, veio até a sua mesa, tirou um revólver do bolso e o pôs ali, e disse:
- Olhem... (respirava ofegante).
Todos ficamos petrificados.
- ... Eu não ponho aluno pra fora de aula, eu não reprovo pela bagunça, eu não chamo o diretor... eu dou uma “PORRADA“  na cara de quem fizer isso outra vez...
Era um homem alto e forte.
Pôs o revólver no bolso e voltou a escrever.
Nunca mais ninguém o perturbou.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

A leoa no jardim


















A leoa no jardim


Rogel Samuel


Li que os Estados Unidos estão sendo invadidos por cobras. Grandes serpentes. Apareceram, assustaram. Vieram do nada, foram abandonadas e cresceram. Cinco metros. Amazônicas, sucuris.

Lembro-me de, há muitos anos, quando eu morava sem Santa Teresa. Minha casa ficava encostada à floresta, à Floresta da Tijuca, uma beleza. Hoje seria um perigo. Rua Falet, hoje favela.

Pois tinha fugido uma leoa, que um milionário criava.

Todos se assustaram. E diariamente eu abria com cuidado a porta da rua, com medo de que houvesse uma leoa no jardim (depois capturada). 

MEU PROFESSOR DE HISTÓRIA – ROGEL SAMUEL


MEU PROFESSOR DE HISTÓRIA – ROGEL SAMUEL

Meu primeiro grande professor, que marcou a minha sensibilidade, foi de História Geral no Colégio Estadual do Amazonas (o prédio grande, na foto), um advogado comunista ateu chamado Rodrigo Otávio, grande orador, carismático, autoritário, culto, advogado trabalhista, e, com ser comunista e ateu, foi meu primeiro professor de Budismo ao falar de História Antiga, dos fundamentos do Budismo e da vida do próprio Sidharta, o Buda (como se sabe, no budismo não há crença nem Deus criador).
Ele era brilhante.
Depois de uma aula sua, os conceitos se estabeleciam claros.
Primeiramente porque terrível e teatral.
Impunha autoridade, terror e respeito, com o seu olhar feroz, com sua autoridade.
Começava a aula pondo o paletó nas costas da cadeira, sentando-se e tirava lentamente um cigarro do bolso.
Olhava desafiadoramente para a turma como se perguntasse: “Alguém ousa?”.
Punha o cigarro na boca (meio calvo, usava bigode e óculos, e tinha um enorme anel de advogado no dedo, um rubi cercado de diamantes).
E começava:
-- Na aula passada...
Aí ele acendia lentamente, teatralmente o cigarro, dava uma baforada no ar, e dizia:
- ... Nós nos reportávamos...
E era possível ouvir o silêncio entre suas palavras no ar. Eu não sei como ele conseguia aquilo, de repente aqueles endiabrados estavam sentiam ameaçados e hipnotizados, a motivação inicial era a própria presença dele mesmo.
E ia falando e com clareza, explicando, pelo materialismo histórico, cada vez mais claro, modulando a voz nasal, ora rápido, ora devagar, (eu me lembro até hoje)... E como não adotava nenhum livro didático, nós anotávamos apressadamente o que ele dizia, que não constava em nenhum livro, eram conclusões suas...
Sua didática era antiga, mas ele sabia manter o interesse não se sabe como, e ele nunca era chato, maçante ou cansativo.
Foi assim quando falou de Buda e do Budismo, foi assim quando explicou as guerras napoleônicas, foi assim quando nos deu uma soberba aula de Shakespeare.   
Em Manaus, no Amazonas.