segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

OH, ABRE ALAS, PARA O CARNAVAL ...


 OH, ABRE ALAS, PARA O CARNAVAL ...



Rogel Samuel

«Oh abre alas, que eu quero passar!...»  A lembrança mais antiga, a do carnaval de rua. Levavam cadeiras de casa para ver o desfile. Na Avenida. Nada de escola de samba. Blocos, carros, sem alegorias, só fantasias. Só alegria. Serpentinas, confetes coloridos. Muita lança-perfume. De vidro, de metal. Grandes, médias, pequenas. «Oh abre alas, que eu quero passar!...»  A Camélia, enorme boneca, passava. Saía do Olímpico. Pandeiros. No baile chic, ou de classe-média. Os ricaços da época tinham seu carnaval no Club, no Municipal, no Copa, classes sociais, distintas. Castas. O carnaval dos pobres não era ali. Pobre, pacífico no cotidiano, quando bebe quer brigar. Briga de morte. Basta uma gracinha para a sua «dama», sai morte, facadas, escopetadas, tiros. O álcool libera a morte, animal feroz. No dia seguinte,   

Acorda Maria Bonita 
Levanta, vem fazer o café, 
Que o dia já vem raiando 
E a polícia já está de pé

Assistimos à passagem do carnaval-alegria para o carnaval-espetáculo. Carnaval-mercadoria. Mecanizado. A degradante comercialização da arte do carnaval-bum-bum. A vendibilidade, dessacralização do popular. No carnaval as mulheres eram mais belas nas cabeças dos cabras embriagados: 
Se você fosse sincera, 
Ô ô ô ô, Aurora 
Veja só que bom que era, 
Ô ô ô ô, Aurora 
Um lindo apartamento 
Com porteiro e elevador 
E ar refrigerado 
Para os dias de calor 
Madame antes do nome 
Você teria agora 
Ô ô ô ô, Aurora... 

O carnaval do Rio na Rio Branco. Vinha da Central, descia a Presidente Vargas e terminava na Cinelândia. Ou melhor, terminava no Aterro, o dia nascendo, grande banho de mar à fantasia na praia do Flamengo. O Aterro, na madrugada, vivia o verdadeiro Carnaval, a orgia do Carnaval, liberado, reinando Baco. Não era iluminado, como agora. Agora predomina o mau-gosto, o grosseiro, a música automática da cultura de massa carnavalizada.

Bom era ver a descida do Salgueiro, do morro até a Saens Peña. Aquela majestade salgueirense, cantava: 

Apesar
de não possuir grande beleza
Chica da Silva
surgiu no seio
da mais alta nobreza
O contratador
João Fernandes de Oliveira
a comprou
para ser a sua companheira
E a mulata que era escrava
sentiu forte transformação
trocando o gemido da senzala
Pela fidalguia do salão

Talvez o mais belo samba-enredo de escola de samba de todos os tempos. Saiu da genialidade de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho, em 1963. A fantasia de Chica, usada por Isabel Valença, custou um milhão e trezentos mil. Tinha uma cauda de sete metros. As anáguas precisaram de armação de aço. A peruca media um metro e dez centímetros de altura. Ornada de pérolas. O Salgueiro investiu 40 milhões e 200 mil cruzeiros. Governo Lacerda. O enredo teve a colaboração de Joãozinho Trinta, a convite de Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona. Foi seu primeiro trabalho. 

Eu sou da lira
Não posso negar

Rosa de Ouro
é quem vai ganhar

Os novos sambas-enredo seguem o molde morto do que já é aceito. O carnaval-espetáculo, belo,  de rua, sucumbe ao excesso de luzes, de refletores, dos olhos das TVS.  Sucumbe à busca da fama, um fantasma, contrário á beleza do anonimato  singelo da arte popular. Da arte do tempo árabe dos Bailes no Sírio e Libanês.

Atravessamos
o Deserto do Saara
O sol estava quente
E queimou a nossa cara


Sim, gloriosa, Emilinha Borba, cantando, do mestre Braguinha, o hino do existencialismo: 
Chiquita bacana 
Lá da Martinica 
Se veste com uma casca 
De banana nanica 
Não usa vestido 
Não usa calção 
Inverno pra ela 
É pleno verão 
Existencialista 
Com toda razão 
Só faz o que manda 
O seu coração 

O carnaval nasceu do culto da dança coletiva. Liberdade em expansão, é nele que um povo se exprime. Emilinha era rainha do povo, heroína de uma consciência social aceita. Ele era linguagem da liberdade de uma opressão de canais de comunicação sentimental, imagem social. No carnaval se ouvia cantar:
Se a canoa não virar 
Olê-olê-olá 
Eu chego lá 
Rema, rema, rema, remador 
Quero ver depressa o meu amor 
Se eu chegar depois do sol raiar 
Ela bota outro em meu lugar 

Era a disposição irreverente que responde à realidade, desde «Oh abre alas, que eu quero passar!...», ate «é hoje só, amanhã não tem mais».

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

A DECORAÇÃO DO PALÁCIO

Sim, sou eu um velho de um outro século e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapê - e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte - cariátides, capitéis, folhagens da selva - o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo da esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada para pôr fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante para transplantar ali a qualquer custo todo espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota. Tal é a ironia daqueles esforços feitos a fim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tomar mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada história - em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais (vários povos desapareceram ali) nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno.