quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

A SOMBRA DO CARCEIREIRO - R. SAMUEL


 No primeiro verso: “Não posso / mover / meus passos”, há sete sílabas, com três tônicas: PO / VER / PAS – e marcam a sucessão de tônicas e átonas, compassada sucessão dos iniciais passos do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.

Mas já que o Romanceiro começa por um “não” – “não” de “não posso”, ou seja, “não” de interdição, do Interdito, do Proibido, do Negado, “não” da “morte e destruição”, daquela revolução que se perdeu, trágica, “que transita sobre angústias”.

Quem diz, no início: “não posso”, numa introdução negativa, negada, invertida, inversa – diz também “não entrarás, ó leitor”, e/ou “não vou ser capaz de fazer”, ó poeta. É a anti-proposição,  do Romanceiro.

Não, não posso entender o que aconteceu, naquele labirinto da História, onde o Brasil é esquecido, nó cego, morto, apagado, não da memória daquela estória de amores e de ódios. Não, não compreendo eu, o que estava acontecendo, naquele vinte e um de abril, no instante de lá, a terra está confusa, no ar sinto sinos, na boca ouço “o roçar das rezas”, na pele me arrepia a morte, ao ouvir a condenação, a culpa, o degredo, o Não.

 

Não posso mover meus passos

por êsse atroz labirinto

de esquecimento e cegueira

em que amôres e ódios vão:

-pois sinto bater os sinos,

percebo o roçar das rezas,

vejo o arrepio da morte,

à voz da condenação;

 

Mas vejo, e já pressinto, a masmorra, a sombra, o carcereiro que transita pisando angústias com o coração fechado, as altas madeiras do cadafalso, a morte pública, o pasmo da multidão.

          O poema todo é acompanhado pela batida sincopada de um “ÃO”, - ão! – ão! – ão! -  que se repete, com a regularidade da marcha fúnebre, cadavérica, do bater de pesados, soturnos sinos, funerários: vão, condenação, coração, multidão, oração, proclamação etc. até o fim, com o fim mortal “eterna escuridão”.

 

-avisto a negra masmorra

e a sombra do carcereiro

que transita sobre angústias,

com chaves no coração;

-descubro as altas madeiras

do excessivo cadafalso

e, por muros e janelas,

o pasmo da multidão.

 

O próximo verso é magistral: “batem patas de cavalos”. Por quê digo magistral? Primeiro, pelas consoantes que batem: o “b”, o “p”, o “t”, o “k” (de cavalos) – todas batem naqueles cinco “aa” – ba – pa – ca – va ---- de tal modo que quase é possível, com certa imaginação sonora, ouvir as patas dos cavalos batendo nas calçadas, nas pedras daquelas ruas de Vila Rica, no dia vinte e um de abril de 1789, cavalos dos soldados da morte, cavalos signos masculinos do poder de vida e morte.

Ah, aliás todo o poema é sonoro: dá para “ouvir” o bater dos sinos, o sussurrar das rezas, o tilintar das chaves, as patas dos cavalos, a voz do Brigadeiro... – aquilo fala da desgraça, das vozes daquele fatídico dia.

 

Batem patas de cavalos.

Suam soldados imóveis.

Na frente dos oratórios,

que vale mais a oração?

Vale a voz do Brigadeiro

sobre o povo e sobre a tropa,

louvando a augusta Rainha,

-já louca e fora do trono

na sua proclamação.

 

 

Ali, o poema cai na “cova do tempo”. Lá, as “intrigas de ouro e de sonho” se confundiram sinistramente com a condenação e a morte. Ali, se misturam “quem ordena, julga e pune” com “quem é culpado e inocente”. Lá, a “tinta das sentenças” e “o sangue dos enforcados” morrem no mesmo pântano lúgubre e terrível. Ali, “o castigo e o perdão” caem na mesma cova.  Lá, confundem-se “liras, espadas e cruzes”. E ali no mesmo vão obscuro, “as palavras, o secreto pensamento, as coroas e os machados, mentira e verdade estão.”  Lá os “ossos, nomes, letras, poeira...”.  Sim, rostos, almas, herdeiros, rastros - o mundo está no mesmo chão do esquecimento.

 

Ó grandes muros sem eco,

presídios de sal e treva

onde os homens padeceram

sua vasta solidão...

 

Você sabe o que é “muros sem eco”? Muros sem fala, nem eco? Muros dos presídios amargos e escuros? Presídios de solidão vasta e padecer?

 

Não choraremos o que houve,

nem os que chorar queremos:

contra rocas de ignorância

rebenta a nossa aflição.

 

Choramos êsse mistério,

êsse esquema sôbre-humano,

a força, o jôgo, o acidente

da indizível conjunção

que ordena vidas e mundos

em pólos inexoráveis

de ruína e de exaltação.

 

Ó silenciosas vertentes

por onde se precipitam

inexplicáveis torrentes,

por eterna escuridão!

 

 

         No alto da praça principal de Ouro Preto há estátua de mulher que sorri, no cimo do prédio onde é hoje o Museu da Inconfidência, mas que era Cadeia: um museu da tortura (tão próprio nesse país), a Casa do Poder Repressivo, na época da Inconfidência, sim, há uma estátua, e ela representa a justiça, ela é mulher com afiada e pontiaguda faca, espada na mão, espada que aponta o espaço, lá onde se pode imaginar o vão do ventre de um ser humano, espada fina, na ameaçadora mão, da Justiça, que ri, que sorri, que perigosamente sorri, de prazer, de gozo, sorriso do mistério, nunca desvendado, sorriso das lendas mortas, das silenciosas vertentes, das falas, dos mitos, da substância inexplicável das correntes escuras da escravidão, sorriso da morte, do escuro destino, da sombra da Noite, da destruição das vidas e dos amores, de amadas, de poetas, de ouro, de diamantes, daquele esquema ultramarítimo da espoliação capitalista, da força da devassa, do santo inquérito, do cadafalso, da tortura, das masmorras de pedra, do esquartejamento, do ouro!

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O LIVRO DO ANO







A MULHER NO EVANGELHO - ANTONIO VIEIRA

 



A MULHER NO EVANGELHO - ANTONIO VIEIRA

 A oração da mulher do Evangelho foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou e por quem louvou; do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. A oração panegírica ou laudatória, e a oração deprecatória.
Extollens vocem.
Para compreender a excelência e alteza de qualquer oração vocal, nas mesmas vozes ou palavras de que é composta, se devem considerar três respeitos ou três partes essenciais: o que se pede, a quem se pede, e por quem se pede; o que, a quem, e por quem. Esta mesma distinção observou a mulher do Evangelho. A sua oração foi panegírica e laudatória, e na voz que levantou: extollens vocem - tocou os mesmos três pontos e os mais altos a que podia chegar o mais levantado espírito. O que louvou foi o mistério altíssimo da Encarnação; a quem louvou foi a pessoa do mesmo Verbo encarnado; e por quem o louvou foi pela Mãe que o concebeu em suas entranhas e o criou a seus peitos: Beatus venter qui te portavit. Não pudéramos desejar nem melhor texto para dividir o nosso discurso, nem melhor guia para o seguir. A oração vocal do Rosário só se distingue desta do Evangelho pelo fim porque o fim, desta oração, como panegírica, foi louvar e a do Rosário, como deprecatória, é pedir. Aquela voz foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou, e por quem louvou; e do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. E estas serão as três partes do nosso discurso. Alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza das petições que nela fazemos: extollens vocem; alta e altíssima pela alteza da Majestade, a quem as presentamos: extollens vocem; e alta, finalmente, e altíssima pela alteza da intercessão de que nos valemos: extollens vocem. Ouçam agora com atenção os devotos do Rosário, e com inveja e arrependimento os que o não forem.
§ III
Primeira parte: É alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza da majestade a que presentamos nossas petições. A oração de Davi. A esfera da vista e a esfera da voz. Os céus, onde chegam os anjos com a vista, chegam os homens com a voz. Ana, mãe de Samuel, excelente figura dos que rezam o Rosário. Por que oramos a Deus enquanto está no céu? A oração do fariseu e a oração do publicano. A presença de Deus na terra e a Majestade de Deus no céu considerados na oração do Filho Pródigo.
Considerando, pois, em primeiro lugar, a alteza da majestade a que presentamos nossas petições, e começando - para maior clareza - por onde começa o Rosário, qual é a sua primeira voz? A primeira voz do Rosário é: Pater noster qui es in caelis (Mt 6, 9): Padre Nosso, que estás em os céus. - E voz que chega da terra ao céu, e ao céu onde está Deus, vede se é alta e altíssima: extollens vocem?
Nós não reparamos nesta que parece vulgaridade; mas o maior mestre de orar, que foi Davi, faz grande reparo nela: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit de monte sancto suo ( 3 ). Davi era grande contemplativo, mas nesta ocasião - que foi quando fugia de seu filho - orou vocalmente. Isso quer dizer voce mea, oração vocal. E o que muito pondera é que esta voz, saindo do vale do Cedrão, por onde caminhava, fosse ouvida no Monte Tabor da glória, onde Deus tem o trono de sua majestade: De caelo et sublimi throno gloriae suae (4) comenta S. Atanásio. O céu, onde Deus tem o trono de sua majestade, não é algum dos céus que vemos, senão outro céu sobre estes, quase infinitamente mais levantado e sublime; por isso não dizemos: qui es in caelo, senão: qui es in caelis. Da mesma frase usou Cristo, quando disse que os anjos que assistem na terra em nossa guarda sempre vêem a Deus que está, não no céu, senão nos céus: Semper vident faciem Patris, qui in caelis est (5). E, combinando um texto com outro, é prerrogativa verdadeiramente admirável que, onde chegam os anjos com a vista cheguem os homens com a voz. A esfera da voz é, sem comparação, mais limitada que a da vista. Mas isto se entende da voz com que falamos, e não da voz com que oramos. A voz com que falamos mal se estende a toda esta igreja; e a vista tem tanto maior e mais alta esfera que chega ao firmamento, onde vemos as estrelas. Porém, a voz com que oramos, não só chega ao firmamento, que vemos, que é o céu das estrelas, mas ao mesmo empíreo, que não vemos, que é o céu de Deus. O céu que vemos é o céu da terra; o céu onde está Deus é o céu do céu: Caelum caeli Domino (6). E isto é o que ponderava e admirava Davi na voz da sua oração: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit me de monte sancto suo.
Mas daqui mesmo se vê que a alteza desta voz ainda é mais maravilhosa nos que rezam o Rosário. Davi diz que clamou e bradou com a sua voz: Voce mea ad Dominum clamavi - e no Rosário não é necessário clamar, nem ainda soar. Ana, mãe de Samuel, foi uma excelente figura dos que rezam o Rosário. Dela diz o texto sagrado que, multiplicando as preces, somente se lhe viam mover os beiços, mas a voz de nenhum modo se ouvia: Cum multiplicaret preces coram Domino, tantum labia illius movebantur, et vox penitus non audiebatur (7). 0 mesmo passa cá pontualmente. Ana multiplicava as suas preces, e quem reza o Rosário também as multiplica, porque repete muitas vezes a mesma oração. A Ana só se lhe viam os movimentos da boca, porém a voz não se ouvia; e vós rezais o vosso Rosário com uma voz tão interior - e por isso mais devota - que nem os que estão muito perto vos ouvem, nem vós mesmos vos ouvis. E quando vós não ouvis a vossa mesma voz, é ela tão alta, e sobe tão alto: Extollen vocem - que chega ao céu dos céus, onde está Deus: Qui es in caelis.
Não faltará, porém, quem diga que esta circunstância de orarmos a Deus enquanto está no céu parece uma cerimônia supérflua, e não só não necessária, mas nem ainda conveniente. Comentando Santo Agostinho estas palavras, que em seu tempo ainda não eram do Rosário, mas eram as mesmas, diz assim: Non dicimus Pater noster, qui es ubique, cum et hoc verum sit, sed Pater noster, qui es in caelis ( 8 ). Deus, por sua imensidade, está em toda a parte, e não só conosco, senão em nós, em qualquer lugar onde estivermos. Logo não é necessário invocar a Deus enquanto está no céu, pois também o temos na terra quanto mais que invocá-lo no céu, parece que é afastarmos a Deus de nós, e orar de longe, quando fora mais conveniente e mais conforme ao afeto da devoção fazê-lo de perto. Não é mais conveniente falarmos com Deus onde ele está e nós estamos, que onde ele está e nós não? O mesmo Davi, tão grande mestre desta arte, pedia a Deus que a sua oração chegasse muito perto do seu divino acatamento: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo (9). E o Rosário, antes de as Ave-Marias convertidas em rosas lhe darem este nome, chamava-se o Saltério da Virgem, porque o de Davi se compõe de cento e cinqüenta salmos, e o da Senhora de outro tanto número de saudações angélicas. Pois, se Davi, no seu Saltério, pede a Deus que a sua oração chegue muito perto dele: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo - como nós, no Saltério da Virgem, nos pomos tão longe de Deus, ou a Deus tão longe de nós, quanto vai da terra ao céu: Qui es in caelis?

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A PANTERA - ROMANCE INTEGRAL ONLINE


 A PANTERA, ROMANCE INTEGRALMENTE ONLINE DE ROGEL SAMUEL, PARA LER SIGA O LINCK ABAIXO

ROGEL SAMUEL - A PANTERA (apanteraderogelsamuel.blogspot.com)

sábado, 25 de dezembro de 2021

NATAL DE TUFIC


 NATAL 


Natal me inspira estrelas e reis magos,
Natal revolve os séculos de usura,
Natal me faz pensar nessa loucura
de esperar pelos bens que foram pagos.
Natal de paz ou da canção dos lagos,
Natal de mim que em trevas se procura,
Natal de Deus na fé, quando obscura
ou quando se ilumina em breves tragos.
Natal de amor à mesa que nos prende
aos laços afetivos e ao consolo
de ter alguém que a mesma luz acende.
Natal da iniciação: que a cruz suporte
o corpo deste Rei, sangue e tijolo
do soneto que vence a própria morte.

 

JORGE TUFIC

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

O DIA INATINGÍVEL


O dia inatingível

 

Conto de Rogel Samuel

 

Um dia ele saiu de sua toca, digo, de seu pequeno apartamento e começou a andar pelo corredor imundo do caos daquela cidade.

Era o anoitecer do ultimo dia. Chovia. Não demorou estava fora da área urbana. Havia ameaças por todo lado, policiais armados, mulheres sujas, vozes aterradoras. Não pôde compreender tudo, mas, como não saía de casa há muitos anos, pensou que tudo poderia estar assim desde sempre.

Grande Episódio.

Procurou um bar, pois estava com sede.

Entrou, pediu um copo, e bebeu.

O rapaz do bar perguntou:

- Com quê vai pagar?

Ele estranhou a pergunta, mas respondeu:

- Com dinheiro.

- Com que dinheiro, quis saber o rapaz.

Aí ele não soube mais o que responder. Imaginou que o mundo mudara, e que aquelas velhas células já não valiam nada. Resolveu arriscar:

- Veja, respondeu, exibindo o dinheiro.

À vista daquelas coisas, o rapaz do bar desmaiou e caiu, o dia amanheceu, as luzes se acenderam nas árvores e parou de chover.

Só então ele reparou que exibira, por engano, suas cartas de AMOR. 


quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A PANTERA ONLINE


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ROGEL SAMUEL - A PANTERA (apanteraderogelsamuel.blogspot.com)

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

COM OS NUMAS NÃO

Com os Numas não.


Arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes, empurrados por perigoso inverno, permaneceram perdidos e livres, animais persistentes, se impuseram como resistência. Não e não. Reagiram ao pacto, ao toque, ao contato. Onde há resistência, há poder? Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser, no imprevisível espaço. Estão, a princípio, em toda a parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado. Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu. Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima, possíveis mas improváveis, mitificados, solidários, violentos, irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar. Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas. Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

O QUE É UM ESCRITOR


 

O QUE É UM ESCRITOR

ROGEL SAMUEL

Para mim, um escritor de verdade, de vocação, é aquele que tem maior prazer em escrever, para quem o prazer maior é a escrita.

Não estou falando, é claro, no poema, que somente Fernando Pessoa escrevia diariamente, em pé, numa escrivaninha, com um copo de aguardente do lado.

Somente ele.

Mas não.

O escritor hoje escreve na Internet, no blog, no site etc.

E mais, é melhor escrever do que ler.

Quando você escreve, você tem a liberdade dos pássaros, não limites, ultrapassa todos os limites, além do tempo, está no único lugar em que você é livre de todos os laços limites liames cordas medos ali você é o rei do espaço infinito, como escreveu Shakespeare:

“Eu posso estar encapsulado numa pequena noz e sentir-me rei do espaço infinito”.

E mais.

Eu li vários tratados da arte de escrever e nenhum me satisfez, porque o escritor tem de descobrir o seu próprio padrão, modelo, estilo de magia, arte etc.

Escrever sempre.

Mesmo que quase ninguém me leia.   

 

domingo, 19 de dezembro de 2021

O escritor de um livro de sucesso


O escritor de um livro de sucesso

Rogel Samuel

 

Há escritores que quase só escreveram um único livro, como Alexandre Manzoni, autor de uma obra-prima (Os noivos prometidos).

Outros escreveram muito, muitíssimo.

Na literatura brasileira temos vários escritores que se notabilizaram por um único livro, “O ateneu”, “Memórias de um sargento de milícias”, etc.

Margaret Mitchell só escreveu “E o vento levou” (1936). Ela nem era “escritora”. Escreveu porque quebrou a perna. Eu já contei essa história.

Uma amiga me faz uma pergunta basilar:

- O que faltou para você ser um escritor realizado?
A questão está posta de modo errado, por isso ela é irrespondível.

Pois, o que será um escritor realizado?
Será um best-seller?
Benjamim Costallat, autor de “Mademoiselle Cinema”, foi um dos autores mais lidos na década de 20 e hoje ninguém nem conhece.
Mesmo Coelho Neto, Humberto de Campos, glórias de seu tempo, quem hoje os lê? Só são lembrados como nomes de rua.
Alguns Prêmios Nobel de Literatura jazem hoje no sepulcro das bibliotecas onde ninguém mais os lê nem sabe deles, como Maurice Maeterlinck, Gerhart Hauptmann, ou Karl Adolph Gjellerup.
Escritor plenamente realizado é aquele que escreveu todos os textos que quis ou pôde escrever. Mesmo um único livro.
Eu conheci o drama de Marisa Raja Gabaglia, autora de Milho Pra Galinha, Mariquinha, lançado em 1972,
 que foi best seller e teve mais de 15 edições, e que depois não conseguiu emplacar nenhum outro texto.

A fórmula do best-seller é muito antiga. Ela se resume numa frase de Zola: “O interesse não se concentra na originalidade da trama; quanto mais esta for banal e genérica, tanto mais típica se torna”. O texto tem de ser claro, conciso, leve, pouco abstrato.

Há vários públicos leitores específicos no Brasil. Um dos livros que mais vende, depois da Bíblia, é Minutos de sabedoria, de Pastorino. O público de best-seller é um dos maiores, mas não o maior, que é o escolar. Foi o publico escolar que fez a fortuna de Meu pé de laranja lima, de Vasconcelos (hoje quase desconhecido); e mesmo o maior escritor,  Jorge Amado,  no início de sua carreira percorreu as escolas do país promovendo os seus romances.

Por falar em Bíblia, este é um dos melhores livros do mundo, do ponto de vista literário.

 


 

sábado, 18 de dezembro de 2021

BARRAS DA MINHA IMAGINAÇÃO

 




BARRAS DA MINHA IMAGINAÇÃO

ROGEL SAMUEL

 

Eu não me orgulho de ter a maior ou a melhor biblioteca do Brasil, mas sim a mais desorganizada.

Os livros que me sobraram ao longo de sucessivas perdas estão amontoados e literalmente no chão e em toda parte do meu pequeno escritório que fica onde não moro.

Foi assim que lá fui sexta-feira com minha secretária à procura de um documento (que não achei) mas encontrei – sujo, caído num canto obscuro e faminto - um livro extraordinário que recebi há mais de dez anos e que só agora, depois de limpo e iluminado, trouxe para casa e passei a ler com a sofreguidão de quem tinha descoberto uma  mina de diamantes: o livro de ANTENOR RÊGO FILHO – “Histórias e saudades”, de 2008.

A vocês eu digo: Manaus, minha terra, não tem um livro como esse – abrangente, sucinto, bem escrito.

Alguns fatos são épicos, outros cômicos, e o leitor cativo.

Em Barras nasceram dois ex-governadores do Amazonas: Fileto Pires Ferreira e Thaumaturgo de Oliveira.

Eu já escrevi muito sobre Barras, poemas e crônicas e vídeo.

Mas vejo que só agora meu amor por aquela terra desconhecida para mim está completo.

Após a leitura ininterrupta desse livro de coração.

Em Manaus a piores inimigas das grandes bibliotecas são as viúvas. Logo que os maridos morrem, exaustos de tanto ler, elas tratam de mandar despejar aquela montanha de livros raros e caros na calçada para o lixeiro levar. Eu mesmo catei livros na calçada, e muitos outros.
Ou despejavam aquilo tudo, aquilo inútil, aquele incômodo sujo no porão da antiga Biblioteca Pública onde os ratos e a umidade os consumiam. Também eu lá vi isso e até roubei (ou salvei) algum volume.
Herdei várias bibliotecas que as perdi. Herdei a biblioteca de meu avô, de meu tio-avô e de meu pai etc. Quando eu era jovem, minha tia-avó Maria José me dava uma pensão para comprar livros.  
Depois vim para o Rio, deixando Manaus e meus livros na distância, mas depois trouxe uma caixa de livros que se arrastou e se perdeu nos vários lugares e quartos alugados por onde passei.
Biblioteca é coisa de rico. De mansão de rico.
Por vários anos minha pobre biblioteca pessoal ficou na garagem de minha mãe, e no escritório de um amigo. Tudo perdido. Difícil de explicar, mas perdido.
Depois eu tive uma biblioteca na minha sala da Faculdade de Letras das UFRJ: quando me aposentei sem espaço em casa doei para a mesma.
Hoje meus livros estão amontoados no meu escritório. Longe de onde moro. Não acho nada.
Há bibliotecas que pegaram fogo, como a do escritor Moacyr Rosas. Ele acendia velas contra a umidade.
Quando pesquisei para escrever o “Teatro amazonas”, passei um ano indo à Biblioteca Nacional. É a melhor do Brasil.
Sonho com o tempo em que possamos ter os maiores livros num pen-drive.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O QUARTO


Para Ribamar, um luxo. Naquele quarto, durante uma década, vivera a finada Benedita, velha empregada de Juca das Neves, muito asseada. Mas na parede mofada a umidade alargara duas manchas pardas. Ribamar armou a rede, deitou-se. Poderia sair sem ser visto pelas pessoas da casa, pelo corredor lateral. No primeiro andar, o piano de Melina tocava uma mazurca de Chopin. Juca das Neves já se tinha recolhido. Naquele dia, Ribamar conhecera o Hotel Cassina, em decadência, a se transformar no Cabaré Chinelo. Conhecera o Alcazar, a Livraria Royal, na Rua Municipal, 85, expostas as novidades de Garcia Redondo, de João Grave, de Júlio Brandão e Bento Carqueja - autores da moda. Ali havia um livro de Carmen Dolores, outro de Haeckel. Eram panegíricos e leitura recreativa. A “Biblioteca para o Povo”, a “Biblioteca Racionalista”. Os Serões da Aldeia, de João de Lemos. Um livro se intitulava De cara alegre, de Alfredo de Mesquita e tinha sido um best-seller. Custava $50. Juca das Neves tinha parte da biblioteca de Pierre Bataillon em casa. Melina não tocava mal. Ribamar recordava-se de Pierre Bataillon tocando Schubert. Alvarengas rebocavam pélas de borracha. Ribamar passara pela porta do London Bank. As alvarengas suaves entravam na porta do Banco. Ivete, quando era servente, vivia quase nua. Ribamar estranhou encontrá-la, agora, grande dama, casada com Antônio Ferreira.

 

domingo, 12 de dezembro de 2021

“Meu filho nunca leu um livro” – Rogel Samuel


 

“Meu filho nunca leu um livro” – Rogel Samuel


Um dia um professor do colégio onde eu trabalhava chegou e disse:

- Rogel, meu filho nunca leu um livro. Ele detesta ler. Vai ser seu aluno no ano que vem...

- Deixe comigo, respondi.

No início do ano eu entrevistei o aluno e descobri que ele adorava motocicleta. Naquele ano a Vozes tinha publicado um livro que contava como o autor foi de São Paulo ao Canadá de Moto. O livro era um sucesso.

Recomendei que o rapaz o lesse.

Dias depois o professor meu colega se aproxima e pergunta:

- O que você fez com meu filho?

- Como assim, questiono eu.

- Ele ontem não saiu de casa, era sábado, e ficou a noite toda... lendo!!!!!

 

 

 

DOS SONHOS


 Dos sonhos


Rogel Samuel

Todos nós temos alguns sonhos, que alimentamos com cuidado e que residem no mais secreto de nossas consciências. Avançamos na velhice alimentando sonhos. Quando deixamos de sonhar, entramos em processo de morte. Dessa forma, a morte é, pois, invenção da vida. A morte também é um dos nossos sonhos. Inventamos a morte, criamos nela o céu, o inferno e tudo o mais. Mas, além da morte, temos outras realizações no domínio dos sonhos.
Somos responsáveis pelo que sonhamos. Cuidado com eles, que facilmente viram realidade. Não pense que eles são “apenas sonhos”. Podem ser tão verdadeiros quanto a realidade, ou podem morar nas regiões mais distantes, e nunca aparecer.
Que são os sonhos? Não os menospreze. Seremos o que sonhamos. Concretizamos as obras que com elas sonhamos antes.
A matéria, diz Aristóteles, é o ser em possibilidade, como a cera é a possibilidade para o sinete, diz Bloch.
“Há muitos graus de realidade. A realidade não traz a justiça em si mesma. Está aberta sobre o porvir, escreveu Ernst BIoch, em “O Homem Como Possibilidade”.
O sonho pode agir criadoramente de maneira concreta. As coisas ainda não estão decididas, acabadas, concluída. Falta o quê? Falta o futuro, o Futuro.
O futuro está no espaço mágico dos sonhos, na sinfonia das nossas esperanças e aspirações, lá, lá onde tudo é possível. É lá que está aquele laranjal florido, aquela casa, aquela montanha, você a conhece?

“Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!”
(Goethe. “A canção de Mignon”, Trad. de João Ribeiro)

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

AJURICABA


 Ajuricaba habitara o rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Quando foi salvar seu filho caiu na emboscada e feito prisioneiro da Coroa, em 1729, que o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho Ajuricaba solta o grampo que o prende e, com mão e pés algemados começa a fazer a matança dos soldados portugueses antes de precipitar-se de vez nas águas escuras do rio Negro, que amaldiçoou. Por isso as águas daquele rio são estéreis, não têm quase peixe. Mas logo depois, Belchior Mendes de Moraes passou pelas armas 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passa a chamar-se de Rio Urubu. E balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso - Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta na cidade de Manaus - espalharam as roupas contaminadas que disseminaram uma epidemia que matou 40 mil índios arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, e virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres sendo devorados pelas moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros venenosos e principalmente formigas. A saúva antropófaga devora um cadáver em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados (30.430 operários internados no Hospital da Candelária) quando a locomotiva voltava só encontrava ossos limpos comidos e limpos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá e a pior, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre - e era usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca cheia de tocandiras e agüentar e provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um exército!

 

Uma semana depois da morte da esposa do seringueiro Laurie Costa e imediato ao morticínio da aldeia Caxinauá pelos guerreiros Numas, Pierre Bataillon arregimentou a tropa de guerra, sob o comando de João Beleza, para fazer frente à invasão. Logo os efetivos puseram-se em marcha para perseguir o inimigo. A possibilidade de um ataque frontal por parte dos Numas não foi descartada, e fizera-se um adestramento de emergência pois que a maioria dos homens nunca estivera sob fogo e nordestinos quisessem apostar no êxito das facas. A guarnição do Manixi era cerca de 150 homens armados de revólveres ingleses Webley II calibre 45 e carabinas americanas Winchesters 94 de repetição de 8 cartuchos calibre 44. Vestiam-se de botas, cartucheiras, calças e coletes de couro cru, à prova de espinhos e de cobras. Os mantimentos seguiam em mulas e canoas. Recrutados, armados, mateiros caingangues rápidos localizaram o rumo do acampamento Numa e o efetivo de uma brigada avançou rapidamente em lanchões, atacando repentinamente em incursões rápidas e conseguiram vitórias expressivas, matando alguns índios e mantendo os Numas sob fogo cerrado dentro da floresta. Mas os Numas fugiram, desapareceram.

 

 

Ajuricaba lived on the Hiiaá river, at the left bank of the Rio Negro between the Padauari and the Aujurá in the district of Lamalonga.  When he went to rescue his son, he fell into an ambush and was taken prisoner by the Crown in 1729, which wanted him taken alive to torture him with punishment and death.  On the way Ajuricaba got loose from the clasp which was fastening him and with manacled hands and feet started killing Portuguese soldiers before suddenly hurling himself into the dark waters of the Rio Negro which condemned him.  Because of that the waters of this river are sterile, there are hardly any fish in them.  But soon after, Belchior Mendes de Moraes went on a shooting rampage of 300 Indian villages, in a sacrificial killing of twenty-eight thousand Indians on the shores of a river which came to be known as the Rio Urubu.  Artillerymen under the command of a priest with a pious name – Father José dos Inocentes, later the name of a street in the red-light district of Manaus – dispersed contaminated clothing that disseminated an epidemic that devastated forty thousand Indians with smallpox, an infectious, contagious disease whose virulence rots the body still alive with eruptions of pus and rachialgia, papules, pustules, blindness and the agony of a slow bacteriological death; the corpses are devoured by flies, gnats, giant mosquitos, matuca flies, beetles, rove beetles, horseflies, catuqui gnats, wasps, suvelas, venomous beetles and mainly ants.  Man-eating umbrella ants can devour a cadaver in twenty minutes.  On the construction of the Madeira-Mamoré railroad in 1908, corpses were spread out on the road to be buried (30,430 workmen interned in the Candelaria Hospital) and when the locomotive returned there were only dry bones, cleaned and eaten by umbrella ants.  Also, fire ants, swarm ants, stinging ants, manhura ants, sauba ants, red-brown ants, worker ants, tree ants, tracuá ants and the worst, the tucandera ant, furry, enormous, poisonous, a single bite is all it takes to kill a man, with acute pain and fever – and it was used by the Indians in the male initiations of boys, who had to stick their arm in a gourd full of tucanderas and endure to prove they were men.  And the leaf cutting ant, the sauba, the warrior ant and the army ant.  Von Martius describes whole populations fleeing from ants.  Sugar ants could make an army retreat!

     A week after the death of the wife of the rubber tapper Laurie Costa and immediately right after the massacre of the Caxinauá village by Numa warriors, Pierre Bataillon formed a military unit under the command of João Beleza to confront the invasion.  Then regulars began to march in pursuit of the enemy.  The possibility of a frontal attack by the Numa was not  dismissed and an emergency drill was carried out since the majority of the men had never been under fire; they were north-easterners who swore by the success of their knives.  The Manixi garrison had about 150 men armed with 45-caliber English Webley II revolvers and Winchester 94 American repeating rifles of eight 44-caliber cartridges.  They were dressed in boots, bandoliers, rawhide breeches and vests to withstand thorns and snakes.  Equipment followed on mules and canoes.  Recruits, armed men, swift Caingangue bushmen determined the location of the Numa camp and active troops advanced quickly in barges attacking repeatedly in rapid incursions and achieved significant victories, killing some Indians and keeping the Numa under fire inside the forest.  But the Numa fled and disappeared.

(O AMANTE DAS AMAZONAS)

domingo, 5 de dezembro de 2021

O ESCRITOR DE CRÔNICAS - ROGEL SAMUEL


 Neste Primeiro de Maio me lembro: O escritor de crônicas é o construtor do efêmero. Seu texto vai ser esquecido no dia seguinte. Diferente do romancista, que possui a ânsia de imortalidade. A crônica de jornal, no mesmo dia em que nasce, já está a morrer. Como as flores, dizia Shakespeare. Nada mais virtual. É claro que existiram Rubem Braga e Machado (tenho lido o segundo volume de "A semana", uma obra-prima do gênero). Mas gênio não conta. Está fora da regra, fora do parâmetro humano. Como Mozart, que estou ouvindo agora. Como referir-se sem exagero a Mozart? A crônica do acontecimento, principalmente, morre logo, cedo. "Eu não sabia que você gostava de escrever crônica", disse uma amiga. "Eu não gosto da sua poesia, disse outra (a Clarisse), mas leio suas "crônicas de sábado". Quando eu era jovem, e ainda morava em Manaus, mantinha uma coluna diária na Gazeta, um jornal da época. Não tenho nenhum recorte disso. Lembro-me de que lá escrevia, "também",  Ramayana de Chevalier, autor de "No circo sem teto da Amazônia". Ele escrevia umas coisas violentíssimas contra o governo. Era pai de Scarlet Moon.  Quase toda a minha "produção" daquela época se perdeu (e não se perdeu grande coisa). Havia um cronista em Manaus chamado Afonso de Carvalho. Ele talvez foi o melhor prosador da literatura amazonense. Só publicou crônicas. Eu tenho vontade de pedir um dia para o dono do maior jornal de Manaus (que por sinal é seu parente), o matutino A crítica, onde Afonso publicou a maioria de suas crônicas para que o republique. Hoje ninguém o conhece. Nenhuma história da literatura. Nem mesmo os  professores de "literatura amazonense" da Universidade do Amazonas (matéria que existia mesmo). Nunca o leram! Nem ouviram falar... Eu mesmo testei, um dia. E por quê? Porque era "apenas" um cronista (ainda que publicou seus livros de crônica). O único lugar em que Afonso, que foi meu amigo, apesar de ter idade para ser meu pai, pode ser lido, é no nosso blog (vou publicar, com direito a foto, com cigarro na boca, conforme o figurino de Clark Glabe da época). O único  intelectual que o reconhece é Luiz Bacellar. O poeta. Afonso de Carvalho publicou alguns livros. Só tenho "Vozes azuis" e "A lua é dos pobres". Nem no livro do Arthur Engrácio ele está (e onde estou). Engrácio também era meu amigo, embora nunca o vi. Nós nos comunicávamos por carta. Um dia, encontrei um conto dele numa antologia nos Estados Unidos. Ele nem sabia. Há vários escritores brasileiros conhecidos nos EUA. Em Portland, no Oregon, visitei a maior livraria que já vi. Tinha a dimensão de um supermercado de dois andares. Um quarteto de cordas tocava, ao vivo. Lá comprei Galvez, do Márcio, em inglês, para o meu amigo Christopher Schlindler, o pianista. Chris é um poliglota. Fala a maioria das línguas, inclusive japonês. Conhece tibetano. Fala um português quase sem acento. Sua mulher, Chrystal, se dedica ao latim e ao grego. A casa deles é de madeira. Pintada de vermelho. Americano tem mania de casa de madeira, antigas de cem anos. Quando se anda no segundo andar, toda a casa soa. Estremece. O porão é cheio de objetos e antiguidades que a Chrystal coleciona. Ela é avaliadora dessas coisas. A imensa biblioteca fica no térreo. E o piano. Com eles fiz, várias vezes, a deliciosa "garage sell", que é a venda de coisas que as donas de casa americanas não querem e as vendem, na garage, onde montam uma feira,

certos dias. Tudo muito barato. A vida americana é calma e suave, ali em Portland, a cidade das rosas. Como em Poços de Caldas. Nada que se pareça com a violência dos filmes americanos. Dirige-se devagar. Algumas pessoas saem sem fechar as janelas de suas casas. Há flores e áreas verdes em toda parte. Tudo muito diferente de Miami. Detesto Miami. Terra de gangster. Em Miami a polícia nos olha, a nós sul-americanos, como se todos fôssemos traficantes, bandidos. No Oregon não, você está em paz. Há montanhas pacíficas. Há o monte Hood, um monumento de neve, no horizonte. As camélias e os rododendrons. O republicanos colocam a bandeira americana no telhado. Nunca vi um brasileiro colocar o verde-amarelo estandarte no telhado no Brasil. Vai ver que é até proibido por lei. 


Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem rôto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!...

Eu sempre achei que, se Castro Alves tivesse escrito esses versos na época da ditadura militar brasileira, seria imediatamente preso, por ofensa à bandeira nacional. Mas não mais, crônica, que a lira tenho cansada, e a voz enrouquecida. E não do canto. 

sábado, 4 de dezembro de 2021

AS ÁGUAS DA SOBREVIVÊNCIA


 As águas correm desde o sem princípio das partes íntimas da narrativa animal sob as árvores de 70 metros de altura; as águas vêm dos desconhecidos lugares da origem Numa; são águas da sobrevivência, são esquecidas e passam. Frias. Se perdem. Perigo; atroz. A princípio não se podem delimitar com precisão, onde as terras dos Numas, onde as do Seringal Manixi. Depois se vêem. Se sentem. No cheiro. Raras, marcas, macias. A flecha, especada no talo da árvore, atravessa a picada, a vermelha. O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio e a ordem que o rio exercia na floresta. A conduta, o êxtase, acima da curva onde moro, que se faz mediante o perfeito domínio que os Numas exercem sobre os múltiplos lados do rio em “S”, o domínio invisível (não se pode vê-los), e secreto, em torno do qual se distribuem os seringueiros, naquela parte alta, em terra-firme, no cuidadoso controle quase cordial. O Seringal todas as noites invadido por fantasmas. O mundo se economizava. Harmonia, economia de gestos, de nenhum momento involuntário, violento, rompendo o pacto tênue e presente do espírito do silêncio armado.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A PRAGA DA CLASSIFICAÇÃO


A PRAGA DA CLASSIFICAÇÃO – ROGEL SAMUEL
Um dos piores vícios dos críticos literários e professores é a classificação: tal livro é romântico, modernista, pós-modernista etc. Se pode ser enquadrado numa classificação, não é arte. As grandes obras são inclassificáveis. Como classificar “Os sertões”? Um dos maiores romances de todos os tempos pode-se dizer que é romance histórico: “Guerra e paz”.
Enquadrar uma obra de arte numa forma específica é terrível. Pode-se dizer, por exemplo, que certos romances de Machado são “pós-modernos”. E agora? Qual é a vantagem de classificar uma obra? Shakespeare era considerado popular em sua época.
A crítica só serve para investigar os sentidos da obra. E olhe lá. Um músico famoso já disse que viajou 40 anos pelo mundo e nunca viu uma estátua de crítico em lugar algum. Hegel escreveu que a obra de Beethoven estava errada, pois ele mudava de “HUMOR” de repente feito um louco... “A sagração da primavera” foi um desastre de crítica. Tchaikovsky sofreu muito. Bach era considerado barulhento. Proust teve de imprimir seu primeiro livro e pagava jornalistas para falar bem dele.
Alguns críticos tinham um faro para descobrir obras-primas, como Tristão de Ataíde, meu professor. Mas também errou drasticamente. Acertou, por exemplo, com “A bagaceira”. O livro era mal impresso, vinha do Nordeste. “Isso deve ser um bagaço”, disse ele para o amigo, na viagem de trem para Petrópolis. Uma hora depois o amigo ao lado acorda e pergunta:
- Alceu, você ainda está lendo “isso”?
- Meu amigo, respondeu ele. “Esse livro é uma obra-prima”!
O maior crítico é o tempo. Só o tempo vai dizer quem é quem. Coelho Neto era o escritor de maior sucesso em seu tempo. Hoje ninguém o lê. Assim também Humberto de Campos.
Se você é escritor tem de acreditar em si mesmo, mesmo que seja você o único que acredita mesmo. Não espere retorno. Como dizia Villa-Lobos: “minhas obras são cartas que escrevi ao futuro”. Os músicos da orquestra riam dele, na época.
al Guimarães