sexta-feira, 31 de maio de 2019

A MORTE DE LAMPIÃO

A MORTE DE LAMPIÃO



A MORTE DE LAMPIÃO

ROGEL SAMUEL


             Súbito silêncio corta o céu no nosso caminho.
             Era uma navalha.
             Lampião, ergue o braço, ordena de parar.
             Pergunta os ares, instinto selvagem.
             Ausculta os cantos, expressão de ódio, dúvida.
             Não tinha medo de morrer. Já estivera vezes diante da morte. Eu sabia como ele reagia.
             Era outro sentimento, o de se ver fechado no abraço inimigo, verdadeiro exército, os soldados avançavam, várias
frente, para caçá-lo, animal acuado, para fechar sobre si o que sobrava da tropa envenenada e a doença (ele mesmo ardia em
febre), falta de munição, mantimentos.
             Maria Bonita conosco ali estava.
             Receava não poder atravessar o deserto em frente. Não poder esconder-se na caatinga, onde navegávamos como
num mar de espinhos. Não poder arregimentar as tropas dispersas, de que ainda dispunha. O fim da glória, do cego império,
do mito. Morrer humilhado.
             — Estou sentindo cheiro de macaco! - rosnou, entredentes.
             Continuávamos imóveis.
             Meu ombro ferido ardia. Como se me aplicassem ferro em brasa. O sangue coagulara-se junto à sujeira ao suor. Em
breve iria infeccionar.
             Não tivera tempo de limpar a ferida, não sabia se tinha uma bala no ombro.
             A dor de cabeça latejava, imperdoável.
             Apesar de tudo cavalgávamos há dois dias, deixando nosso rastro sangrento atrás de nós.
             Conduzíamos nossos perseguidores.
             Conduzíamos à morte.
             Lampião ouvia do silêncio a sua canção.
             Onde estariam eles?
             Ele sabia que vinham em nossa direção.
             Antes, só ele conhecia o caminho ali, no inatravessável.
             Agora as tropas dispunham de guias, saídos de nossas fileiras, comprados.
             Sim, eles estavam vindo.
             Podiam estar surgindo do Desfiladeiro do Xingó.
             Podiam estar oriundos da direção de Canindé.
             Podiam estar caminhando a contrapelo do Rio do Chico, as águas esverdeadas, pérola e esmeralda, as águas
sagradas.
             Ou podiam estar fazendo o caminho dos rochedos escarpados, altos de cinqüenta metros de altura, vereda que
Lampião bem conhecia.
             Acima estava o vale.
             Abaixo a Grota do Angico.
             E na Grota Lampião resolveu ficar.
             Ele acertava sempre, ninguém discutiu.
             Ninguém discutia com ele.
             Pensava em esconder-se ali, deixar passar o inimigo.
             Mas foi ali que a morte veio buscar-nos.
             Sitiaram-nos.
             Era um exército.
             Não havia alternativa. Abrimos fogo final.
             Nossa munição escassa, nossos homens famintos, sedentos, cansados.
             Cabras feridos, doentes.
             Lampião ferido. Menos Maria Bonita.
             Mas Lampião não revelava doença, tinha outra natureza, bicho, coisa de aço.
             Era intenso o fogo contra nós.
             Mais modernas armas usavam, poderosas, maior alcance.
             Nós começamos lentamente a morrer.
             Foi quando Lampião e Maria Bonita arrancaram para frente, avançaram contra o comando.
             Lampião queria era a morte em batalha.
             A humilhação seria pior, ser preso, vivo e torturado. A humilhação pela dor da tortura, suprema de todas as dores.
             E Lampião foi lá. Desafiava a morte.
             Lá. Seguido por Maria Bonita.
             Depois nada mais vi, engolfado por nuvem de fumaça e de dor que me tirou a vista.
             Mas foi assim que tudo se deu, conforme o digo eu, o Narrador.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

ESTRADA CLARA

depois de alguns novos passos
cheguei aquela estrada amada
simples, reta, clara, nada
impedia ao reino me levava
estrada clara
e os sóis e as madrugadas
pelos vales verdes e azuis
de repente me abriam
doce esplendor desse mundo
posso passar sem mais nada
vejo belas paisagens
entrada clara
depois de alguns passos
cheguei à estrada amada
estrada ao nada
ROGEL SAMUEL

sábado, 25 de maio de 2019

castelos de luar



castelos de luar 
de lua 
de tua 
vontade nua 
de tua 
luz de lua 
voz de suave 
paladar 
castelos no ar 
no vagar 
do imaginar 
ROGEL SAMUEL

terça-feira, 14 de maio de 2019

JARDIM ABANDONADO


Rogel Samuel
há muito tempo os poemas
jaziam no jardim abandonado
folhas secas
plantas tímidas
entre a estatuária de
deuses
e alegorias
de mármore
mas a rainha das musas
os despertou
e os fez
novamente falar
como quem experimenta desconhecidos
discos de vinil
deixados por um antigo
no fundo do melhor armário
é à noite que os fantasmas da falta
se instalam nos espaços
e sobre seus traços cegos
nos alertam
cobre a noite com seu manto
os pontos-luz e de visão
e no arco da cidade adivinho
amores outros, que não falam
ROGEL SAMUEL

domingo, 12 de maio de 2019

domingo, 5 de maio de 2019

A Nona Sinfonia de Santoro

A Nona Sinfonia de Santoro



A Nona Sinfonia de Santoro

Rogel Samuel



Ah, como lastimo: nunca mais teremos no Brasil uma orquestra como a Orquestra Sinfônica de São Paulo sob a direção de John Neschling. Sem o maestro, o conjunto será outro. É sempre assim. New York, Boston, Berlin, Chicago, Viena, Cleveland, Philadelphia etc foram grandes orquestras só sob a batuta de Barbirolli, Fürtwangler, Klemperer, Toscanini, Bruno Walter, Haitink, Bernstein, Fritz Reiner, Kleiber, Kubelik, principalmente Mravinsky, para mim o maior de todos. Não é a orquestra, mas o maestro quem faz a arte.

Por isso, depois de ouvir este CD, com as sinfonias 4 e 9 de Claudio Santoro, com todo aquele brilho, como toda aquela envergadura, com toda aquela grandiosidade, principalmente a Nona Sinfonia de Santoro, lúcida, forte, mistura de tudo o que Santoro já fez...

Custei a reencontrar este CD. Creio que está vendendo bem. Da primeira vez que o vi, numa livraria, não o comprei. Disse comigo que já tinha aquelas sinfonias em outra gravação. Quando voltei lá, todas as cópias vendidas.

Santoro levou quase 20 anos entre a oitava e a Nona Sinfonia, durante seu longo exílio. Com a Nona ele resumiu tudo o que compôs, desde as composições atonais, passando pelo parâmetro do realismo-socialista soviético, até a temática brasileira, o lirismo, o trágico, o passional, o sublime, com maestria e polifonia. Desde os compassos lentos, as passagens graves, a coloração dramática, a "homenagem a Brahms", a Nona Sinfonia de Santoro é uma obra-prima e nesta interpretação está impressionante.

Toda a sinfonia se tece em umas poucas notas que se repetem, em súbitas variações, na orquestração e nos diferentes tempos. Aí a arte é que Santoro nos leva a um tal grau de elevação espiritual e amplidão que penso que a peça deveria chamar-se SINFONIA AMAZÔNICA.

O CD ganhou o prêmio Diapason D´Or, na edição brasileira da revista francesa Diapason.


Li de uma assentada o belo livro de Elson Farias sobre Cláudio Santoro ("Cláudio Santoro - cantor do sol e da paz", Manaus, Ed. Valer, 2009).

A única vez que estive com Santoro foi no aeroporto de Frankfurt no fim da década de 70, início de 80. Voltava para o Brasil. Ele vinha da França, onde creio que tinha regido a Orquestra Sinfônica da Radio-Difusão Francesa (ORTF) de Paris.

Eu disse para o pessoal da VARIG:

- Ali está o maior compositor do Brasil, coloquem-no na primeira classe.

Não adiantou. Como ele sentou-se não muito longe de mim, eu me apresentei, disse-lhe que tinha sido vizinho de D. Cecília, sua mãe, na Vila Auxiliadora, em Manaus, onde ela vivia modestamente, junto com o filho Alberto Santoro, depois físico. Foi o bastante para a conversa se iniciar. Falamos cerca de uma hora de música e de músicos. Infelizmente não posso relatar as críticas que me fez ao meio musical brasileiro, o que seria uma indiscrição. Mas me disse que estava arrependido de ter voltado para o Brasil... Contou que o prefeito de Paris tinha ido buscá-lo no Aeroporto, enquanto que no Brasil não haveria um só funcionário do MEC para ajudá-lo com as malas...

Ele dava aula de composição na Alemanha. E comentou:

- Imagine caboclo amazonense dando aula de composição na Alemanha...

O livro de Elson Farias impressiona pela riqueza de informações, de detalhes. Grande poeta, o livro está muito bem escrito e facilmente será traduzido no exterior, onde Cláudio Santoro é muito famoso.

E escrevo ao som das Sinfonias 5 e 7 de Santoro. Regidas por ele-mesmo. Orquestra Filarmônica de Leningrado e Orquestra Sinfônica da Rádio de Berlim, respectivamente.

Gravação rara.


JOHN NESCHLING & OSESP-ORQUESTRA SINFÔNICA DO ESTADO DE SÃO PAULO & CLÁUDIO SANTORO, 2006, Biscoito Fino. ISSN: 7898324752186 

sábado, 4 de maio de 2019

O DNA do passado

O DNA do passado

Rogel Samuel

Augusto dos Anjos escreveu um soneto chamado “Debaixo do Tamarindo”que aqui transcrevo:
“No tempo de meu Pai, sob estes galhos, / Como uma vela fúnebre de cera, / Chorei bilhões de vezes com a canseira / De inexorabilíssimos trabalhos! / Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, / Guarda, como uma caixa derradeira, / O passado da Flora Brasileira / E a paleontologia dos Carvalhos! / Quando pararem todos os relógios / De minha vida e a voz dos necrológios / Gritar nos noticiários que eu morri, Voltando à pátria da homogeneidade, / Abraçada com a própria Eternidade / A minha sombra há de ficar aqui!”
As pessoas sempre se esquecem de que o poeta era muito novo quando escreveu. Morreu com 29 anos! E o último verso: “a minha sombra há de ficar aqui!” marca que não será senão uma sombra “abraçada com a própria Eternidade” daquela “pátria da homogeneidade” de que ele fala.
A noção de “Eternidade” reside não só na árvore (genealógica?), mas na sombra da árvore. É um DNA do passado que ele vê ali naquela relíquia da flora brasileira.
Outro dia, minha amiga C. de São Paulo mandou-me por email um texto da escritura budista tradicional que diz, na minha tradução:
“O que nasce vai morrer, O que se reuniu será dispersado, O que foi acumulado se gastará, O que foi construído se destruirá, E o que é elevado será rebaixado.”
Eu já tinha lido isto em outro lugar. Parece que pertence ao “Dhamapada” na versão chinesa. Trata da não permanência de todas as coisas. É uma temática também recorrente no classicismo. Onde estão os amigos de infância? Eda adolescência, quando havia uma turma animada e agressiva? Onde estão? Os amigos de faculdade se separaram. Até os casais se separam. Novas reuniões se fazem, sim, é certo. Mas onde está aquilo que faz com que tudo passe, tudo morra, tudo se gaste e se destrua? Está no tempo? Que é o tempo?
Hannah Arendt certa vez disse que depois da destruição do império romano, nada pode ser considerado eteno.
É por isso que o Poeta escreveu que sob aquela sombra esteve “com a canseira De inexorabilíssimos trabalhos!”
A Eternidade cansa!

quinta-feira, 2 de maio de 2019

A pátria real e a pátria imaginária

A pátria real e a pátria imaginária

Rogel Samuel

“Não sejas um escritor, mas um profeta”, diz o verso de Antonio Quadros (1923-1993), o poeta português. Certamente assim os poetas eram conhecidos, na Grécia antiga. Que é um profeta? Profeta é o indivíduo que prevê o futuro, o que diz o que vai acontecer. “Não digas o que sabes nos teus versos, / Deixa para trás a ciência e a consciência; / Tudo aquilo que em ti não for ausência / São ideais perdidos, ou submersos.” É o poema. Não dizer o que sabe significa não repetir o passado, mas proferir o futuro, inaugurá-lo, fundá-lo. Falar do ausente, construir a presença daquilo que ainda não existe ou do que não está lá. O poema assim se chama “Poética contraditória”:

Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.

É um poema do livro de António Quadros “Viagem desconhecida”, de 1952. Nesta região desconhecida do porvir o poema se lança, ouvindo as vozes, liberando os seus deuses, os seus medos, o seu mistério, o seu pranto. É um mergulho no caminho do herói, ou seja, do profeta. Do que profere. O que diz o que não sabe, o que ouve o que não foi dito, o que vê o que não está na frente de seus olhos. Ou seja, entra nos portal heróico e perigoso do mito.
“António Quadros (1923-1993) defende que a nação portuguesa na sua essência (...) é dotada de um eschaton, de uma razão teológica, que consiste num diálogo ou numa dialética entre o humano e o divino: «Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica.» (...), escreveu Antonio Quadros Ferro (que deve ser seu filho). Ele chama isso de dialética entre Pátria Real e Pátria Imaginária.
“As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar.
E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação" escreveu António Quadros.
Confira em:
http://antonioquadros.blogspot.com/