domingo, 29 de abril de 2018

O SILÊNCIO ANTECEDE A CATÁSTROFE

O SILÊNCIO ANTECEDE A CATÁSTROFE


O SILÊNCIO ANTECEDE A CATÁSTROFE

Rogel Samuel

Nós, brasileiros, temos o vício do desmatamento. Não podemos ver área verde. Queremos limpar, civilizar, modernizar, cimento puro, concreto. Até o mestre Niemeyer sugere isso, em sua obra. Lembro-me da árvore do quintal de minha amiga. Quando lá voltei, nada. “Podia ameaçar o muro da casa”, justificou. Não mantivemos, como os americanos, nossas antigas casas de madeira, ecológicas. O vizinho, que tem uma vivenda coberta de hera, é criticado. O mais comum é o cimentado, lajeado, árido, sob o sol de 40 graus. Isso é considerado moderno. Bom. Não é só madeireira que desmata, somos todos nós. Nos arredores do Rio, nossos subúrbios, a vegetação das montanhas desapareceu. Somos fabricantes de deserto. Escondemos nossas raízes indígenas com o vezo de tudo desmatar, de tudo transformar num monte de lixo. Nossos riachos também se transformaram em imundas valas. Há muitos anos deixei de comprar um sítio porque, antes de entregar, o dono mandou “limpar”: derrubou a mata! Um relatório da Organização Mundial de Saúde diz que mais de 2,6 bilhões de seres humanos, 40 por cento da população mundial, não tem água de boa qualidade. Como no poema de Nietzsche:
O deserto está crescendo.
Desventurado quem abriga desertos.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Rogel Samuel - O mundo esquecido

Rogel Samuel - O mundo esquecido


O mundo esquecido

Rogel Samuel

O mundo esquecido é o dos sonhos. Um mundo morto, porto para o mar desconhecido. Sonho sempre que estou perdido, que não sei voltar, ou que não há um veiculo que me traga de volta a mim mesmo. Sonho que estou em rua escura, desconhecida. Pressinto perigosa.
Mas nada me acontece porque eu me protejo no despertar. Perco as origens, o casulo, o lar. Somo as encostas, as aventuras, marcas de minha dimensão, link perdido.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

O FUNDAMENTO DOS SONHOS


O FUNDAMENTO DOS SONHOS

Rogel Samuel

       Há um escrito filosófico de Ernst Bloch que se chama "O Homem Como Possibilidade".
       Sempre gosto dele. Tanto que o inseri no nosso Site. E ali pode ser lido*.
Desde 1966, relei-o sempre. Sempre que entro em depressão política.
Existe depressão política sim, para a minha geração.
Que sinto, que sofro, desde jovem.
Além disso, desde que comecei a votar, a chamada democracia brasileira é um dispositivo para legitimar a classe dominante já estabelecida.
E não há remédio, não há medicina, para este mal.
A minha geração é profundamente, radicalmente política.
Mas começa afirmando Bloch a energia e o vigor dos nossos sonhos.
Segundo ele, Lênin lastimava que o movimento comunista havia perdido sua capacidade de sonhar.
Nós deixamos de sonhar quando nos apegamos ferrenhamente à realidade, à casca material grosseira da matéria concreta.
O sonho não, só os sonhos admitem vôos, transformações, esperanças vagas, utopias, sem a solidez, sem o peso da dura, da ríspida materialidade de ferro das coisas.
A solidez das coisas é burra, é vazia, pura aparência enganosa.
Pois o mundo não precisa ser tal como é. E nossos problemas não precisam ter para nós o peso que têm.
Por trás daquele monstro que nós mesmos criamos para nós mesmos, há um simples e inútil brinquedo de corda, meio quebrado.
A liberdade é possível...
Por quê?
Porque o nosso mundo não está totalmente pronto, não é algo pronto e acabado, que não muda nunca, mas é um processo, um processo em permanente fazer-se.
Tudo morre, mesmo os nossos problemas...
Sim, há sim espaço para a liberdade, para a felicidade, pois os castelos que se armam contra nós são feitos só de areia, não são de aço. E as armas dos nossos inimigos são de açúcar.
Hegel, que viveu e aprendeu no tempo da revolução francesa, da revolução burguesa, dizia que o futuro concreto e imutável é incerto, é "palha e vento, névoa e vapor".
Hegel "aprendeu"a dialética ao som dos canhões em sua porta.
Quem constrói o mundo futuro somos nós mesmos, com nossas próprias mãos.
Que necessidade estranha temos de sofrer?
Esta é a nossa contradição permanente:
Pois, se buscamos tanto a felicidade, por que insistimos, por que procuramos no nosso "destino", naquilo mesmo que fazemos e que chamamos de nosso destino, o processo que nos causa tanto sofrimento?
Hegel falava da passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade.
Na verdade era a mediação do processo da utopia abstrata para a ciência mediadora.
Por tudo isso existe a consciência de que aquilo que nós chamamos de "realidade" está cercado por um mar de possibilidades muito maior do que objetivamente pensamos. Essas possibilidades são mesmo reais.
Diz Bloch: "Há condições que ainda não conhecemos ou que ainda não se apresentaram".
Sim, há as utopias.
Há a Utopia.
A utopia é o lugar daquilo que ainda não existe.
Pelo fato de que ainda não existe aquilo, não quer dizer que não existirá nunca, ou que seja impossível e irrealizável.
Há alguns anos alguém poderia pensar em televisão, penicilina, rádio, celular etc? - estas coisas hoje banais apareciam nas revistinhas de ficção científica das crianças.
Sim, sejamos crianças!
Talvez até certas utopias já existam, mas ainda não estão conscientes.
A Utopia não é uma lenda política.
Diz Bloch que sua fonte, sua origem está em Platão, Thomas Morus, Campanella, Fourier, Saint Simon, Robert Owen, etc.
"São grandiosas tentativas de se lançar no papel uma sociedade melhor".
O sonho de uma vida melhor. Ou seja, o sonho básico é o do paraíso perdido.
A utopia é "a arquitetura ainda não construída". 
A história, a vida humana está cheia de utopias, diz ele, como os sonhos da medicina, da técnica, a ficção científica, a pintura, a música, a poesia.
Parodiando Bloch:
- Ó Utopia, fica comigo amanhã, porque és tão bela e tão necessária!


 

Rir da desgraça?

Rir da desgraça?


rogel samuel
"É bom manter o otimismo, aprendendo a rir até da própria desgraça. Não há desgraça que sobreviva a uma boa gargalhada. "Sempre poderia ser pior"(Lundrup Tashi).

Rir da desgraça? Rir, ironizar a dor, mantendo o otimismo?

Diz um provérbio tibetano: "Se o problema tem solução, para que se preocupar? Se o problema não tem solução, para que se preocupar?

O tibetanos aprenderam a sorrir. Em Katmandhu, você vai andando por uma rua de Bhoudanath, reduto tibetano, e as pessoas abrem um largo sorriso ao encontrar você, como se você fosse um velho conhecido. Mas eles são todos pobres exilados, às vezes miseráveis.

Essa história de que "rico ri a toa" não é lá muito verdadeira.

Enfim, olhar a própria pena: "Sempre poderia ser pior".

(risos)

quarta-feira, 25 de abril de 2018

uivo longo noite escura vento

uivo longo noite escura vento

uivo longo noite escura vento
o vento evoca suas vozes
longas e ecos cavernas fundas
por que parece que morri?
uivo longo, muitas vozes
silenciadas
madrugada escancarada
prata ouro lanterna mágicas
calma nos arredores e arrepio
uivo longo na murada
volto a sonhar


rogel samuel

terça-feira, 24 de abril de 2018

A CAXINAUÁ


O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Havia dois anos que o próprio Ferreira lá não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta narrativa.

Mas a Caxinauá avançava sozinha entre as gigantescas raízes. Dir-se-ia perdida, silenciosa entre as grandes árvores pré-históricas, ao pântano, entre murarés, caimas, touceiras de cumaru, sob os buritizeiros, os oitiseiros. O remo cortava a água sem ruído, a igarité deslizava no lado morto do mundo.

A Caxinauá chegara a um aningal. Entrevistos, no alto, urubus-reis. Sob a toalha da água se podiam ver os peixes, indolentes, dormindo um sonho de imersão no sangradouro do lago.

Ela não se apressava. Despiu-se do vestido e entrou na água, na umidade pesada, pisando no fundo do lajedo, que conhecia, na ponta da pedra branca, submersa.

domingo, 22 de abril de 2018

A mulher que passa

A mulher que passa








A mulher que passa


Rogel Samuel



Passa. Ela passa, a viúva, elegante, balanço, o festão, o debrum, nobre, exata, ágil, belas pernas de estatuária, passa, e ele a vê, do café onde bebe ele a vê, perdido, crispado, ele a vê, a sente, a sabe, no seu olhar há o germe de um furacão, no seu olhar há a
doçura que se embala, há o frenesi que mata, o relâmpago... ou é o tempo, a noite? Ele, a aérea beldade, e de seu olhar vem um relâmpago de renascimento... ela a verá outra vez?
ou só a verá por um instante na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais.



A uma Passante

A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que se embala e o frenesi que mata.
Um relâmpago, e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.
Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.

sábado, 21 de abril de 2018

Pitigrilli

Pitigrilli, o esquecido


Pitigrilli, o esquecido

Rogel Samuel


Li na juventude muitos livros de Pitigrilli. Ele se chamava Dino Segre (Turim, 9 de maio de 1893 — Turim,
8 de maio de 1975) era italiano.



Em Pitigrilli fala de Pitigrilli, uma das últimas obras, mostra sua opção pelo espiritismo, ou, pelo menos, sua enorme curiosidade pelo lado oculto das religiões. Já estava em idade avançada e morava em Buenos Aires, Argentina, onde se refugiou. Influenciou alguns autores e pensadores italianos, argentinos e brasileiros, como Guido Gozzano, Flavio Bonfá e Julio Cortázar.

Por isso fiquei feliz em encontrar

http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/castidade.html

Ninguém mais lê Pitigrilli.

Só eu.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

SUTRA DE PROTEÇÃO CONTRA ARANHAS ETC

SUTRA DE PROTEÇÃO CONTRA ARANHAS ETC

KHANDHAPARITTAM

A Proteção contra Khandha

Isto foi ouvido por mim:
Certa vez o Sublime permanecia em Savatthi, Bosque Jeta, parque de Anathapindika e, nas imediações, em Savatthi, um certo monge morreu ferido por uma cobra. Então, em verdade, muitos monges se aproximaram de onde estava o Sublime, e tendo-se aproximado, O saudaram e sentaram-se a um lado. Depois de sentados, em verdade, aqueles monges falaram para o Sublime deste modo: “Aqui, em Savatthi, um certo monge, tendo sido ferido por uma cobra, morreu”.

[E o Sublime disse então:] “Em verdade, ó monges, aquele monge não saturou os quatro reinos de serpentes com uma amorosa mente. Se, ó monges, em verdade, aquele monge tivesse permeado os quatro reais clãs de serpente com a mente amorosa, ó monges, em verdade aquele monge não teria morrido tendo sido ferido por uma serpente. E quais são os quatro reais clãs de serpente?  O real clã de serpente Virupakkha, o real clã de serpente Erapatha, o real clã de serpente Tchabyaputta, o real clã de serpente Kanhagotamaka. Em verdade, ó monges, aquele monge não saturou os quatro reais clãs de serpente com amorosa mente. Se, em verdade, ó monges, aquele monge tivesse saturado estes quatro reais clãs de serpente com amorosa mente, ó monges, em verdade aquele monge não teria morrido se ferido por serpente. Eu conclamo a vocês, ó monges, de permear estes quatro reais clãs de serpente com amorosa mente, para a segurança pessoal, para a proteção pessoal”. O Sublime disse isto. Tendo dito isto, o Caminhante, o Mestre outra vez proferiu assim:

1.  Meu amor está com os Virupakkhas
Meu amor está com os Erapathas
Meu amor está com os Tchabyaputtas
Meu amor está com os Kanhagotamakas

2.  Meu amor está com quem não tem pés
Meu amor está com quem tem dois pés
Meu amor está com quem tem quatro pés
Meu amor está com quem tem muitos pés

3.  Que não me fira nenhum que não tenha pés
Que não me fira nenhum que tenha dois pés
Que não me fira nenhum que tenha quatro pés
Que não me fira nenhum que tenha muitos pés

4.  Possam todos os seres, todos aqueles com vida
Possam todos aqueles que retornaram
Em sua totalidade
Possam todos ver o que é bom
Que nenhum mal venha a sofrer

O Buddha é ilimitado, o Dhamma é ilimitado, a Sangha é ilimitada, mas os corpos têm limites. Serpentes, escorpiões, centopéias, aranhas, lagartos, ratos. A segurança deles foi feita por mim. A proteção deles foi feita por mim. Possam estes seres recolher (a suas habitações).

Que eu adoro o Sublime, adoro os sete completamente iluminados.

PELA FORÇA DESTA VERDADE POSSAM AS TRÊS JÓIAS PROTEGER VOCÊ!  (Três vezes)

CUIDADO COM A ARANHA MARRON... FOI ENCONTRADA NO RIO DE JANEIRO... ESCONDE-SE NOS SAPATOS E ROUPAS... O SORO SE ENCONTRA NO INSTITUTO VITAL BRASIL, EM SANTA ROSA, NITERÓI... ELA É PEQUENA A GENTE SÓ CONSEGUE SENTIR 3 DIAS DEPOIS... PODE NECROSAR E ATÉ MATAR... HÁ UMA EPIDEMIA DELAS...

sábado, 14 de abril de 2018

O MORCEGO

O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica dasede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
“Vou mandar levantar outra parede...”
-- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
AUGUSTO DOS ANJOS

quarta-feira, 11 de abril de 2018

MORRE MASSAUD MOISÉS

Massaud Moisés (São Paulo9 de Abril de 1928) foi um professor titular da Universidade de São Paulo (USP), Brasil, de 1973 a 1995, ano em que se aposentou. Faleceu no dia 11 de Abril de 2018 vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).

casa abandonada

casa abandonada
rogel samuel
as janelas estavam assassinadas
assistiam a tudo
ao mar, às aves, à montanha
nunca mais fechadas
fecundadas de vento
arrebatadas de sol
batidas pelo firmamento
e as janelas nunca mais se fecharam
porque não havia ninguém mais lá dentro
porque os poros da casa se abriram
às verdejantes trepadeiras
que cobriram todo traço do passado

terça-feira, 10 de abril de 2018

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

Rogel Samuel


- E tu, última sombra, demais não será para saltares do chão pedir e pelo bosque voares? Em ti já as figuras sutis se delineiam das finais invisíveis. O do rastro não é senão o de meu desatinado rumo.
- Aonde foram eles, aonde, aonde? Ao fim do mundo?
         «...et la nuit seule entendit leurs paroles...» - cantava Verlaine.
- Gruta de luz! Gruta de luz!
Lá fora, gigantes chamam para a luta.
- Que gigantes? Avança, prepara o combate, as grandes armas já ouço, que rolam, pesadas como bolas, de aço e no vácuo tempo de entrechocarem-se. Avança! O que está cumpra-se de imediato, escrito, o cortinado abra-se da cornija do luar,  que a fina roupagem de gaze a veste, que seja desnudado o limbo, vai. Vai, e a vida valerá teu grito de socorro. E a angústia tua nos gigantes clama para a luta?
         Mas nada. O bosque morto, daquele halo de leite impregnado, de lua e o seu silêncio como diáfano véu circulando como cobra que serpenteia entre as árvores...
«A lua branca, no bosque brilha. De cada ramo, parte uma voz: Oh, bem amada!»
Lá bem longe, sopram os gigantes grandes tubos e escudos dos ventos. Mas não aqui, nessa calma, massa lassitude plácida. A gruta se enviesa em si. Velam-se as paisagens em harmonia oblíqua. Desço a ladeira, saio da massa da paisagem, intocado. Passo. Em vão. Cruzam-me ruas, calçadas em diagonal, lusco-fusco, molhadas da madrugada, vitrificadas do nada, amassadas por grandes árvores escuras que se curvam no meio do vento como comadres assanhadas. As folhas escorregam pelo chão. Não é rua, mas o Bois de Vincennes, Paris. Os lencinhos das folhas das árvores caem. Flutuam, gélidos.
Um vulto cabisbaixo sob as formidáveis árvores passa, envolto em manto preto, desaparecendo mergulhado na neblina de luz da lua. É uma velha. Que prossegue. Ela fala baixinho e sozinha gesticula (balbuciando talvez suas coisas do passado, referindo-se a seres que já morreram, ou será uma prece repetida em murmúrios por aléias velhas ali mesmo onde talvez ela conhecera seu jovem amor, talvez).
Eu a sigo. Vejo-a esconder de mim umas notas velhas, amassadas, amarradas em nó de pano. Talvez pense que sou um ladrão (e talvez eu mesmo seja), do tempo, do passado, de histórias de narrativas... aquilo não é dinheiro, mas algo mais precioso, mais raro, as velhas cartas de amor, sobras daquela era curva de preto. Ela já não me vê, mas pressente, eu a sigo, como um assassino. Ela prossegue, figura embaçada, saída das brumas do seu desconhecido passado.
         Agora chove.
         Pois na face da paisagem (aquelas árvores encurvadas sob a chuva fina, aquelas aléias e o lago por cuja superfície lisa onde cai a gélida geada) aquela mulher prossegue já coberta pela sombrinha... eu estou perto daquele templo tibetano karma-kagiu, a velha meio torta, resmunga alguma coisa para um invisível ser a seu lado, apontando-o, acusando-o com o dedo indicador, em ameaça: «você me abandonou», parece gritar.
Mas, louca, um sorriso se esmalta, e depois a estranha gargalhada, sardônica, louca teatralidade, que se espalha, por todo o espaço do mundo daquele bosque se espraia... a vera, a realidade da horrível comédia... o sorriso...
         Oh, poucos puderam presenciar tão rara de face para o meio da noite escura, naquela facetada madrugada, pois a senhora parou, sem me ver, ria-se tragicamente para a capa do copa daquelas grandes árvores altas, falando aquelas incompreensíveis coisas naquele idioma histórico, desusado, arquivado e raro... e desapareceu como a sombra da neblina onde fiquei à espera de que os grandes gigantes aparecessem para a minha luta.

(FOTO DE R. SAMUEL)

sábado, 7 de abril de 2018

Noite negra

Noite negra
Noite. Noite negra, nesta montanha.
Unidos pelo mesmo hálito,
o mesmo manto sem estrelas.
Nesse mundo, onde estamos nós?
Nessa noite negra. Tão negra
que deixamos acesa aquela luz.
Entre nós. Nossas luzes.
Negra noite
ROGEL SAMUEL.

um poema azul

um poema azul



um poema azul
sai da parte nova
da velha cidade
que escreve a cena
do azul poema
sob sol tão belo

por que neste zelo
esta cor tão velha
renova revela
risco no vermelho
sua prova senha
que azul aceita

por que neste traço
não se lança, pássaro
sobrevoa aquela
longínqua montanha?

esta cor tamanha
faz-me prisioneiro
e do ar cordeiro
que do texto inteiro
sou escrito nela?

leva me revela
sobrevejo aquela
forte aquarela
e naquela tela
me lanço no ar.

meu amor primeiro
vejo-te inteiro
neste meu ofício
de fantasiar.

mas triste é a noite
e esta senhora
que me trouxe a hora
para vida a fora
eu me lastimar.

cada vez mais perto
estende o seu mundo
seu ponto segundo
seu sagrado ato:
que não creio revele
seu pior segredo:
nem por mais sentir
o menor dos medos
pois neste ofício
pois neste tinteiro
o azul faz poema
e a tua pena
vai-te envenenar.


ROGEL SAMUEL
(maio de 2.000)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

SONETO

SONETO

Penso em vós, jubilosas testemunhas
dessa infância ondulada pelo sono.
Passarinhos azuis e a mira exata
da usura e da vileza por seu dono.
Penso  em vós, correntezas abrigando
um sol de barro líquido: a canoa
junto aos funis que, logo, repentinos,
sugam qualquer gigante pela proa.
Penso no meu lendário de alfazemas,
nas chuvas com seus peixes luminosos,
nas contas de meu pai, nos meus sapatos
a caminho de um circo imaginário.
Tudo se gruda aos ossos deste empenho
de esquecer o que sou e donde venho.

JORGE TUFIC

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Alcides Werk (1934-2003)




Estudo IX

Alcides Werk (1934-2003)




Fez-se uma curta pausa. E a noite baça 
estendeu seus lençóis sobre as cidades.
Ventos frios de morte andavam soltos, 
e formas embuçadas destruíam

restos vagos de luz. Alguns senhores 
guardaram pressurosos seus haveres 
para a estranha vigília dos sonâmbulos. 
Nas sombrias e extensas avenidas

as multidões dos homens deserdados 
prosseguiram seus ritos no silêncio 
de uma noite sem tempo. E os anciãos

das várias tribos foram convocados 
para o mister pacífico das aras 
e a glorificação das horas mortas.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O AMANTE DAS AMAZONAS



O almoço fora servido por Maria Caxinauá, a índia parecia velha como a floresta. A fresca maacu expõe seus braços à imaginação do olhar. A seda acentua e escorre como cola gosmenta. Naquela hora tudo escorre. Morna, preguiçosa, sensual. O igarapé escorre em velocidade invisível, na passagem oleosa. Silencio. Rio de óleo. Chama-se “igarapé” por economia geográfica, por seus estreitamentos, sua foz escondida entre duas grandes sumaúmas. “Do inferno” significa “dos Numas”, de onde vem, do leite do látex e dos índios. A concentrada riqueza. Pierre Bataillon descobriu aquele rio em 1876. A extração amazonense dobrava, a cada década. De 1821 a 1830 eram 329 toneladas. Na década seguinte dá-se a expansão: 2.314 t. De 41 a 50, 4.693 t. Grande desenvolvimento de 51 a 60: 19.383 t. De 71 a 80, 60.225 t. Após a sua chegada: 110.048 t! Até aquele ano Pierre conseguira extrair cerca de 20 mil toneladas, amealhando uma fortuna em libras, explorando quase 500 homens que se espalhavam numa região onde caberiam alguns países europeus. A maacu olha. Ferreira se sente atravessado por um calafrio mortal. Sente frio na hora de maior calor. As carapanãs e as moscas sanguessugas zunem nos ouvidos. Os piuns incomodam muito. O calor é pesado, úmido, adocicado, de jenipapo e mel. Amolece. Fantasias, devaneios, delírios, sonhos. Aquela era a primeira viagem de Ferreira ao interior. Ele e o sogro queriam o Seringal, armavam os complicados lances de um jogo de xadrez comercial. Ferreira parecia cansado da viagem. Pierre soltava fumaça no ar. Era só cautela e espera. A qualquer momento, surpresa. Agora Pierre começava a falar dos Numas. Ferreira passava do desejo ao temor. Olhava com pavor para as árvores, como se temesse surgir um monstro. Pierre parecia calmo. Anulava seus fantasmas, as pernas cruzadas, como num café parisiense. Por que aquele homem não arregimentava sua fortuna e voltava para Paris? Pierre, o inesperado. Sua ambição era o antídoto contra o tédio amazônico. Desafiadora, Ivete (que assim se chamava a índia, Ivete Romana) considerava o jovem de longe. Ela, desafio e indução. Ferreira tossia, compunha-se na cadeira. Ivete movimentava os olhos com a elasticidade de serpente, devastadora e tátil. Ferreira recuava na cadeira, sentia-se tocado. Através das colunas de pedra do parapeito se descortinava o excessivo panorama daquele estilizado painel amazônico neo-rococó, entrelaçado de gavinhas e ramificações. A floresta fechava seu abraço. Mas o moço tentava sobreviver, na plenitude do anfiteatro das copas das sumaúmas pré-colombianas. No Juriti Velho havia uma árvore de 60 metros de altura. O edifício todo se encastelava, encapsulado de civilização da humanidade européia. Estava onde não chegavam os saberes constituídos. Como que traído, Pierre vê a possibilidade de neutralizar o visitante. Espera tirar o secreto motivo que o trouxera ali. Adivinhava cordialidades ameaçadoras. Precata-se em suas cautelas, conversas, narrativas. Os curumins brincam na ubá atracada. Fecham o nariz com dois dedos, pulam de pé. Depois correm pela margem. 

É possível que os mastros se rompam...

É possível que os mastros se rompam...













É possível que os mastros se rompam...

Rogel Samuel

Brisa marinha

(Quadro de Manet)

Tradução: Augusto de Campos

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir! Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei! Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre ondas más,
Se rompam ao vento sobre os náufragos, sem mastros, sem mastros,

[ nem ilhas férteis a vogar...
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!


Mallarmé ecoa a brisa, a brisa marinha. A tradução de Augusto de Campos é uma obra-prima. Podemos sentir a brisa entre os versos, e sua evocação, e sua evocação de fuga, sim, porque não adianta fugir através dos livros que já os tenho lidos, fugir, mas fugir mesmo, oh, só os pássaros são livres para fugir, fugir com minhas asas da imaginação para as maravilhosas ilhas da imensidão do mar, como nas aves, como nos pássaros ébrios de azul e de imensidão, os pássaros e naves que se entregam às espumas e/ou aos céus imensos, suspensos, amplos, livres, etc.