segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O sol do verão


O sol do verão


Rogel Samuel


O sol, o verão. O brilho intenso, os ares claros, as nuvens raras. No Rio é tempo de mar.

         Lembro-me de crônica de Rubem Braga, sobre o começo do verão.

         Um dia - e não sei se já contei - estávamos na biblioteca da Faculdade que na época era a FNFi, ou Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Ficava onde hoje está a Academia de Letras.

         Era manhã cedo.

         Entra um bêbado.

Um homem em desalinho, mas bem vestido.

Grita:

         - Tem meus livros aí?

         Ivete, a diretora da biblioteca, manda chamar os funcionários para que ponham para fora o intruso.

         Mas não deixamos e ele se reuniu conosco.

         Era Rubem Braga.

         Tinha acabado de ser embaixador, ou coisa assim.

         Não disse quem era, mas nos contou sua vida (com detalhes indiscretos que não devo contar).

Escreveu um poema para minha amiga Maria Alice (que faleceu).

         Falou de literatura, poesia, vida. De Copacabana.

         Narrou suas mágoas.

Braga é um dos maiores escritores do país.

Seu texto, comparável a Clarice, a Machado, a Francisco Manuel de Melo.

Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666) é autor da CARTA DE GUIA DOS CASADOS, escrita na prisão, que fala 'do amor e da obediência'.

Diz Manuel de Melo: 'Não sou já mancebo. Criei-me em cortes; andei por esse mundo; atentava para as coisas; guardava-as na memória. Vi, li, ouvi."

O texto seco, sem adjetivos, direto e elegante. Como eu gosto.

' Estes serão os textos, estes os livros que citarei a V. Mercê, neste papel; onde, juntas algumas histórias que me forem lembrando, pode muito bem ser não sejam agora menos úteis que essa máquina de gregos e romanos, de que os que chamamos doutos, para cada coisa nos fazem prato, que às vezes nos enfastia'.

Mas meu assunto é o sol.

O sol do verão me alucina.

         E de Braga a D. Francisco Manuel de Melo passei.

Precisamos aprender a escrita com D. Francisco. E a bem casar.

Minha amiga X me critica. Diz que a minha linguagem é telegráfica.

Sim. É. Corto mais do que introduzo palavras.

Meu ideal é escrever uma crônica de uma única linha.

domingo, 30 de dezembro de 2018

AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO















AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO



Rogel Samuel




Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido no Ano Novo, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trababalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia que me ocorre das ondas do tempo neste Novo Ano.

chuva na cidade

chuva na cidade
rogel samuel
porteiros lavam as calçadas
ou varrem para o meio-fio
viúvas saem a passear com o cão
andando devagar
homens de terno tiram os carros das garagens
deixando dormindo suas esposas
que sonham com suas asas
há uma brisa fresca neste verão
o dia nublado

sábado, 29 de dezembro de 2018

Cada ser humano é uma estrela

Cada ser humano é uma estrela





Cada ser humano é uma estrela

Rogel Samuel


"Como explicar que aquele pianista que morre de medo antes de entrar em cena depois seja possuído de grande e jubilosa alegria?", pergunta Alain. Talvez porque seus dedos não sabem o que é ter medo, e o medo é um fantasma da sua cabeça. Esse é o sentido do "treinamento" do corpo.

Em tudo podemos nós treinar. Eu escrevo diariamente como "treinamento", como um pianista que depende de várias horas de estudo por dia para poder estar sempre em forma: Quando se senta ao piano, "naturalmente" seus dedos sabem o que fazer e aquilo se torna para ele uma verdadeira natureza, ele naturalizou e se integrou com o piano. Nós somos capazes de muitas coisas desde que treinemos. Como os lutadores treinam e se adestram. E como há uma integração do corpo com a mente, vencemos alguns obstáculos.

Este é o sentido da disciplina.

A disciplina não é uma canga rígida, que estrangula o corpo. Ela permite que nos libertemos constantemente de nós próprios, disse Dugpa Rinpochê.

Creio que sem alegria não há disciplina. Sem prazer.

O maior obstáculo é aquela sensação enorme de um “eu” que há em nossa mente.
O “eu” é um fantasma que nos segue como uma sombra.

Quando começamos a nos exercitar, esquecemos temporariamente do “eu”.
Aí somos felizes.

Os conflitos, o ódio, a violência, provêm de um sentimento enorme de um eu ferido, nascido de desconhecimento de si mesmo, que gera dor e confusão, disse o Rinpochê.

“Não somos nada, tudo é o que almejamos”, escreveu mais ou menos Heidegger na Floresta Negra.

“Não duvides do teu próprio esplendor interior. Cada ser vivo é uma estrela”, disse Dugpa Rimpochê.

São pensamentos contraditórios. Mas sem a contradição não damos conta da dialética da realidade, diz o materialismo histório marxista.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A perda de um grande amigo: Benedito Nunes


A perda de um grande amigo: Benedito Nunes

Rogel Samuel


Soube de sua morte no blog do Zemaria Pinto, no “Palavra do fingidor”.

A última vez que o vi foi na UFAM, em Manaus, durante um seminário. Eu estava sentado a seu lado, junto com sua esposa, conversamos muito e dele ganhei um exemplar de uma revista acadêmica. Depois de tantos anos, ele me reconhecera. Tinha uma memória privilegiada, uma inteligência imediata, uma cultura enciclopédica, e uma humildade e simplicidade cativantes.

Ele era um grande mestre, respeitado no mundo todo, até por nomes como Foucault.

Foucault veio de Paris para visitá-lo, e se hospedou em sua casa, na praia.

Também estive com ele na Editora Vozes, na UFRJ, em alguns poucos encontros. 

Mantive uma correspondência com ele.

Foi pouco. Mas a companhia de um Mestre tem efeito multiplicador.

Encontro agora uma pequena carta que me escreveu:

“Belem, 17.12.86

Prezado Rogel Samuel:

Só agora – tantos foram “os trabalhos e os dias” de viagem neste ano - posso agradecer-lhe o artigo com referencias à minha pessoa. Também agradeço o Teolit, livro de um Mestre, igualmente Inventor, que me ensina a ensinar.

Um abraço do

Benedito Nunes”

Não encontro outra carta, no meio da papelada desorganizada em que vivo.

Mas a dor de sua perda.

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Auto de Natal em Copacabana


Auto de Natal em Copacabana

Auto de Natal em Copacabana

Rogel Samuel

(Madrugada. Calçadão, perto do Copacabana Pálace):
- Venham, irmãs! Acorrei com suas glórias! O Filho do Senhor acaba de nascer!
(E logo, múltiplas Graças vestidas de bruma se reúnem em festa ao redor de  adolescente negra, moradora de rua, que acaba de dar à luz na calçada. É uma garota negra, sorridente e feliz, chamada Maria. O Pai, um desempregado cearense alcoólatra, de nome José, sujo e sem nada entender, achando que vai ter confusão e polícia, atravessa a rua e some na praia escura, com uma garrafinha de plástico branca nas mãos. As Graças, que se sabem ser oniscientes, tornam-se invisíveis para não chamar atenção, mas não há quase ninguém por perto, além de raros porteiros e seguranças com celulares nas mãos.
Das varandas luminosas dos prédios de luxo vem forte som de música de suas festas de Natal. Dançam. Um grupo animado de jovens bêbados passa gritando num carro. O vento interior vem do mais longínquo mar com sua ressonância salgada e boa, para homenagear o Filho do Homem. Maria, a jovem parturiente, agasalha-o nos trapos de que dispõe, mas vêm surgindo de algumas portas os próprios Reis Magos que lhe trazem ofertas de sedas, além de presentes diversos: doces, frutas, pães, vinho. Uma grande estrela está imóvel no céu, mas ninguém a vê e pensam que é um balão atmosférico. Anjos, Espíritos e Santos de diversas seitas e Igrejas cercam o Menino e sua Mãe, invisíveis aos mortais. Um silêncio luminoso invade os céus de Copacabana, sim, porque o Filho de Deus acaba de nascer, trazendo bênçãos e esperança para todos. Nos morros, o batuque de Pais e Mães de Santo celebram a sua Glória. Nas Igrejas, padres liberam hinos elevados em sua homenagens. Taças de champanhe circulam nas mãos das madames ricas em festas particulares e brindam o pequeno. As crianças, já dormindo, sonham com ele vestido de Papai Noel, com ricos presentes de Natal. Os namorados se amam e se beijam nos becos e apartamentos, e exultam a sua gloriosa chegada.
Uma patrulha da polícia passa e olha para aquela estranha reunião e resolve investigar. Mas os anjos do Senhor espalham uma névoa nos olhos dos policiais e eles resolvem ir embora.
Porque no chão da Avenida Atlântica o filho de Deus acaba de nascer, agora cercado de uma população noturna que veio homenageá-lo e participar de sua ceia.

No ar, invisíveis, mas luminosos, os deuses celebram sua Glória e incensam o ar. E rezam para que o Menino se torne Homem e não seja crucificado, morto ou fuzilado a carpir a nossa culpa nos porões das masmorras de nossas prisões ou nos terrenos baldios e pantanosos das favelas!)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O METRO ADVERSO

O METRO ADVERSO

ROGEL SAMUEL

Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

O que acontece é que o famoso “Soneto de natal”, de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possue algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto “corretamente”, e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal.
* * *

O tal soneto começa com um indefinido: “um homem”... Um homem não é um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no dia de natal, lembrando-se da infância, e “a viva dança, e a lépida cantiga”, esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário o soneto não teria nenhum sentido estruturante. 
* * *

Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de “noite cristã etc” que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se fie o leitor nessa estória comovente de “verso doce e ameno”, isso é pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o “metro adverso”, a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia, apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"



* * *

Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século, tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente “beleza” perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela “noite amiga”, naquela “noite cristã”, naquele “berço do Nazareno”, quando “sabemos” ou desconfiamos de que Machado não está falando sério, de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional brasileira...
* * *

E foi assim que este soneto se tornou um clássico.

domingo, 23 de dezembro de 2018

A PAIXÃO

A PAIXÃO

Rogel Samuel

Eu sei: sei que o leitor e a leitora já ouviu "A paixão segundo São Mateus" de  Bach. Não sei se na mesma gravação que ouço agora, Deutsche Grammophon 419789-2, conduzida por Karajan, com a Filarmônica de Berlin e Gundula Janowitz etc.,  coro da Ópera de Berlin, em 1972. Não sei. Que dizer? A massa sonora desaba a dramaticidade de uma catástrofe. Que mais? Karajan explorou os "Ah!" - alongando "aa", estupefatos, de puro horror, perdurando-os até o limite do insuportável da dor. O ouvinte pode gritar: "Pare!" E o duplo coro: "Venha, irmãs, compartilhem com as minhas lágrimas" - na  expressão funda em que o coração se despedaça. "Veja-O". "Veja-O" - se ouve a Mãe dizer, a apontar o filho, petrificada, horrorizada, vendo o amado filho, ali, no alto da sua compaixão, a caminho do sacrifício, a caminho do Gólgota, a caminho do Lugar da Caveira. E as flautas choram, os fagotes e violinos gemem, o órgão acorda, o coro, gigantesco, se engasga porque o mundo inteiro está em ruínas, o Universo estremece estarrecido - o que foi aquilo? Que é aquilo que vemos? Oh, que horror!  São ondas largas, são ondas largas. "Veja-O, o torturado". (Mas riam dele, e despojavam-no de suas vestes, cuspiam nele e, tomando o caniço com que se apoiava, davam com ele na cabeça, obrigando-o a beber vinho com fel). Mas Ela, a Nossa Própria Mãe!,  nos exclama: "Veja a sua doçura!" Veja com que doçura ele vai a caminho da dor. Não há, neste tema, talvez o maior de todos os temas - do sacrifício, da tortura, da loucura, da violência, da nossa crueldade — maior realismo do que esse: "Estais vendo? Estais todos vendo o que vejo? [pergunta a Mãe]. É ele! Veja a sua doçura a caminho do calvário!"  E a massa do diáfano coro infantil, saído não se sabe de onde, talvez das profundezas das nossas próprias mentes, as crianças celestes, as mais puras crianças celestes, uma surpresa de Bach, que entra com vozes vindas de um céu distante onde pequeninos anjos horrorizados e não acreditando naquilo a que estavam assistindo, com o que estávamos todos assistindo, o mais santo dos homens levado ao sacrifício brutal... Bach usou e abusou de sua engenhoca, da sua capacidade de, num malabarismo barroco, nos enredar, nos torcer como serpente estranguladora de suas malucas idéias musicais, hipnotizando, sufocando até às lágrimas. Na realidade, esta é música perigosa, faz muito mal, depois de ouvi-la nos sentimos mal, pode até matar-nos. São certas voltas e fugas das vozes mais puramente estarrecidas daquelas crianças celestes do coro infantil que gritam nos nossos ouvidos, que gritam para nós, dentro de nós, para que ouçamos nós, para que nunca nos esqueçamos nós: "Ó Deus, como ele está sereno a caminho da cruz" - "Como está paciente!" "Ainda que cruelmente torturado..." ... de seus olhos saem a sua grande e máxima compaixão...". A música passa por sobre nossa sensibilidade como um tanque de guerra. E Bach trabalha com a gigantesca massa de sonoridades impressionantes, quando o texto da antiga liturgia luterana nos diz (não sem ironia): Tende piedade de nós, ó Jesus! Nós vos imploramos, ó Jesus, tende piedade de nós! - Isso dito na hora mesma em que ele está a caminho da morte! E todo coberto de sangue! Tende piedade de nós, vós que caminhais para a morte, enquanto carregais sobre os ombros o instrumento da tortura! Vós que estais sendo levado à mais terrível dor, ao supremo de todos os nossos erros, tende piedade de nós! De nós que vos condenamos à Morte! Tende piedade de nós!

sábado, 22 de dezembro de 2018

A teoria da decisão filosófica de Euryalo Cannabrava

A teoria da decisão filosófica de Euryalo Cannabrava


Rogel Samuel


Mais uma vez tento reler o livro de meu mestre Euryalo Cannabrava. Livro difícil, mas extraordinário.

Cannabrava tentava publicá-lo quando era meu professor, na pós-graduação.

Ele um dia entrou furioso na nossa sala e contou que tinha ida ao gabinete do amazonense Artur Cesar Ferreira Reis, que era então presidente do Conselho Federal de Cultura, autoridade que dirigia o Instituto Nacional do Livro em plena era da ditadura militar.

- Começa que eu tive de marcar audiência e ele me deixou esperando na ante-sala, contou irado.

- Quando entrei no gabinete com os manuscritos do livro debaixo do braço, ele, sem levantar os olhos dos papéis que assina, perguntou:

- Que o senhor deseja, professor?

- Eu não agüentei: dei o murro na mesa dele e disse: "Exijo respeito!"...

E por aí foi a briga.

- Certamente o livro não será publicado... - disse Cannabrava.

Mas foi.
 Euryalo Cannabrava certa vez contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, hipotética morte, ele a previa, com data e hora marcada, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e logo seus problemas se diluíam, nada resiste à morte, à Ela, - a suprema! - que «tão cedo passa tudo quanto passa!» e sem a morte a vida seria uma chatice, repetitiva e cruel.
Euryalo Cannabrava é um dos mais importantes filósofos do Brasil. Mario de Andrade o chamava de Mestre. Professor catedrático do Colégio Pedro II, professor-visitante das Universidades de Columbia, de Londres (a convite de A. J. Ayer). Era professor de Cibernética e Lógica Matemática. Autor de diversos livros, como "Descartes e Bergson"(que tenho, com dedicatória), "Elementos de metodologia filosófica", "Ensaios Filosoficos", "Estética da Crítica" e outros.

O curso de Cannabrava a que assisti foi surpreendente. Ele contava casos de sua vida pessoal, de suas amizades, de sua formação. Disse que teve uma preceptora alemã quando criança, e que caçou búfalos selvagens na ilha de Marajó.

Seu nome é mundialmente conhecido nos dicionários de filosofia e ele se correspondia até com Bertand Russel.

O difícil era acompanhar suas aulas quando começava a discorrer sobre a lógica matemática...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

GRANDEZA

A BEMOL DOOU TODA ESSA LOJA PARA OS DESABRIGADOS VÍTIMAS DO INCÊNDIO DE MANAUS... CERTAMENTE UM EXTRAORDINÁRIO FEITO... PARABÉNS PARA A FAMÍLIA BENCHIMOL...Tiro o chapéu para o grupo de fechou as portas da sua loja e doou tudo para as famílias. Sim, eu disse TUDO o que tinha na loja. Fora isso comprou 4 caminhões de gêneros alimentícios e também doou e ainda colocou todo os seus funcionários de lá pra trabalhar e montar os produtos doados. Vocês têm o meu respeito, Família Benchimol.
Fred Lobão
e gêneros alimentícios e também doou e ainda colocou todo os seus funcionários de lá pra trabalhar e montar os produtos doados. Vocês têm o meu respeito, Família Benchimol.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

FELIZ DE QUEM COM CÂNTICOS SE ESCONDE

FELIZ DE QUEM COM CÂNTICOS SE ESCONDE

ROGEL SAMUEL

Eu já escrevi várias vezes sobre o mesmo tema. Nos dias escuros, chuvosos, de hoje, me pego a pensar na Primavera, que virá. Ainda sou marxista, e assim, otimista. O sol ainda vai luzir no horizonte. Talvez um sol que não se apague, como disse Dugpa Rinpochê. Talvez não para mim, que velho estou para esperá-lo. Mas haverá sempre o sol sobre a chuva desses campos de um soneto de Jorge de Lima, que releio sempre, que não me canso de ler, quando deprimido, triste:

“Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios”.
(Jorge de Lima, Invenção de Orfeu - Canto I – XXVI)
Já pensei assim. Se tudo estiver bem, lembre-se de que tempos piores podem advir: “Qualquer que seja a chuva desses campos / devemos esperar pelos estios”. E quando a época ruim chegar, contentar-nos com os nossos sonhos.
O poeta, pessimista, espera danos futuros. Em não conseguir o sonhado amor, que é imortal:
“Porém se não surgir o que sonhamos / e os ninhos imortais forem vazios, / há de haver pelo menos por ali / os pássaros que nós idealizamos”. “Feliz de quem com cânticos se esconde”.
Por que estar triste hoje? Porque «Somos membros uns dos outros», disse São Paulo aos cristãos de Efeso, citado por Laín Entralgo, num artigo. Entralgo era pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, e sempre exerceu sobre mim sobrenatural fascínio. Define Entralgo a capacidade do homem de considerar-se pessoa por dois conceitos: o próprio, e o alheio. Na esfera do próprio, estabelece duas diferentes esferas: o 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e o 'em mim' (que posteriormente ele estuda, na patologia).
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com outra? Como considerar o outro como outro eu? Como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade? Para Entralgo, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''. A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe.
O principal livro de Entralgo, raríssimo entre nós, se chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na Biblioteca Nacional, mas que hoje tenho. Nesse livro, ele percorre a filosofia ocidental em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro. Como em Hegel, quando o eu suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro.
        Alguns poetas tiveram, ou revelam, dificuldade de relacionar-se com o outro. “O inferno são os outros”, já se disse. O poeta é um sofredor inútil. Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma ponte para a solidão sempre presente, sempre fiel, porque esse tipo de poesia tem uma vocação de 'amar o perdido', de buscar o passado, de 'Amar os sonhos que restarem frios'. Marca o reconhecimento de si no outro inexistente, distante e impossível.

As asas depenadas não voam, o coração já não se usa (Cocteau), não ama, as cenas ao redor são terríveis, as dores não mais se expressam, estão secretas, os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de “Invenção de Orfeu” mantém a sua beleza imortal.

MANAUS DEBAIXO DE FOGO


domingo, 16 de dezembro de 2018

Anisio Teixeira na porta da FNFi


Anisio Teixeira na porta da FNFi

Rogel Samuel

A primeira pessoa que encontrei na porta da Faculdade foi Anísio Teixeira.
Mas eu não sabia. O primo de meu pai, Gervásio, me levou até bem perto do prédio e lá fui eu, com 18 anos de idade.
- Aqui é a Faculdade Nacional de Filosofia? – perguntei para aquele senhor mal-vestido, de óculos velhos de aros “de tartaruga”. Pensei que era o porteiro. Era Anísio Teixeira, conforme depois soube, meu professor de Filosofia da Educação. 
Ele me orientou, da porta, e eu fui inscrever-me no Vestibular, recém-chegado de Manaus.
Não passei, naquele primeiro vestibular. 
No dia da prova de francês, estava com febre de 40 graus e D. Marcella Mortara me reprovou, ou melhor, inutilizou minha prova com um risco diagonal e escreveu como nota: “Ilegível”, e aplicou um zero.
Sempre tive uma péssima letra. Até hoje. Eu devia ter estudado caligrafia, como se faziam os antigos. 
Por isso, estudei ali no Curso Vestibular da própria Faculdade, gratuito, por um ano. E foi bom. 
O curso era do Diretório Acadêmico (um ano depois eu era professor ali), e os professores eram os alunos... mas uns gênios. 
Fui aluno do Antônio Pio (onde andará), de latim. Lia latim e grego como eu hoje leio jornal. Anos depois foi aposentado precocemente vitimado por misteriosa doença. Fui aluno de Antonio Augusto, depois assistente do Celso Cunha. Ali só havia gênios. 
Eu morava em quartos alugados e comia no Calabouço, restaurante da UME, União Minicipal dos Estudantes, que ficava nas imediações do Aeroporto Santos Dumont. 
O Aterro estava sendo feito.
Tive a sorte de passar em primeiro lugar (foi o que me disse depois Aluísio Trinta) para o Vestibular de Letras Clássicas. Pura sorte. 
Havia 20 vagas, só passamos creio que 12. Provas escritas e orais. 
Celso Cunha, na prova, mandou que justificássemos o verso de Camões: “Mas porém a que cuidados”. Ele queria se explicasse o “mas porém”. 
E por aí foi.
O meu quarto, no Maracanã, dava para um beco e uma casa abandonada. 
Dali eu só tinha a visão daquele muro velho e, à esquerda, uma árvore antiga daquela rua Eurico Rabelo.
Como eu precisava de mesa, comprei um “bureau” usado, antigo, de madeira preta, que pertencera a um ministério. Era gigantesco.
O Maracanã ficava em frente, e nos grandes jogos cada gol soava como uma onda que se elevasse saída de um vulcão furioso.
Era possível entrar no Maracanã vazio, ir até o gramado, olhar do centro para a periferia, para aquelas galerias monstruosas e vazias, descritas por Clarice Lispector num belo conto.
Passei a explorar o Rio, de ponta a ponta. 
Nos dias livres tomava um ônibus e visitava Caxias, Meriti, São Gonçalo etc.
Chegava no fim da linha, pegava o ônibus de volta. 
Foi aí que desenvolvi o espírito de viajante. Mais tarde percorri o Nordeste, o Sul, e depois o mundo, Katmandhu, Sydney, Paris...
O espírito de aventura. Que perdi, depois de velho.
A porta da FNFi foi minha entrada para o mundo.

NA FOTO, AO LADO DE MONTEIRO LOBATO