segunda-feira, 29 de novembro de 2021

UM ROMANCE DE ASSIS BRASIL, FALECIDO ONTEM

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 Um romance de Assis Brasil - Rogel Samuel

Em ”O prestígio do diabo” (São Paulo, Melhoramentos, 1988) Assis Brasil apresenta o panorama da vida da pequena classe média daquela época com maestria, pois o personagem Lázaro é escriturário, bem comportado, humilde, correto, calmo, preocupado com as aparências (“o que vão pensar?”, “começaram a olhar”, “podiam pensar que fosse um ladrão”), cuidadoso com a mãe e a irmã, tímido (nunca se declarou para Cacilda) e de repente, depois de algumas “quedas” (em que sentia que algo o empurrava ao chão) perde o emprego e começa a mudar. A alteração é lenta, quase imperceptível, mas vai assim até o seu surpreendente fim. O livro é muito bem construído, como todos os de Assis Brasil, e exibe a sociedade carioca das décadas de 60/70, o clima, o cotidiano, o centro da cidade, o subúrbio, no caráter humilde e bem comportado do jovem Lázaro (cujo nome é significativo). Sua mudança lenta e terrível, assim como foi a transformação moral da sociedade carioca. Há no livro um velado questionamento da luta do Bem contra o Mal, onde o “prestígio” do Mal vence.
O principal personagem, porém, é a sociedade carioca, a classe média pobre do Rio de Janeiro, a rua, a decadência das ruas, a vida, a corrupção do meio urbano. O romance é pessimista. Descreve com sutileza a loucura das grandes cidades. Abre a vida sem sentido, o aviltamento da moral brasileira, não só dos políticos ou da classe dominante, mas da sociedade como um todo, e principalmente a perda dos valores morais da classe média, o desvalorizar generalizado da vida privada, a sua favelização. O que está em jogo não é só vida pública, mas a contaminação do familiar, pois o mundo somos nós. O mestre Assis Brasil desse modo se faz herdeiro do romance machadiano.
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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

A LANTERNA NO LABIRINTO


 

A LANTERNA NO LABIRINTO

Em “Mapa das narrativas nos romances de Milton Hatoum”.

 

ROGEL SAMUEL

Em “Mapa das narrativas nos romances de Milton Hatoum de Francisca de Lourdes Souza Louro. -- Manaus, 2021” há uma cartografia, um passeio pelo mundo das ruas, das portas da linguagem, do som da crítica e da imaginação, as algaravias, as falas, as cartas, as identidades.

O livro vai tecendo um tapete de significações, explicitações, com a vantagem de que vai ficando cada vez mais interessante à medida que avança, de forma que em vez de ser cansativo, acadêmico,  árido, repetitivo para o leitor mais alarga mais aumenta os interesses hermenêuticos, aquelas confissões, murmúrios, fofocas, recados, sintomas, cartas, como disse alguém: “Conta logo, mas devagar...”, que o prazer está nos cantos escuros do texto, e detalhes, n“as mocinhas do viúvo Talib, não as filhas: as outras, que ele fisgava perto dos armazéns. Na casa dos Reinoso era muito pior, Zana ficava sem fôlego, me pedia para contar tudinho. Quando a confusão começava, os empregados ligavam o gerador para abafar os guinchos dos macacos e os gritos de Abelardo Reinoso”.

Em que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?

Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tam­pouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Re­cherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recor­dação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passa­do; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É certo que a memória intervém como um meio da bus­ca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado inter­vém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase mu­sical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembran­ça, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação material".  A obra de Proust é baseada não na exposição da me­mória, mas no aprendizado dos signos. (Deleuse: “Proust e os signos”).

 

Esse aprendizado o faz a leitura que a Lourdes Louro faz (por exemplo) das mulheres que emergem dos romances, principalmente daquelas invisíveis, as “escravas”, crias, prostitutas. É na teia dos igarapés, da cidade flutuante, das falas, dos esquecidos, da algaravia. O aprendizado da vida amazônica. Sua tristeza, seu capitalismo periférico. Como em Proust, “é baseada não na exposição da me­mória, mas no aprendizado dos signos”.

Pode-se dizer que Lourdes Louro construiu um romance fragmentado sobre os três romances do Milton através de “pistas sobre sua produção, cartas, fotos, conversas com os mais velhos, especialmente os avós, o pai, muitos artifícios para dar os nós nos fios que amarram o texto”.

Escreveu Hatoum:

“Decidi, então, perambular pela cidade, dialogar com a ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço. (p. 122) Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Crescemos ouvindo histórias macabras e sórdidas daquele bairro infanticida, povoado de seres do outro mundo, o triste hospício que abriga monstros. Foi preciso distanciar-me de tudo e de todos para exorcizar essas quimeras, atravessar a ponte e alcançar o espaço que nos era vedado: lodo e água parada, paredes de madeira, tingidas com as cores do arco-íris e recortadas por rasgos verticais...”

De acordo com Ricoeur e Gadamer, a hermenêutica vê os textos como expressões da vida social fixadas na escrita, através de fatos psíquicos, de encadeamentos históricos. Sua interpretação consiste, então, em decifrar o sentido oculto no aparente, e desdobrar os diversos graus de interpretação ali implicados. Na realidade a hermenêutica é compreensão de si, mediante a compreensão do outro: o máximo de interpretação se dá quando o leitor se compreende a si mesmo, interpretando o texto.

A tática da interpretação aparece sempre que há ambigüidade, mas compreender não significa a repetição do conhecer. A hermenêutica postula uma superação: Ela se quer uma teoria e uma arte, fazendo da leitura uma nova criação, e dela se exige uma reflexão que leve à ação.

A hermenêutica questiona a evidência, recusando-se a explicar completamente o fato interpretado. Uma interpretação definitiva deve ser uma contradição em si mesma, diz Gadamer. Pois, mais importante do que interpretar o claro conteúdo de um enunciado, é perguntar pelos interesses que o guia.

”Vemos nas cores da grande tela amazônica, os quadros narrativos que o autor imprime e apresenta aos leitores, como se observa nos três romances”, diz a Lourdes Louro.

Ele conclui que “neste texto, mas por acharmos ser a mais exata para fechar a análise pode-se constatar que estudar os três romances nessa “perquirição” foi uma aprendizagem abalroada (em que) eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas ou visgado na penumbra dos quartos (RcO: p. 51) onde percebi e tive o prazer de (re)ver nas histórias hatounianas o (re)viver da vida amazônica.”

O termo hermenêutica, num sentido mais radical, não quer dizer arte da interpretação, mas a tentativa de determinar a própria interpretação, a própria compreensão. E assim, a hermenêutica torna-se interpretação da compreensão ou “círculo hermenêutico”, pois toda compreensão apresenta uma estrutura circular: “Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar.” O mundo, portanto, é o que se encontra no horizonte da compreensão. Nosso mundo é o que se encontra no horizonte de nossa compreensão, mas podemos alargá-lo, mediante a compreensão do outro, realizando então uma fusão de horizontes.

O que deve ter norteado a dra. Lourdes Louro é compreender a nossa cidade de Manaus, estabelecendo e abrindo um mapa de sentidos, um roteiro no labirinto, do entrecruzamento de vidas, de relatos, de sofrimentos, um quadro que se amplia no espaço, no tempo, na profundidade dos sentimentos – os nichos e escondidos, as gavetas – as tensões, amizades, e tudo que constitui a vida, esse mistério. As estórias daqueles personagens naquela cidade única, cercada de floresta, rios e lagos. Através dos textos do Milton procurou o valor de sua própria vida, de sua humanidade, que é o que faz a hermenêutica. Toda pergunta busca essa impossível resposta nos fragmentos das recordações (e assim o livro é fragmentado).

O livro de análise e leitura é propositalmente costurado em temas e lemas, em fatos e motes, em fantasmas, medos, vultos, sombras, pois em certa época (que eu conheci) não se podia andar à noite sem levar uma lanterna.

Essa lanterna é o que busca o rumo do nosso destino.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

AS RAÍZES DA FLORESTA - ROGEL SAMUEL


 AS RAÍZES DA FLORESTA - ROGEL SAMUEL

Pede-me o amigo Flavio Bittencourt que eu lhe diga quais livros, dentre os que li, mais importantes foram para mim na construção do meu romance O AMANTE DAS AMAZONAS.
Isso já faz tantos anos que tenho dificuldade e localizar.
A primeira fonte foram os relatos de meu pai, a principal raiz do livro, e seu livrinho JAGUARETÉ, O GUERREIRO. Ali estão alguns dos meus personagens em carne e osso, pois Albert Samuel recolheu lendas e narrativas sobre índios, capitalistas, seringais.
Maria Caxinauá ali está, com este nome exato.
Os Numas eu os inventei a partir de uma série de tribos que viveram no rio Juruá, nas perdidas planícies que iam até os pés do Andes.
O palácio Manixi foi inspirado no Palácio Rio Negro (mas não é o mesmo), e vários livros foram encontrados a respeito.
Um relato imprescindível para mim foi “Dez anos no Amazonas”, de Valadares, livrinho que não mais encontrei, não mais o possuo. Trata-se de um caderno escrito por um seringueiro que veio do Nordeste e depois de dez anos voltou. É impressionante.
Li muito Samuel Benchimol, João Nogueira da Mata, Genesino Braga, Raimundo Morais, Willy Aureli, Ramayana de Chevalier, Mario Ypiranga etc. De alguns autores creio que li a obra completa, como Raimundo Morais.
Li sobre armas, sobre arquitetura, sobre cobras, aranhas, venenos. Muitos livros de decoração da época. Visitei e anotei o Museu de Arte Decorativa de Paris. Alguns móveis do Manixi são de lá.
Li o roteiro do filme “O ano passado em Marienbad”, de Robbe-Grillet, para o filme de Resnais, onde se descreve aquele magnífico palácio. Assisti mais de 10 vezes ao filme e adquiri hoje em vídeo. O meu Manixi é o Marienbad.
Li vários volumes sobre os índios, de Roquete-Pinto, Viveiros de Castro etc. Mas foi com Raimundo Morais que adquiri a intimidade indígena. Muito me impressionaram os livros sobre o Coronel Fawcett, desaparecido no Amazonas há 100 anos. Li alguns.
A narrativa do meu livro é acompanhada de citações quase imperceptíveis da Divina comédia e outros clássicos. Aquela floresta é o meu inferno de Dante.
Meu principal personagem é a Floresta amazônica.
Paxiuba sai de um livro de Raimundo Morais, era o Mulo.
As orquídeas foram vistas por mim, quando criança, no maior e melhor orquidário existente no mundo: o do meu próprio pai.
Ele passou 40 anos viajando pelo Amazonas e, como era apaixonado por orquídeas raras, passou 40 anos colecionando orquídeas.
Havia tantas orquídeas naquele tempo que meu pai decorou toda uma igreja com orquídeas no casamento de uma pessoa amiga, a poetisa U. A.
De uma orquídea nunca esquecerei: era de veludo negro com franjas de ouro.
Não existem mais. Catléia Superba; catléia Eldorado.
Meu pai gostava de silêncios. Viajava pelo coração da floresta de barco. Viu coisas inacreditáveis.
Algumas vezes fui com ele. Eis a raiz do livro, aquelas viagens.
Ele quase morreu por uma flechada do mato que se cravou perto dele. Era um aviso. Dizia: “Volte!”
O mundo amazônico era aquele. Mítico. Sagrado.
Só quem o viveu saberá o que significa ouvir aqueles pássaros da noite.

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sábado, 6 de novembro de 2021

OS FUNDAMENTOS DO SONHO - ROGEL SAMUEL

 

OS FUNDAMENTOS DO SONHO - ROGEL SAMUEL

(FOTO DE R. SAMUEL: BIARRITZ, HOTEL MARBELA)

 

Rogel Samuel

 

       Há um escrito filosófico de Ernst Bloch que se chama "O Homem Como Possibilidade".

       Sempre gosto dele. Tanto que o inseri no nosso Site. E ali pode ser lido*.

Desde 1966, relei-o sempre. Sempre que entro em depressão política.

Existe depressão política sim, para a minha geração.

Que sinto, que sofro, desde jovem.

Além disso, desde que comecei a votar, a chamada democracia brasileira é um dispositivo para legitimar a classe dominante já estabelecida.

E não há remédio, não há medicina, para este mal.

A minha geração é profundamente, radicalmente política.

Mas começa afirmando Bloch a energia e o vigor dos nossos sonhos.

Segundo ele, Lênin lastimava que o movimento comunista havia perdido sua capacidade de sonhar.

Nós deixamos de sonhar quando nos apegamos ferrenhamente à realidade, à casca material grosseira da matéria concreta.

O sonho não, só os sonhos admitem vôos, transformações, esperanças vagas, utopias, sem a solidez, sem o peso da dura, da ríspida materialidade de ferro das coisas.

A solidez das coisas é burra, é vazia, pura aparência enganosa.

Pois o mundo não precisa ser tal como é. E nossos problemas não precisam ter para nós o peso que têm.

Por trás daquele monstro que nós mesmos criamos para nós mesmos, há um simples e inútil brinquedo de corda, meio quebrado.

A liberdade é possível...

Por quê?

Porque o nosso mundo não está totalmente pronto, não é algo pronto e acabado, que não muda nunca, mas é um processo, um processo em permanente fazer-se.

Tudo morre, mesmo os nossos problemas...

Sim, há sim espaço para a liberdade, para a felicidade, pois os castelos que se armam contra nós são feitos só de areia, não são de aço. E as armas dos nossos inimigos são de açúcar.

Hegel, que viveu e aprendeu no tempo da revolução francesa, da revolução burguesa, dizia que o futuro concreto e imutável é incerto, é "palha e vento, névoa e vapor".

Hegel "aprendeu"a dialética ao som dos canhões em sua porta.

Quem constrói o mundo futuro somos nós mesmos, com nossas próprias mãos.

Que necessidade estranha temos de sofrer?

Esta é a nossa contradição permanente:

Pois, se buscamos tanto a felicidade, por que insistimos, por que procuramos no nosso "destino", naquilo mesmo que fazemos e que chamamos de nosso destino, o processo que nos causa tanto sofrimento?

Hegel falava da passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade.

Na verdade era a mediação do processo da utopia abstrata para a ciência mediadora.

Por tudo isso existe a consciência de que aquilo que nós chamamos de "realidade" está cercado por um mar de possibilidades muito maior do que objetivamente pensamos. Essas possibilidades são mesmo reais.

Diz Bloch: "Há condições que ainda não conhecemos ou que ainda não se apresentaram".

Sim, há as utopias.

Há a Utopia.

A utopia é o lugar daquilo que ainda não existe.

Pelo fato de que ainda não existe aquilo, não quer dizer que não existirá nunca, ou que seja impossível e irrealizável.

Há alguns anos alguém poderia pensar em televisão, penicilina, rádio, celular etc? - estas coisas hoje banais apareciam nas revistinhas de ficção científica das crianças.

Sim, sejamos crianças!

Talvez até certas utopias já existam, mas ainda não estão conscientes.

A Utopia não é uma lenda política.

Diz Bloch que sua fonte, sua origem está em Platão, Thomas Morus, Campanella, Fourier, Saint Simon, Robert Owen, etc.

"São grandiosas tentativas de se lançar no papel uma sociedade melhor".

O sonho de uma vida melhor. Ou seja, o sonho básico é o do paraíso perdido.

A utopia é "a arquitetura ainda não construída". 

A história, a vida humana está cheia de utopias, diz ele, como os sonhos da medicina, da técnica, a ficção científica, a pintura, a música, a poesia.

Parodiando Bloch:

- Ó Utopia, fica comigo amanhã, porque és tão bela e tão necessária!