quarta-feira, 27 de outubro de 2021

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

A APARIÇÃO


 FOTO DE ALBERTO CESAR ARAUJO    


"Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho." (O AMANTE DAS AMAZONAS)

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

VICTOR HUGO

 

DEUS SONHA - VICTOR HUGO
O dia acorda. Deus, por uma fresta
Das nuvens a espreitar, ri-se. A floresta,
O campo, o inseto, o ninho sussurrante,
A aldeia, o sol que finge a serrania...
Tudo isso acorda, quando acorda o dia
No fresco banho de ouro do Levante.
Deus sonha. Vaza os olhos d’água; pica
As artérias da terra; o lis fabrica,
E da matéria sonda o fundo ovário.
Pinta as rosas de branco e de vermelho,
E faz das asas vis do escaravelho
A surpresa do mundo planetário.
Homens! As férreas naus de velas largas
Monstros revéis, formidolosas cargas,
Do bruto oceano arfando as insolências
Extenuando os ventos, e nos flancos.
Largo enxame a arrastar de flocos brancos
De escuma, e raios e fosforescências...
Os estandartes de arrogantes pregas;
As batalhas, os choques, as refregas;
Náuseas de fogo de canhões sangrentos;
Feroz carnificina de ferozes
Batalhões - bando espesso de albatrozes
De asa espalmada e aberta aos quatro ventos...
Comburentes, flamívomas bombardas,
Ígnea selva de canos de espingardas,
Estampidos, estrépitos, clangores,
E, bêbedo de pólvora e fumaça,
Napoleão que galopando passa,
Ao ruflar de frenéticos tambores;
A guerra, o saque, as convulsões, o espanto;
Sebastopol em chamas, de Lepanto
A vau de lanças e clarins repleto...
Homens! Tudo isso, enquanto recolhido
Deus sonha, passa e soa ao seu ouvido
Como o rumor das asas de um inseto!
(Trad. de Raimundo Correia)

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE


 Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE


ROGEL SAMUEL

É assim que diz o famoso soneto de Antonio Nobre:

Ó virgens que passai, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruína do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!


Antônio Nobre é poeta simbolista, portanto no seu famoso soneto, o «sol-poente» nos deve remeter a «algo», deve escamotear o sentido, para alguma outra natureza, esconde o que diz.
Não seria a velhice, pois o poeta morreu jovem, com 33 anos, em 1900.
Talvez as virgens, úberes, fartas de potencialidades, a ser fecundadas na «fartura da seara reluzente», gozosas, obreiras dessa tarde, desejantes, grávidas de prazeres, vitalidades...
Mas, por que «o sol poente»?
Por que não o despertar, o meio-dia, o pleno sol da tarde?
E, sendo «poente», por que «ardente»?
E sendo «ardente», por que tomba, por que cadente, no meio dessa seara reluzente?
E se «virgens», por que «o vinho, a Graça, a formosura, o luar!»
Sim, que de mistérios vive a poesia.
Engana o/a leitora, engana-se o/a leitora, que pensa estar, apenas, o sujeito do poema lastimando o seu «perdido lar», as suas «ilusões antigas», as ruínas do seu lar.
Sim, é certo.
Certo, certo de que tudo isso é assim, também.
E o que o poeta Nobre não se deve confundir com a pessoa Nobre.
O «personagem» do poema pode ser um velho.
Mas velho possante («O Sol que tomba, aureolando o Mar»), rico de vida, de vitalidade («A fartura da seara reluzente»).
A força, a beleza do poema reside no contraste: «suaves e frescas raparigas» X «ruína do meu lar».
E sua canção é o hino que desperta «todas aquelas ilusões antigas».
A oposição e o sentido está nas belas rimas poente-ardente, cantar-lar, onipotente-reluzente, mar-luar, cantigas-raparigas, desaterrai-cantai.
São rimas significativas, verdadeiras pontes de significação, irradiam sentidos.
Sim.
Sim, tudo isso «eu vi morrer», de súbito, sim, o lar despedaçado.
E o poeta precisa morrer, dormir, esquecer, fugir daquelas lembranças do passado familiar, feliz, longe daquelas «estradas ermas», lar que era «sol», «mar»,

A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

O poema se encontra consigo mesmo. No fim.
Toda a fantasia da dança feminina, ao cair da tarde, seus cantos, suas suavidades reluzentes no conjunto desses evocativos versos.
Afinal são fantásticos dias de infância recuperados ao sol poente. Na voz daquelas raparigas virgens, que passam, como passaram as vozes familiares das mulheres da infância, das irmãs, mães tias avós que passaram todas pela estrada.
O lar é isso. Conjunto de pessoas.
Não lar-casa. Mas grupo familiar.
Ó Primas e Irmãs, ó virgens, cantai! Esta é a canção. O poema envolve sonoridade corredia: é poema para ler lido alto, em voz alta.
Poesia alta, graça, frescura, leveza. Aureolando o Mar, límpidas cantigas.
Fartura do canto daquelas ilusões antigas de um passado, das lembranças da infância do seu perdido lar.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

despertar paredes brancas, despertar


 despertar paredes brancas, despertar

brancas folhas de papel dormentes
desviar o curso de um regato na encosta
da floresta que canta a sua canção de vento
entornar um pouco desse copo automático
funcionar minhas molas de rascunho pressionadas
retomar o fio da leitura interrompida
iludir o tempo de marcar esta postagem

Rogel Samuel

domingo, 10 de outubro de 2021

ROGEL SAMUEL - O VENDEDOR DE ESTRELAS


 O VENDEDOR DE ESTRELAS - Rogel Samuel

Nesses dias de Natal é muito comum eu encontrar um velho amigo, homem simples e bom, envelhecido é certo, mas sempre animado e feliz.
É um vendedor de pequenos presentes de natal, tudo muito simples e barato, que bate nas casas de minha rua nessa época.
Este ano ele bateu na minha porta e disse que me estava trazendo estrelas...
Eu certamente me espantei, mas ele foi retirando de sua bolsa umas estrelas de um plástico transparente, algo brilhante e importado da China, recheado de estrelas de “strass” e pedrinhas de cristais mergulhadas em uma espécie de óleo translúcido.
As estrelas internas também eram de metal colorido, estrelinhas douradas, prateadas, coloridas, e cometas...
- As estrelas de Natal têm um papel simbólico determinante na história... – foi-me dizendo o bom velhinho vendedor - pois indica o caminho para os reis magos, como se diz em Mateus (2.2)...
- A estrela tornou-se um símbolo daquilo que de extraordinário aconteceu naquela noite. A estrela apontava para o local do nascimento do menino Jesus e mostrava a plenitude de vida que representa esta vinda de Deus ao mundo em Cristo.
O velho sorriu para mim e foi tirando uma Bíblia velha e surrada da sua mesma bolsa, abrindo na página marcada e começando a ler, simpaticamente:
- “E, tendo nascido Jesus em Belém de Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, dizendo: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos a sua estrela no oriente, e viemos a adorá-lo.
E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se, e toda Jerusalém com ele.
E, congregados todos os príncipes dos sacerdotes, e os escribas do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo.
E eles lhe disseram: Em Belém de Judeia; porque assim está escrito pelo profeta:
E tu, Belém, terra de Judá, De modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; Porque de ti sairá o Guia Que há de apascentar o meu povo de Israel.
Então Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exatamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera.
E, enviando-os a Belém, disse: Ide, e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo, para que também eu vá e o adore.
E, tendo eles ouvido o rei, partiram; e eis que a estrela, que tinham visto no oriente, ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino.
E, vendo eles a estrela, regozijaram-se muito com grande alegria” (Mateus 2:1-10).
..................
Eu logo fiquei satisfeito com aquele recitativo e assim comprei duas dúzias de estrelas que espalhei por sobre minha mesa de trabalho, voltando ao livro que estava lendo naquela hora.
Li durante quase toda a noite de Natal, li até adormecer.
No meio da noite acordo, assustado: o quarto todo acendia iluminado por uma luz dourada que provinha de diversas estrelas que se tinham estampadas no teto, nas paredes e no chão, multiplicando-se e me dando uma sensação de complexa vacuidade e ausência gravitacional como se eu estivesse pairando no espaço infinito da noite estrelada.
Pode ser uma imagem de flor

sábado, 2 de outubro de 2021

a noite não será tão negra


 a noite não será tão negra enquanto eu puder ouvir a sua canção

nem saberei de dor enquanto navegar
nas suas águas límpidas
nas suas imagens claras
nos seus cadernos e guardados
no seu sorriso jovem
a velhice nada significará
pois eu sei que está
junto a mim
mas tudo passa
e tudo que passa
tem a sua eternidade
tudo recebe os beijos da manhã
e a claridade da noite enluarada
envolta em sedas
de estrelas

rogel samuel