segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

O OBJETIVO DO CAMINHO É O CAMINHAR

O OBJETIVO DO CAMINHO É O CAMINHAR

ROGEL SAMUEL

Escreve-me uma grande Amiga: “Estava mesmo para te escrever sobre seu último texto. Eu queria saber mais, se não for te incomodar, a respeito desta frase:
"De nada precisamos nós, do ponto de vista espiritual. Podemos estar em paz."Eu li algo semelhante em Osho (Rajneesh), A semente de mostarda, onde ele segue (ou pelo menos tenta) ir por um caminho zen, e sinceramente não entendi bem:
"Porque todo caminho é a morte. A morte é o objetivo do caminhar, o fim do caminho."
Porém nesta trajetória, até a morte, não precisamos tentar evoluir espiritualmente?
Me explica, por favor, pode ser?
Outra coisa: podemos falar em um taoísmo zen? Está certa esta afirmação?”
Não sei. Nada sei.
Acho que me meti numa armadilha, o responder.
Primeiramente: "De nada precisamos nós, do ponto de vista espiritual. Podemos estar em paz."

Esta frase, se invertida, torna-se clara: “Se estivermos em paz, de nada precisamos nós, do ponto de vista espiritual”.
Pois, o de que precisamos nós?
Se alcançamos a paz, que mais? De que mais necessitamos?
O que é a paz?
A paz, na definição dos mestres budistas, é “claridade e vacuidade”.
Quando estou em paz, estou “e m equilíbrio, tanto tempo quanto possível. Eu permaneço no estado de consciência chamada de "unidade de consciência e vazio". O movimento é chamado
de "unidade do movimento e do vazio". A clareza desobstruída que é chamada de "unidade de clareza e de vazio". Estou livre dos extremos da existência e não-existência, aparecendo como um sonho, na natureza de uma ilusão”. Isto escreveu “ Zhujin Tsultrim Rinchen, e compilado por Khyentse Wangpo, na Coleção de Sadhanas [sGrub Thabs Kun bTus], volume DA [11]”.
Quando estou em paz, se estou em paz, já cheguei, não estou em busca de nada. Toda busca, toda tentativa de “evoluir espiritualmente”, só faz criar uma instabilidade na paz, na minha meditação, na clareza, na luminosidade. Porque se estou buscando é porque me acho infeliz, incompleto, incapaz, inapto. Se estou buscando, ainda não encontrei.
Mas o caminho é inverso, o caminho espiritual, se é que existe, é ao contrário, parte do não buscar, ele acontece quando a busca cessa, quando o pensamento cessa, quando a ansiedade e o medo cessam, sim o medo, e todo medo é medo da morte, dessa morte que não conhecemos, o medo do desconhecido, o medo do não ser.
Quando nada esperamos, quando não esperamos nenhuma recompensa, então um milagre acontece, a eternidade acontece, o eterno, e no eterno não há tempo, e se não há tempo não existe fim, nem morte.
A paz é a espera de nada.
É a alegria, a felicidade suprema, de quem tudo encontrou.
Você pode estar em paz, mesmo sendo um milionário, mesmo sendo um mendigo, mesmo.
Se vê observa a respiração, a flor, a árvore, em completo silêncio, aí acontece a beleza.
Pois o silêncio não é a ausência de sons.
O silêncio é a paz.
(Mas eu fico aqui falando do que não sei, nem compreendo...)

Cantadores chegavam nos gaiolas

Cantadores chegavam nos gaiolas

Cantadores chegavam nos gaiolas
resplandecendo trovas consteladas,
e entre os sabores negros da partida
ardiam no alecrim das madrugadas.
Luas multiplicavam seus cavalos,
dragões comiam flor; e no tormento
das fogueiras solares se expandiam
desdobrando os cordéis do pensamento.
Comparava-se o mundo a qualquer bicho
que anda chutando os pobres de sua terra,
bicho-papão de sonhos e quimeras.
Nordestinadas levas, seringueiros
dos quais resta essa dor, viola serena
que nos consola porque vale a pena.

JORGE TUFIC

sábado, 28 de dezembro de 2019

O AMANTE DAS AMAZONAS


O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Havia dois anos que o próprio Ferreira lá não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta narrativa.
Mas a Caxinauá avançava sozinha entre as gigantescas raízes. Dir-se-ia perdida, silenciosa entre as grandes árvores pré-históricas, ao pântano, entre murarés, caimas, touceiras de cumaru, sob os buritizeiros, os oitiseiros. O remo cortava a água sem ruído, a igarité deslizava no lado morto do mundo.
A Caxinauá chegara a um aningal. Entrevistos, no alto, urubus-reis. Sob a toalha da água se podiam ver os peixes, indolentes, dormindo um sonho de imersão no sangradouro do lago.
Ela não se apressava. Despiu-se do vestido e entrou na água, na umidade pesada, pisando no fundo do lajedo, que conhecia, na ponta da pedra branca, submersa.
Quem a visse veria uma mulher bela. O rosto, o pescoço e os ombros arruinados, queimados - toda a pele torturada, queimada no ataque Numa. Mas dos seios para baixo era bela e fresca.
A Caxinauá olhou aquelas margens. Ali viveram seus antepassados. Ali estivera entre os seus. A Caxinauá gostava de visitar aquele lugar histórico. Do passado não havia traço. Mas a floresta vencera.
Súbito pressentiu o perigo.

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

PROFISSÃO POETA

Poema de Rogel Samuel - Profissão: poeta



Depois eu gostaria de assumir como minha profissão: poeta.
Quem é você?
Um poeta.
Que faz?
Escrevo versos.
Você vive disso?
Sim, vivo.
Quero dizer: você paga as suas contas com seus versos?
Ninguém tem que pagar para ser.
E por aí vai a questão.
Que é ser poeta? Como se define o ser?

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Que dizer neste fim de ano? - Rogel Samuel

Que dizer neste fim de ano? - Rogel Samuel

Que dizer neste fim de ano? Nada, que a vida, o tempo passa, acaba, se esvai na ampulheta da morte. O tempo, escreveu Bilac, escreveu Pessoa, passa sem princípio, fim ou medida, leva ventura, desgraça, vaidades, corre de segundo em segundo, em minutos, horas, dias, danos, sereno, séculos, a vida é pequena, não há demora, tudo passa, quão cedo passa tudo o que passa, morre tão cedo, tudo é tão pouco, nada se sabe, tudo se imagina...
Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.
Ricardo Reis, 3-1-1923

O MAR DA FÉ

O MAR DA FÉ

Matthew Arnold

Trad. de  Rogel Samuel

A praia de Dover de Matthew Arnold

O Mar da Fé
Também existiu, no passado, cheio, e em volta da praia do mundo
Estendia-se como as dobras de uma faixa desdobrada.
Mas agora somente escuto
Seu bramido melancólico, prolongado, que foge,
Que se afasta,
Com o zunir do vento da noite
que vai para vastas e horrendas costas
E para os vazios areais do mundo.”

Ah!, amor, sejamos fiéis
Um ao outro. 
Pois o mundo, que parece 
Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,
Tão diversas, tão formosas, tão novas, 
Na verdade não tem nem alegria, nem amor, nem luz,
Nem certeza, nem paz, nem lenitivo para a dor;
E estamos aqui como numa planície penumbrosa,
Varrida de confusos alarmas de combate e de fuga,
Na qual exércitos ignorantes à noite travam batalha.”

domingo, 22 de dezembro de 2019

os olhos de luar de Maria

os olhos de luar de Maria



Bilac faz do Natal alegria: Mas faz também a opção pelos pobres: Os pobres de Bilac são generosos: E logo temos uma imagem Zen, dos olhos de Maria: Nasceu Jesus não entre os homens, mas entre os animais da estrebaria: E faz logo a opção pelos pobres. Mas os poderosos...

O leitor vê o presépio pelos olhos de luar de Maria, alegria de nascer, a visão dos humildes, a beleza da generosidade, os animais e os homens, o oportunismo dos ricos, o que Bilac nos dá é um poema infantil, simples e puro.






"Jesus nasceu ! Na abóbada infinita
Soam cânticos vivos de alegria;
E toda a vida universal palpita"

"Dentro daquela pobre estrebaria ...
Não houve sedas, nem cetins, nem rendas
No berço humilde em que nasceu Jesus ..."

"Mas os pobres trouxeram oferendas
Para quem tinha de morrer na Cruz."

"Sobre a palha, risonho, e iluminado
Pelo luar dos olhos de Maria,
Vede o Menino-Deus, que está cercado
Dos animais da pobre estrebaria."

"Não nasceu entre pompas reluzentes;
Na humildade e na paz deste lugar,
Assim que abriu os olhos inocentes,
Foi para os pobres seu primeiros olhar."

"No entanto, os reis da terra, pecadores,
Seguindo a estrela que ao presépio os guia.
Vêem cobrir de perfumes e de flores
O chão daquela pobre estrebaria.
Sobrem hinos de amor ao céu profundo;"



Homens, Jesus nasceu ! Natal ! Natal !
Sobre esta palha está quem salva o mundo,
Quem ama os fracos, quem perdoa o Mal !
Natal ! Natal ! Em toda Natureza
Há sorrisos e cantos, neste dia ...
Salve, Deus da Humildade e da Pobreza,
Nascido numa pobre estrebaria !"

sábado, 21 de dezembro de 2019

O METRO ADVERSO - UM SONETO CONTRA

O METRO ADVERSO - UM SONETO CONTRA

O METRO ADVERSO

ROGEL SAMUEL

Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

O que acontece é que o famoso “Soneto de natal”, de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possue algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto “corretamente”, e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal. Além do que o Natal na favela onde Machado cresceu deveria de ser um horror...
* * *

O tal soneto começa com um indefinido: “um homem”... Um homem não é um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no dia de natal, lembrando-se da infância, e “a viva dança, e a lépida cantiga”, esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário o soneto não teria nenhum sentido estruturante. 
* * *

Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de “noite cristã etc” que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se fie o leitor nessa estória comovente de “verso doce e ameno”, isso é pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o “metro adverso”, a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia, apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"



* * *

Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século, tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente “beleza” perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela “noite amiga”, naquela “noite cristã”, naquele “berço do Nazareno”, quando “sabemos” ou desconfiamos de que Machado não está falando sério, de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional brasileira...
* * *

E foi assim que este soneto se tornou um clássico.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

MEU PREFÁCIO AO LIVRO DE NORÕES ESCRITO ÀS PRESSAS PARA A VALER NUM HOTEL DE MANAUS - ROGEL SAMUEL

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MEU PREFÁCIO AO LIVRO DE NORÕES ESCRITO ÀS PRESSAS NUM HOTEL DE MANAUS - ROGEL SAMUEL
Cantarei a Verdade
Ovídio, A arte de amar
Da superfície do corpo, onde nascem os desejos, a poesia traz consigo a sua proveniência o seu acontecimento emergente, a fala, vontade e disfarce. Ela é um saber para o acontecer na história efetiva das necessidades do corpo, ameaçadora. A Instituição não se reconhece nela, sua especialidade é a estranheza, a “destruição delicada”, A República não pode suportá-la: onde há poesia, nada é estável, tudo é horizontalidade possível do seu discurso azul. A História mostra que a República não precisa de poetas, pode passar sem eles, tem desconfiança, nas prisões e no esquecimento esses seres sedutores perigosos devem estar. Fora da República.
Todo poeta é um fora da Lei. A glória de um poeta é uma contradição, armadilha. A poesia hoje é, de preferência, peça de resistência. O canto do poeta desmonta o discurso perverso do poder. Porque a poesia brinca no vazio de poder, toda liberdade é azul, uma ameaça, o homem de fato detesta a liberdade, teme os livres (do contrário já se teria emancipado) — é por isso o poeta foragido da lei. Depois de morto, sua obra se perde na prisão poeirenta das bibliotecas inúteis, onde só a sombra o vai visitar.
De lá sai Poesia Freqüentemente (1956) de Sebastião Norões, livro de minha predileção, sentimos sua poesia viva, Norões, Reitor de idéias, sua poesia é azul. Esta pequena obra-prima é a ânsia de infinito”, como se o poeta quisesse voar, escapar do acanhamento provinciano em que se move, alcançar Alascas e Austrálias. Por isso o mar
ou seu fracasso (a vontade perdida). Com as “citações”, o livro é originalíssimo e do melhor que já se fez aqui. Rimbaud é seu modelo. O poeta tenta ir, mas voltei a mim — a vida morna vai caindo aos poucos. O azul são esperanças. Não realizadas, nem a amizade verdadeira. Há morte no azul, no caminho para o não feito. O coração está acabado. De tal forma o livro se fecha, que a gente pressente o seu nunca mais escrever — a poesia (e a vida sangüínea) termina ali. É o mal que sempre vence. Marcuse.
Quando éramos jovens, Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás das baforadas de cigarro e lentes grossas. Norões impressionava, carismático e culto. Nunca pensei que faria sua “apresentação”, tantos anos se passaram. E é uma surpresa sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.
Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira. Estudou em Fortaleza. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Professor no Colégio Estadual e Dom Bosco. Foi Chefe de Polícia do Estado onde (dizem) protegeu Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada, da Academia Cearense de Letras. Professor de Geografia do Colégio Estadual do Amazonas.

Mar da memória
Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.

domingo, 15 de dezembro de 2019

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Despertó. Una ligera presión sobre la pierna izquierda, algo golpeaba allí, como pluma, en medio del esplendor de la riqueza de su sueño y tocaba su cuerpo con terciopelo. Y él vio una araña peluda, de color rojo, alrededor de 15 cm de diámetro, mortal, subiendo por su muslo, pero en seguida la maacuIvete la alejó con un pedazo de tela, venenosa– rara y feroz –¡la acanthoscurriaatrox! – saltó hacia la barandilla, giró sobre sí misma, levantó las patas delanteras en actitud agresiva, defensiva,erizó los pelos y desapareció. Para calmarlo, la india se sentó al borde de la hamaca. Lo miró y se rio, inclinándose sobre su tórax. Ferreira agarró fuertemente la cabeza de la india y la echó hacia sí. Ella avanzó en un sordo gemido salvaje. Del alero del tejado un águila alzó el vuelo, ganando los espacios azules. Era un gavilán-real-falso de vuelo hambriento y mirada ligera.
https://traductionmartacortesao.blogspot.com/

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Drummond entrou pela porta dos fundos! - Rogel Samuel

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Drummond entrou pela porta dos fundos! - Rogel Samuel
Lembro-me de Drummond. Um dia, quando éramos aluno da FNFi, e como estudássemos sua obra, conseguimos que Drummond aceitasse a vir, na nossa sala, para conversar. Ele exigiu que ninguém soubesse, e que pudesse entrar pela porta dos fundos!
Incrível: um dos maiores poetas entrou pela porta dos fundos da nossa faculdade de letras. Mas Drummond não grande coisa. Parecia um funcionário público (que era), conversando. Trazia um guarda-chuva preto e vestia um terno cinzento. Sério, magro, seco, quase mal humorado. Disse, por exemplo, que perdia belas imagens e versos que lhe ocorriam no caminho de casa para o trabalho. Parece que ele andava de ônibus, de Copacabana para o Centro, no Rio. Quando eu lhe perguntei por que ele não tinha consigo um caderninho de notas, ele respondeu que "não fica bem alguém ficar escrevendo". Lembro-me de que nossa professora, D. Cleonice Berardinelli, que ia passando no corredor, o viu e, espantada, logo entrou na sala. Drummond, o gênio da nossa poesia, discorria singelamente, prosaicamente sobre sua obra. Nenhum brilho, nada de demonstrações de grandeza. Disse: "não sei por que fazem tanto barulho pela minha poesia, eu não vejo nada de especial nela" (as palavras eram mais ou menos assim). Disse horrores sobre o verso "no meio do caminho tinha uma pedra". E no fim, quando se despediu, eu lhe pedi um autógrafo. Ele logo se irritou comigo ao ver, na folha de rosto do seu livro, após o seu nome, que eu tinha escrito, a mão: (1920 - ..... ). "Esse aqui já está esperando a minha morte!", disse.
A última vez que o vi, foi em Copacabana. Eu bebia um cafezinho num botequim do Posto Seis que existe até hoje, quando ele passou. A cabeça pensativa, meio cabisbaixo. Eu fiquei extático, boquiaberto, imóvel, reverente, e mentalmente me curvava à Grande Poesia que passava.

domingo, 8 de dezembro de 2019

O NOME DO PAI

O NOME DO PAI – ROGEL SAMUEL

Na última vez que estive em Manaus resolvi passar por aquela Praça inclinada conhecida como dos Remédios.
A praça estava quase deserta sob o forte sol da tarde e só havia ali um menino com um gorro sentado num banco, imóvel, olhando fixo o grande rio que desfilava o seu negro mistério lá embaixo: o Rio Negro.
Mas ao passar eu o examinei de relance e vi que ele estava como que hipnotizado na sua contemplação sobre as águas.
Desci ainda uns dez passos e me voltei, pois minha curiosidade e estranheza me dominava para indagar e conhecer aquele estranho jovem. Teria talvez uns 16 anos.
- Dá licença, disse-lhe eu, sentando-me a seu lado, um tipo indígena, baixo, forte, cabelos muitos lisos, olhos amendoados fixos no horizonte.
Ele nada respondeu, fez apenas com enfado um gesto com a boca que parecia dizer “tanto faz você sentar aí, ou em outro lugar”.
- Como você se chama, insisti.
- Oceano, ele respondeu.
- Como? Indaguei, espantado.
- Oceano, disse-me ele outra vez, ou foi o que eu ouvi daquele seu sotaque espanhol.
- De onde você é, continuei, e ele me contou que era boliviano, que atravessou a fronteira para fazer compras para a mãe, a família pai, mãe e irmãs, mas não conseguiu regressar para a casa, fecharam a estrada e ele acabou sendo jogado em Manaus sem ter para onde ir.
Fiquei emocionado, esperando, mas nada mais falou.
Naquele momento passa uma bicicleta vendendo quentinhas de almoço, paguei e esperei para vê-lo comer com fúria, beber com sede o copo de refresco que vinha junto e me levantei para partir.
Foi só quando já tinha dado dez passos que escutei a sua voz:
- “Espera, como te llamas ? Cuándo lo volveré a ver?” – e senti uma aflição em suas palavras.
Pensei em lhe dizer a verdade, que voltava para o Rio de Janeiro naquela mesma noite, que nunca mais o veria, mas me lembrei de que ele estava só, sem pai, nem mãe e irmãs, e por isso menti:
- Em breve, disse-lhe eu, e atravessei a rua, sem lhe dar meu nome.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O NOME DO PAI – ROGEL SAMUEL


O NOME DO PAI – ROGEL SAMUEL

Na última vez que estive em Manaus resolvi passar por aquela Praça inclinada conhecida como dos Remédios.
A praça estava quase deserta sob o forte sol da tarde e só havia ali um menino com um gorro sentado num banco, imóvel, olhando fixo o grande rio que desfilava o seu negro mistério lá embaixo: o Rio Negro.
Mas ao passar eu o examinei de relance e vi que ele estava como que hipnotizado na sua contemplação sobre as águas.
Desci ainda uns dez passos e me voltei, pois minha curiosidade e estranheza me dominava para indagar e conhecer aquele estranho jovem. Teria talvez uns 16 anos.
- Dá licença, disse-lhe eu, sentando-me a seu lado, um tipo indígena, baixo, forte, cabelos muitos lisos, olhos amendoados fixos no horizonte.
Ele nada respondeu, fez apenas com enfado um gesto com a boca que parecia dizer “tanto faz você sentar aí, ou em outro lugar”.
- Como você se chama, insisti.
- Oceano, ele respondeu.
- Como? Indaguei, espantado.
- Oceano, disse-me ele outra vez, ou foi o que eu ouvi daquele seu sotaque espanhol.
- De onde você é, continuei, e ele me contou que era boliviano, que atravessou a fronteira para fazer compras para a mãe, a família pai, mãe e irmãs, mas não conseguiu regressar para a casa, fecharam a estrada e ele acabou sendo jogado em Manaus sem ter para onde ir.
Fiquei emocionado, esperando, mas nada mais falou.
Naquele momento passa uma bicicleta vendendo quentinhas de almoço, paguei e esperei para vê-lo comer com fúria, beber com sede o copo de refresco que vinha junto e me levantei para partir.
Foi só quando já tinha dado dez passos que escutei a sua voz:
- “Espera, como te llamas ? Cuándo lo volveré a ver?” – e senti uma aflição em suas palavras.
Pensei em lhe dizer a verdade, que voltava para o Rio de Janeiro naquela mesma noite, que nunca mais o veria, mas me lembrei de que ele estava só, sem pai, nem mãe e irmãs, e por isso menti:
- Em breve, disse-lhe eu, e atravessei a rua, sem lhe dar meu nome.

sábado, 30 de novembro de 2019

AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO















AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO



Rogel Samuel




Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido no Ano Novo, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trababalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia que me ocorre das ondas do tempo neste Novo Ano.

sábado, 23 de novembro de 2019

GOLDBERG VARIATIONS



GOLDBERG VARIATIONS - ROGEL SAMUEL...
“Os dedos devem ter a consciência do movimento que faz a melodia cantar”, dizia Horowitz. Assim Gleen Gould, na "Ária" inicial da “Goldberg Variations”, passeia os dedos pelas teclas do piano. Conta uma "estória", a fábula de nossas mais antigas recordações, conta a nossa herança histórica a nós mesmos, nos ensina a contar, a falarmos de nós mesmos, de um para outro receptor oculto. “Imagine que os dedos estão cantando”, dizia também Horowitz.
As variações são uma reflexão musical, uma reflexão auditiva, uma argumentação instintiva, uma ária, música solitária, de solitário, solidária, de uma só voz e uma amante, exprimindo o sentimento da solidão, a cantiga do esquecido, do esquecimento, do ser em retrospecção de seu amor.
A primeira variação nos leva a um lugar em declive, rápido lugar, de onde voltamos para a ária inicial.
Na segunda variação alcançamos o campo, onde flores e cores nos recebem, nos recompensam. Os dedos passeiam pelo teclado e nos embalam em sonhos.
Ouço Gleen Gould, na gravação de 82, que prefiro: mais lenta, mais clara, mais profunda, porém mais triste.
O genial pianista perto da morte, já em declínio, roupas em desalinho, engordara, cada vez pessoalmente mais estranho e difícil, porém mais musical, menos social, pura música, música pura.
Na gravação se pode ouvir que ele canta por trás do piano, pode-se ouvir a sua voz baixinha, seus murmúrios, quase em off.
Estou esperando ouvir a prometida gravação do meu amigo Christopher Schindler. Ele é muito bom em Bach. Eu o conheci na Ilha de San Juan, em Friday Harbour, ele estudava num velho piano dos alunos de uma escola de crianças vazia, piano esquecido num canto da sala. Aproximei-me e, quando ele parou de praticar, começamos a conversar. Logo estávamos falando num excelente português. Chris fala não sei quantas línguas, inclusive a linguagem musical. Foi aluno do filho do polonês Artur Schnabel, para muitos um dos maiores de todos os tempos. Pena que as gravações de Schnabel sejam tão antigas. Por exemplo, a do Concerto Nº 1 de Beethoven é de 1932, mas apesar de mono, impressionam. Schnabel deixou Berlin em 33, devido ao regime nazista. A arte de Schnabel percebe-se mesmo nos discos de 78 rotações, com chiados e atritos.
A origem da Goldberg Variations é curiosa e famosa: O conde Hermann Carl von Keyserlingk, de Dresden, que frequentava Bach em Leipzig para receber aulas de composição, sofria de insônia e pedia sempre a seu jovem músico particular, um prodígio de 15 anos de idade, chamado Johann Gottlieb (Theophil) Goldberg (1727-1756), que tocasse algo no cravo do quarto contíguo, para ajudá-lo a dormir. Durante uma visita em 1742, o Conde pediu a Bach que lhe compusesse alguma peça "de caráter calmo e alegre" para fazê-lo dormir, e Bach compôs a "Aria com 30 variações", BWV 988, que ficou conhecida posteriormente como Goldberg. O Conde, encantado pela magnífica música, fazia o jovem Goldberg tocá-la todas as noites. E tão impressionado ficou que retribuiu Bach com uma taça dourada cheia com cem luíses de ouro.
Segundo Vladimir Horowitz, na entrevista "Technic, the Outgrowth of Musical Thought." (an interview with Vladimir Horowitz), Etude Magazine, 50 (March, 1932), 163-164, os ingredientes de sua técnica como pianista incluem seu treinamento desde a mais tenra idade, a sua capacidade de leitura do repertório, o fato de não ter “aprendido” verbalmente a técnica: “eu apenas sei o que na música eu descubro que os dedos devem fazer”. Ele não gostava dos exercícios formais, que para ele são ruins para o ouvido e o toque, que não se constituem em coisas vivas, mas mecânicas. “Eu uso o quinto dedo para guiar minha mão e cada tom deve ser conduzido até o fim”. “Nada de força”, dizia ele, “imagine que os dedos estão cantando”. “A força vem do toque musical”, “cada dedo deve sentir seu próprio tom”. “Relaxe o pulso”, “sintonize a nota melódica com a mão”, “deixe seu pulso sentir o movimento”, “os dedos devem ter a consciência do movimento que faz a melodia cantar”.

sábado, 16 de novembro de 2019

TENREIRO ARANHA - ROGEL SAMUEL

TENREIRO ARANHA - ROGEL SAMUEL
Poucos poetas foram tão misteriosa, inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico, que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga, primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas). Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a algum ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria Bárbara, mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O interesse pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era tema de literatura.
O famoso soneto do primeiro artista autenticamente amazonense é esse:
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.
Ora, quem fala é a vítima, já cadáver feita. Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo bem tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém, pardo, na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta, corpo morto.
O cadáver tem um recado a dar. Um recado, uma nova, uma notícia dela para o esposo aflito, que, se aflito não a sabe morta. “Leva piedoso”, significa, “por favor, por piedade, diz para meu marido que morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da “mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz que preferiu a morte à “mancha conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o alívio à dor amara.
Hoje, Tenreiro Aranha é rua de Copacabana, rua sem saída, que começa na Siqueira Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro soneto, canta o poeta:
Passarinho que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija, como aflige ao delinqüente;
Fácil sustento e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz limitando-se ao presente.
Não assim, ai de mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade
Sinto também do crime o peso horrendo...
Dos homens me rodeia a iniqüidade
A calúnia me oprime, e, ao fim tremendo
Me assusta uma espantosa eternidade.
Note-se que há dois Aranhas: Além do poeta, que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, existe seu filho, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a Catedral, que não é bela, mas imponente. Dizem que foi construída com trabalho escravo indígena. Nesta época Manaus se torna centro político. Começa o comércio da borracha e piaçava.
` O poeta cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou na lavoura, junto com os escravos.Com doze anos inicia estudos com um vigário. Interno no Convento de S. Antônio de Belém. Os bens familiares do menino foram “confiscados”, literalmente pelo Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi nomeado para um cargo público, foi demitido por intrigas políticas. Depois, o Conde dos Arcos, Governador do Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era um erudito, tinha sólida cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo soneto louva a “inocência”, logra docemente os prazeres da amável inocência, “livre de que a culpada consciência / Te aflija, como aflige ao delinqüente”. É obra leve, bela, clássica. O tema, bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros prever, tua existência / É feliz limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é arcádico. Não é amazônico. Nada mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com seus espinhos, insetos, aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e pântanos. Não, não se tem ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil sustento e sempre mui decente”. Não, isso não é amazônico.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

As raízes da floresta

As raízes da floresta

As raízes da floresta
 
ROGEL SAMUEL
 
 
Pede-me o amigo Flavio Bittencourt que eu lhe diga quais livros, dentre os que li, mais importantes foram para mim na construção do meu romance O AMANTE DAS AMAZONAS.
Isso já faz tantos anos que tenho dificuldade e localizar.
A primeira fonte foram os relatos de meu pai, a principal raiz do livro, e seu livrinho JAGUARETÉ, O GUERREIRO. Ali estão alguns dos meus personagens em carne e osso, pois Albert Samuel recolheu lendas e narrativas sobre índios, capitalistas, seringais.
Maria Caxinauá ali está, com este nome exato.
Os Numas eu os inventei a partir de uma série de tribos que viveram no rio Juruá, nas perdidas planícies que iam até os pés do Andes.
O palácio Manixi foi inspirado no Palácio Rio Negro (mas não é o mesmo), e vários livros foram encontrados a respeito.
Um relato imprescindível para mim foi “Dez anos no Amazonas”, de Valadares, livrinho que não mais encontrei, não mais o possuo. Trata-se de um caderno escrito por um seringueiro que veio do Nordeste e depois de dez anos voltou. É impressionante.
Li muito Samuel Benchimol, João Nogueira da Mata, Genesino Braga, Raimundo Morais, Willy Aureli, Ramayana de Chevalier, Mario Ypiranga etc. De alguns autores creio que li a obra completa, como Raimundo Morais.
Li sobre armas, sobre arquitetura, sobre cobras, aranhas, venenos. Muitos livros de decoração da época. Visitei e anotei o Museu de Arte Decorativa de Paris. Alguns móveis do Manixi são de lá.
Li o roteiro do filme “O ano passado em Marienbad”, de Robbe-Grillet, para o filme de Resnais, onde se descreve aquele magnífico palácio. Assisti mais de 10 vezes ao filme e adquiri hoje em vídeo. O meu Manixi é o Marienbad.
Li vários volumes sobre os índios, de Roquete-Pinto, Viveiros de Castro etc. Mas foi com Raimundo Morais que adquiri a intimidade indígena. Muito me impressionaram os livros sobre o Coronel Fawcett, desaparecido no Amazonas há 100 anos. Li alguns.
A narrativa do meu livro é acompanhada de citações quase imperceptíveis da Divina comédia e outros clássicos. Aquela floresta é o meu inferno de Dante.
Meu principal personagem é a Floresta amazônica.
Paxiuba sai de um livro de Raimundo Morais, era o Mulo.
As orquídeas foram vistas por mim, quando criança, no maior e melhor orquidário existente no mundo: o do meu próprio pai.
Ele passou 40 anos viajando pelo Amazonas e, como era apaixonado por orquídeas raras, passou 40 anos colecionando orquídeas.
Havia tantas orquídeas naquele tempo que meu pai decorou toda uma igreja com orquídeas no casamento de uma pessoa amiga, a poetisa U. A.
De uma orquídea nunca esquecerei: era de veludo negro com franjas de ouro.
Não existem mais. Catléia Superba; catléia Eldorado.
Meu pai gostava de silêncios. Viajava pelo coração da floresta de barco. Viu coisas inacreditáveis.
Algumas vezes fui com ele. Eis a raiz do livro, aquelas viagens.
Ele quase morreu por uma flechada do mato que se cravou perto dele. Era um aviso. Dizia: “Volte!”
O mundo amazônico era aquele. Mítico. Sagrado.
Só quem o viveu saberá o que significa ouvir aqueles pássaros da noite.