quinta-feira, 6 de março de 2008


ESSES PRAZERES

Deixe contar. Ou cantar. Um dia eu vinha por aquela rua quando o encontrei. No chão. Era um raro exemplar do livro de Cabral. Arrependo-me de ter dado aquele volume. ("Terceira feira", 1961). Os antigos alfarrábios de poesia são como vinho velho.

Só o álcool dessa garrafa
pode o vinagre e o ferrão
para a alma toda murcha
na pose fetal do não

(Diz Cabral). Lembro-me de Ademir da Guia, com seu jogo. Lento. O lento jogo do tempo. O chumbo, o peso, a câmara lenta. (Diz Cabral). Outro dia, na Net: Ademir da Guia, jogando - Sim, porque:

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso)
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

(Diz Cabral). Cada palavra tem um peso e densidade do chumbo, do dentro:

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

João Cabral só diz aquelas "mesmas palavras", a saber, a poesia e suas guias. Ademir joga como se um escafandro vestisse. A lerdeza do homem submarino, a água da ambiência daquela gente “de uma Caatinga entre secas, entre datas de seca e seca entre datas”. O simbolismo da água descreve o mundo, em que o poeta se revê, graus de materialidade, de revelação.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

Ademir da Guia, para ele, ser feito de água dos alagados, feito nas águas dos alagados, gente "de uma Caatinga", que executa seu jogo "com água". Langorosa:

A gente de uma Caatinga entre secas,
entre datas de seca e seca entre datas,
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água.
Talvez as gotas úmidas dessa música
que a gente dali faz chover de violas,
umedeçam, e senão com a água da água,
com a convivência da água, langorosa.
("Fazer o seco, fazer o úmido").

O jogo de Ademir da Guia, "bem poderia executar-se com água". Mas a bola chumbo. Orbe. Maciço. A idéia da água vai na alma encharcada da gente. Qualquer que seja o jogo, Cabral só fala do que fala:

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
("A lição de poesia")

Ou seja: "Vivo com certas palavras / abelhas domésticas.":

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
..................................................
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens.
("Graciliano Ramos")

Impossível separar: o futebol, a poesia, o chumbo, que "ulcera a boca". Na verticalidade, na substância da água:

Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,

água em si mesma, parada
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.

Cabral, em realidade, só fala da morte:

Talvez porque qualquer água
fique mais densa se morta
................................................
Não há dúvida, a água morta
se torna muito mais densa.

Como se vê, o indivíduo é a soma das impressões singulares do mundo. É perto da água e de suas antigas imagens que o sujeito compreende que o sonho é um universo em emanação, um sopro que sai das coisas (Bachelard).


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