domingo, 13 de dezembro de 2009

O Conto




Imagem: Rivera.










O Conto

Rogel Samuel

Começou a escrever às oito da noite.
Era o prometido.
O primeiro, da seção de contos, do hipertexto de literatura.
Uma fina dor atravessa as têmporas, era como uma lâmina, uma linha, refletia na nuca.
Estava escrevendo nervosamente.
Dedilhava, no escuro do ciberespaço.
As idéias não nítidas.
Há muitas Eras ele tinha aquela estória pronta. Tolice esconder aquilo.
Sentado, o computador na espera, perdia-se no tempo, não se concentrava no fato, escolhia palavras.
Talvez não devesse contar. Mas, na necessidade de atender ao Browser, resolveu arriscar.
Às oito e meia, seus dedos magros tentaram mover o último parafuso da gaveta do armário, fechada.
Ele vinha fazendo aquilo, no espelho do monitor.
Pressionava a unha ferida na fenda, para afrouxar.
Lá dentro estava o Texto, muito antigo, o manuscrito, ele podia começar a reescrever.
O parafuso resistia.
Ele quebrou pequena lasca da unha. Dali se desprendeu, de seu dedo, por debaixo da unha, um líquido, gomoso e grosso. Uma grossa gota daquilo caiu no teclado. Ele limpou o dedo com a boca, passando a língua, ou o que fosse aquela parte do corpo.
Inteiramente só, via-se no reflexo do monitor.
Pelo Racionamento, o edifício da Companhia estava com todas as lâmpadas apagadas.
O pessoal da limpeza já tinha saído.
Um vento negro agitava as vidraças, vindo do fundo escuro do centro morto da cidade deserta.
Ele parou às oito e quarenta da noite, e agora dormia, desmaiado, na cadeira, sem alento.
Quando acordou, a madrugada já tinha avançado.
O saco daquilo de sua refeição estava caído no chão, e aberto, perto de onde corriam duas baratas.
Tinha passado a noite ali, à espera daquilo.
Quando acendeu o monitor, seu conto estava escrito, mas naquela linguagem arcaica, estranha.
O corpo pesado, inerte, era um cadáver.
Seus braços desapareciam na escuridão da mesa.
Desejava um café, poderia fazer um café, deveria haver um café ali, na cafeteira.
Ele, entretanto, mergulhava naquela apatia, a indiferença, o estado de esquecimento, tédio.
De repente a luz do monitor apagou e ele já não se viu refletido ali.
Sua face desapareceu no escuro, sua imagem não era mais visível no vídeo, como uma sombra.
Sacudiu o mouse com a mão.
Foi em "editar", selecionou tudo, e deu um "delete".

No dia seguinte foi encontrado morto. Havia um saco de batatas fritas no chão.

2 comentários:

Jefferson Bessa disse...

AMIGO, excelente seu conto sobre o processo de escrita de um conto.
Como contar o conto
entre a tecnologia e o arcaico,
entre o monitor e o parafuso,
entre o manuscrito e o estar sozinho com seu "reflexo no monitor?"

seu conto nos leva a uma leitura de primeira, Rogel!

Grande abraço, Amigo!

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

quer retorno sábio este seu, elevando meu conto ao nível de meta-conto... muito obrigado, poeta.