sexta-feira, 2 de julho de 2010

BRASIL X HOLANDA SEGUNDO VIEIRA


Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda

Finjamos, pois (o que até fingido e imaginado faz horror); finjamos que vem a Bahia e o resto do Brasil a mãos dos holandeses; que é o que há de suceder em tal caso? – Entrarão por esta cidade com fúria de vencedores e de hereges; não perdoarão a estado, a sexo nem a idade; com os fios dos mesmos alfanjes medirão a todos; chorarão as mulheres, vendo que se não guarda decoro à sua modéstia; chorarão os velhos, vendo que se não guarda respeito a suas cãs; chorarão os nobres, vendo que se não guarda cortesia à sua qualidade; chorarão os religiosos e veneráveis sacerdotes, vendo que até as coroas sagradas os não defendem; chorarão finalmente todos, e entre todos mais lastimosamente os inocentes, porque nem a esses perdoará (como em outras ocasiões não perdoou), a desumanidade herética. Sei eu, Senhor, que só por amor dos inocentes dissestes vós alguma hora, que não era bem castigar a Nínive. Mas não sei que tempos, nem que desgraça é esta nossa, que até a mesma inocência vos não abranda. Pois também a vós, Senhor, vos há de alcançar parte do castigo (que é o que mais sente a piedade cristã), também a vós há de chegar.

Entrarão os hereges nesta igreja e nas outras; arrebatarão essa custódia, em que agora estais adorado dos anjos; tomarão os cálices e vasos sagrados, e aplicá-los-ão a suas nefandas embriaguezes; derrubarão dos altares os vultos e estátuas dos santos, deformá-las-ão a cutiladas, e metê-las-ão no fogo; e não perdoarão as mãos furiosas e sacrílegas nem às imagens tremendas de Cristo crucificado, nem às da Virgem Maria.

Não me admiro tanto, Senhor, de que hajais de consentir semelhantes agravos e afrontas nas vossas imagens, pois já as permitistes em vosso sacratíssimo corpo; mas nas da Virgem Maria, nas de vossa Santíssima Mãe, não sei como isto pode estar com a piedade e amor de Filho. No Monte Calvário esteve esta Senhora sempre ao pé da cruz, e com serem aqueles algozes tão descorteses e cruéis, nenhum se atreveu a lhe tocar nem a lhe perder o respeito. Assim foi e assim havia de ser, porque assim o tínheis vós prometido pelo Profeta: Flagellum non appropinquabit tabernaculo tuo. Pois, Filho da Virgem Maria, se tanto cuidado tivestes então do respeito e decoro de vossa Mãe, como consentis agora que se lhe façam tantos desacatos? Nem me digais, Senhor, que lá era a pessoa, cá a imagem. Imagem somente da mesma Virgem era a Arca do Testamento, e só porque Oza a quis tocar, lhe tirastes a vida. Pois se então havia tanto rigor para quem ofendia a imagem de Maria, por que o não há também agora? Bastava então qualquer dos outros desacatos às coisas sagradas, para uma severíssima demonstração vossa, ainda milagrosa. Se a Jeroboão, por que levantou a mão para um Profeta, se lhe secou logo o braço milagrosamente, como aos hereges, depois de se atreverem a afrontar vossos santos, lhes ficam ainda braços para outros delitos? Se a Baltasar, por beber pelos vasos do templo, em que não se consagrava vosso sangue, o privastes da vida e do reino, por que vivem os hereges, que convertem vossos cálices a usos profanos? Já não há três dedos que escrevam sentença de morte contra sacrílegos?!

Enfim, Senhor, despojados assim os templos e derrubados os altares, acabar-se-á no Brasil a cristandade católica; acabar-se-á o culto divino; nascerá erva nas igrejas, como nos campos; não haverá quem entre nelas. Passará um dia de Natal, e não haverá memória de vosso nascimento; passará a Quaresma e a Semana Santa, e não se celebrarão os mistérios de vossa Paixão. Chorarão as pedras das ruas, como diz Jeremias que choravam as de Jerusalém destruída: Viae Sion lugent, eo quod non sint qui veniant ad solemnitatem. Ver-se-ão ermas e solitárias, e que as não pisa a devoção dos fiéis, como costumava em semelhantes dias. Não haverá missas, nem altares, nem sacerdotes que as digam; morrerão os católicos sem confissão nem sacramentos; pregar-se-ão heresias nestes mesmos púlpitos, e em lugar de São Jerônimo e Santo Agostinho, ouvir-se-ão e alegar-se-ão neles os infames nomes de Calvino e Lutero; beberão a falsa doutrina os inocentes que ficarem, relíquias dos portugueses; e chegaremos a estado que, se perguntarem aos filhos e netos dos que aqui estão: - Menino, de que seita sois? Um responderá: - Eu sou calvinista; outro: - Eu sou luterano.

Pois isto se há de sofrer, Deus meu? Quando quisestes entregar vossas ovelhas a São Pedro, examinaste-lo três vezes se vos amava: Diligis me, diligis me, diligis me? E agora as entregais desta maneira, não a pastores, senão aos lobos?! Sois o mesmo, ou sois outro? Aos hereges o vosso rebanho? Aos hereges as almas? Como tenho dito, e nomeei almas, não vos quero dizer mais. Já sei, Senhor, que vos haveis de enternecer e arrepender, e que não haveis de ter coração para ver tais lástimas e tais estragos. E se assim é (que assim o estão prometendo vossas entranhas piedosíssimas), se é que há de haver dor, se é que há de haver arrependimento depois, cessem as iras, cessem as execuções agora, que não é justo vos contente antes o de que vos há de pesar em algum tempo.

Muito honrastes, Senhor, ao homem na criação do Mundo, formando-o com vossas próprias mãos, informando-o e animando-o com vosso próprio alento e imprimindo nele o caráter de vossa imagem e semelhança. Mas parece que logo desde aquele mesmo dia vos não contentastes dele, porque de todas as outras coisas que criastes, diz a Escritura que vos pareceram bem: Vidit Deus quod esset bonum; e só do homem o não diz. Na admiração desta misteriosa reticência andou desde então suspenso e vacilando o juízo humano, não podendo penetrar qual fosse a causa por que, agradando-vos com tão pública demonstração todas as vossas obras, só do homem, que era a mais perfeita de todas, não mostrásseis agrado. Finalmente, passados mais de mil e setecentos anos, a mesma Escritura, que tinha calado aquele mistério, nos declarou que vós estáveis arrependido de ter criado o homem: Paenituit eum quod hominem fecisset in terra, e que vós mesmo dissestes que vos pesava: Paenitet me fecisse eos; e então ficou patente e manifesto a todos o segredo que tantos tempos tínheis ocultado. E vós, Senhor, dizeis que vos pesa e que estais arrependido de ter criado o homem; pois essa é a causa por que logo desde o princípio de sua criação vos não agradastes dele, nem quisestes que se dissesse que vos parecera bem, julgando, como era razão, por coisa muito alheia de vossa sabedoria e providência, que em nenhum tempo vos agradasse nem parecesse bem aquilo de que depois vos havíeis de arrepender e ter pesar de ter feito: Paenitet me fecisse.

Sendo, pois, esta a condição verdadeiramente divina e a altíssima razão de estado de vossa providência – não haver jamais agrado do que há de haver arrependimento; e sendo também certo nas piedosíssimas entranhas de vossa misericórdia, que se permitirdes agora as lástimas, as misérias, os estragos que tenho representado, é força que vos há de pesar depois e vos haveis de arrepender, arrependei-vos, misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos de vossa piedade, ide à mão à vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas de vossa ira, e não permitais tantos danos, e tão irreparáveis. Isto é o que vos pedem, tantas vezes prostradas diante de vosso divino acatamento, estas almas tão fielmente católicas, em nome seu e de todas as deste Estado. E não vos fazem esta humilde deprecação pelas perdas temporais, de que cedem, e as podeis executar neles por outras vias; mas pela perda espiritual eterna de tantas almas, pelas injúrias de vossos templos e altares, pela exterminação do sacrossanto sacrifício de vosso corpo e sangue, e pela ausência insofrível, pela ausência e saudades desse Santíssimo Sacramento, que não sabemos quanto tempo teremos presente.


V


Chegado a este ponto, de que não sei nem se pode passar, parece-me que nos está dizendo vossa divina e humana bondade, Senhor, que o fizéreis assim facilmente, e vos deixaríeis persuadir, e convencer destas nossas razões, senão que está clamando por outra parte vossa divina justiça; e como sois igualmente justo e misericordioso, que não podeis deixar de castigar, sendo os pecados do Brasil tantos e tão grandes. Confesso, Deus meu, que assim é, e todos confessamos que somos grandíssimos pecadores. Mas tão longe estou de me aquietar com esta resposta, que antes esses mesmos pecados muitos e grandes são um novo e poderoso motivo dado por vós mesmo para mais convencer vossa bondade.

A maior força dos meus argumentos não consistiu em outro fundamento até agora, que no crédito, na honra e na glória de vosso santíssimo nome: Propter nomen tuum. E que motivo posso eu oferecer mais glorioso ao mesmo nome, que serem muitos e grandes os nossos pecados? Propter nomen tuum, Domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim: "Por amor de vosso nome, Senhor, estou certo – dizia Davi – que me haveis de perdoar meus pecados, porque não são quaisquer pecados, senão muitos e grandes." Multum est enim. Oh! motivo digno só do peito de Deus! Oh! conseqüência que só na suma bondade pode ser forçosa! De maneira que, para lhe serem perdoados seus pecados, alegou um pecador a Deus que são muitos e grandes. Sim; e não por amor do pecador, nem por amor dos pecados, senão por amor da honra e glória do mesmo Deus, a qual quanto mais e maiores são os pecados que perdoa, tanto maior é e mais engrandece e exalta o seu santíssimo nome: Propter nomen tuum, Domine, propitiaberis peccato meo: multum est enim. O mesmo Davi distingue na misericórdia de Deus grandeza e multidão. A grandeza: Secundum magnam misericordiam tuam; a multidão: Et secundum multitudinem miserationum tuarum. E como a grandeza da misericórdia divina é imensa e a multidão de suas misericórdias infinita; e o imenso não se pode medir, nem o infinito contar; para que uma e outra, de algum modo, tenha proporcionada matéria de glória, importa à mesma grandeza da misericórdia que os pecados sejam grandes e à mesma multidão das misericórdias, que sejam muitos: Multum est enim. Razão tenho eu logo, Senhor, de me não render à razão de serem muitos e grandes nossos pecados. E razão tenho também de instar em vos pedir a razão por que não desistis de os castigar: Quare obdormis? Quare faciem tuum avertis? Quare oblivisceris inopiae et tribulationis nostrae?

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