domingo, 18 de outubro de 2015

LE BATEAU IVRE




le bateau ivre de rimbaud
(Trad. Augusto de Campos) 

Quando eu atravessava os Rios impassíveis, 
Senti-me libertar dos meus rebocadores. 
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis 
Os espetaram nus em postes multicores. 

Eu era indiferente à carga que trazia, 
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês. 
Morta a tripulação e finda a algaravia, 
Os Rios para mim se abriram de uma vez. 

Imerso no furor do marulho oceânico, 
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil, 
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico 
Viam turbilhonar marés de verde e anil. 



O vento abençoou minhas manhãs marítimas. 
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis 
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas, 
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis! 

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos, 
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu 
E das manchas azulejantes dos venenos 
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu. 

Então eu mergulhei nas águas do poema 
Do Mar, sarcófago de estrelas, latescente, 
Devorando os azuis, onde às vezes - dilema 
Lívido - um afogado afunda lentamente; 

Onde, tingindo azulidades com quebrantos 
E ritmos lentos sob o rutilante albor, 
Mais fortes que o álcool, mas vastas que os nossos prantos, 
Fermentam de amargura as rubéolas do amor! 

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas, 
Ressacas e marés: conheço o entardecer, 
A aurora em explosão como um bando de pombas, 
E algumas vezes vi o que o homem quis ver! 

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos, 
Iluminando os longos túmulos glaciais; 
Com atrizes senis em palcos cabalísticos, 
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais! 

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas 
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros, 
Soube a circulação das seivas suculentas 
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros! 

Por meses eu segui, tropel de vacarias 
Histéricas, o mar estuprando as areias, 
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias 
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias. 

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas 
Com olhos de jaguar florindo em epidermes 
De homens! Arco-íris tensos como bridas 
No horizonte do mar de glaucos paquidermes. 

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas 
Onde apodrecem Liviatãs distantes! 
O desmoronamento da água nas bonanças 
E abismos a se abrir no caos, cataratantes! 

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes! 
Naufrágios abissais na tumba dos negrumes, 
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes 
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes! 

Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas, 
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes... 
- Espumas em flor ninaram minhas rondas 
E as brisas da ilusão me alaram por instantes. 

Mártir de pólos e de zonas misteriosas, 
O mar a soluçar cobria os meus artelhos 
Com flores fantasmais de pálidas ventosas 
E eu, como uma mulher, me punha de joelhos... 

Quase ilha a balouçar entre borras e brados 
De gralhas tagarelas com olhar de gelo, 
Eu vogava, e por minha rede os afogados 
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo. 

Mas eu, barco perdido em baías e danças, 
Lançado no ar sem pássaros pela torrente, 
De quem os Monitores e os arpões das Hansas 
Não teriam pescado o casco de água ardente; 

Livre, fumando em meio às virações inquietas, 
Eu que furava o céu violáceo como um muro 
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas, 
Líquens de sol e vômitos de azul escuro; 

Prancha louca a correr em lúnulas e faíscas 
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma, 
Quando os sóis estivais estilhaçavam em riscas 
O céu ultramarino e seus funis de bruma; 

Eu que tremia ouvindo, ao longe a estertorar, 
O cio dos Behemóts e dos Maeltroms febris, 
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar, 
Anseio pela Europa e os velhos peitoris! 

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas 
Que o delírio dos céus desvela ao viajor; 
- É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas, 
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? 

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras! 
Toda lua é cruel e todo sol, engano: 
O amargo amor opiou de ócios minhas horas. 
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano! 

Da Europa a água que eu quero é só o charco 
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta, 
Um menino tristonho arremesse o seu barco 
Trêmulo como a asa de uma borboleta. 

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras 
Ultrapassar das naves cheias de algodões, 
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras, 
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

http://historiadosamantes.blogspot.com.br/search/label/RIMBAUD

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