domingo, 12 de fevereiro de 2017

NATUREZA MORTA

NATUREZA MORTA


NATUREZA MORTA


Rogel Samuel


De Walmir Ayala um poema, intitulado «Estação», que sempre relembro, quando vou à cozinha.
Ayala, poeta excelente, não sei por que esquecido.

Na geladeira as frutas
escurecem de mortas

O quadro ele começa. A geladeira das frutas. Mortas. Geladas. Frutas. Personalizadas. Com o matiz erótico que caracteriza a poesia dele. Frutas mortas, natureza morta, alma morta, amor morto. Na mesa da geleira, deste Himalaya morto, neste Instituto Médico Legal da autópsia do pomar.

as peras são secretas
usinas de água doce,

- dentro das peras o que está senão sua secreção, a suculenta feminidade, sua pose de ovário e úvula, a complexidade singela, aquela sua capacidade de oferta, de entrega, de lamúria, as águas mortas, internas, os entraves pântanos doces das almas das mais líquidas partes da natureza do amor, das estivais qualidades da natureza das carícias do corpo úmido, dos corpos entregues a si mesmos, que é quando são partes do mais tátil amor que se dá às mãos que deles fazem seus prazeres e mergulhos, nos gozos internos e usos, no segredo do maior e cavernoso introduzir hipodérmico da sua capacidade de sentir e de pulsar. Que é? A água doce do amor, a usina do impulso amoroso. São os líquidos doces, langorosos, das umidades humanas.

um mamão decepado
mostra a íntima carne

O mamão, macho, o masculino mamão, castrado porém, digo, amputado, calado, prostrado, exibindo entranhas estranhas, carne devastada, intimidade devassada.
O mamão, porte de guilhotinado em bastilhas vasilhas das sobremesas - mamão revolução do estraçalhado. Mamão carne vegetal gengiva mole e aberta.

e as goiabas oloram
seu verão serenado.

O cheiro das goiabas, o perfume do verão no inverno do refrigerador, em antífrase feliz as perfumadas açucaradas e brandas goiabas. O verão olorizado de sereníssimo repouso. Oferecidas ao seu saboroso cheiro do pomar tropical.


Mas são mortas e lentas
neste ofertório as frutas.

Oh, está morto, tudo está congeladamente morto, com frieza mortal da morte lenta, da morte eterna, mumificada, gelada, branca, da porta aberta esta geleira tumular, este himalaia ofertório poético.

Um vapor congelado
contorna seu mistério.

Envoltas no nevoeiro, envoltas no seu mistério frio, branco, hospitalizado, as obscurecidas frutas medicalizadas, no branco arrepio da poesia misteriosa, do mistério da poesia...

E elas posam no ardor
do branco cemitério
de seu grave pomar.

Fotógrafo, o poeta Ayala abre, no seu cemitério doméstico e culinário, a escrita de seu receituário de forno e fogão, na gravitação polar de sua tematização estival (e não outonal). No seu bosque enclausurado.

E a geladeira inventa
surdo primaverar.



Em outro poema, no AQUÁRIO ACESO, os peixes dormem, no suspensório de seus sonhos:


Os peixes submersos dormem
Nadando um sonho enorme
- o aquário é breve e claro,
com selvas silenciosas
que o todo-poderoso
nutre de grão e larva.

A poesia-aquário tem seu conteúdo em peixes que nadam sem acordar, sem perturbar, entre árvores silenciosas e águas selvagens, eternizados pela luminosidade da escrita do todo-poderoso deus que o escreve e nutre de grão e larva, Ayala pesca na profundidade de si mesmo um labirinto de significação e submersão de tentáculos poéticos onde se move como um polvo.

No entanto os peixes dormem.
Qualquer tremor das águas
e nadam aclarados
sonhando-se acordados
sonhando-se acordados.

E o leitor se enreda, se embriaga, sonha. Sonha dentro deste aquário verbal. Treme nessas águas de cristal líquido, o leitor sonha que lê, o poeta sonha-se lido, aclarado, viagem e volta ao íntimo gozo de seu interminável passeio.

No seu POMAR ABERTO, erótico, encontra entre as árvores do bosque o objeto de seu amor, o impossível de sua gestualidade desejante, o desconhecido toque de musa, o paraíso pomar de pomos de ouro e luar e perfume do ar, as suculentas frutas, a poesia de Ayala reflete sempre o domínio do delírio paradisíaco perdido, o coro de laranjais em adágio.


Teu doloroso cheiro de laranjas
inventa este pomar que me embriaga

No prazer doloroso pomar em que se perde ele cria um labirinto embriagante cheio de sucos de invenção poética. As vespas de fogo rasgam a luz da venenosa atmosfera de seu ferrão, o luar do amor abre no peito a rosa amarga do gemido gozo e o desenho do rosto grego, da estátua em pedra que não está mais para estátua eterna e solitária, mas para frutas do verão da geladeira, mortas. Um paraíso tropical em pomos de ouro a transportar, a ler.


há vespas inflamadas e um luar
enclausura em teu peito a rosa amarga
deste gemido em que és como o desenho
de um rosto antigo, de um sorriso em pedra
(eterno e solitário).


Estranho gemido do amoroso langor do gozo que enfim o sorriso corta como a lâmina de faca, como os fios da noite.


Este sorriso que de repente no silêncio medra
e corta os fios da noite em que viajo
para os sempres de mim, tão decididos:
então nos laranjais escuto o adágio,
e o coração que ocultas é sonoro
como a ilha do amor em que me perco
e onde me salvo, e para sempre choro.

Sim, o amor na sua poesia é Ilha, lá onde se salva o que se perde, e onde se perde o que se salva, e onde pela contínua solidão como sempre chora.

Porque o amor é natureza morta.

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