A obra póstuma
Rogel Samuel
De modo que, amigo/a leitor/a, foi assim que
Guimarães Rosa iniciou um discurso na Academia de Letras... pela conclusão. Um
dia desses conto para você como foi o meu encontro com Guimarães Rosa. Hoje
não. Hoje quero dizer que a tarde está fria. Chris, ou o seu disco, toca uma
sonata de Schubert. Todas as tardes frias se parecem com uma sonata de
Schubert. Eu só sei disso por ouvi-las numa tarde fria e escura. As tardes
frias e escuras são profundas. Não é a toa que o carioca é leviano. Aqui não há
tardes frias e escuras. Só dá para ser superficial. Chris é de Portland, no
Oregon. Há paredes, na sonata de Schubert. Paredes por onde a imaginação se
debate, entre esses muros ela se agita, sonha com o espaço. Ninguém pode prender
um homem livre. Podem encarcerá-lo na profundeza das mais secreta masmorra, mas
internamente ele permanece livre, disse alguém. Na sonata em A maior, está dito
"Opus Posthumous", D. 959. É assim, nessa tarde póstuma. A sonata da
morte. Mas tão leve, tão linda. Um dia estive para morrer, fui entrando num bom
estado de paz, de tranqüilidade... até que o médico me deu uma injeção e
despertei neste nosso mundo. Chris, eu me lembro dele em Friday Harbour,
Whashington DC. Havia um piano velho, descobrimos um piano velho, no fundo do
estádio, onde todos os dias Chris ia praticar. O teclado estava meio solto. O
velho piano quebrado. Lá, eu, ele e Chrystal, sua esposa, ouvíamos Beethoven.
Era o único piano daquela parte da ilha. Opus Posthumous, diz o disco. Tão fria,
tão bela, e tão póstuma. Lembra a limpidez frígida do túmulo.
A segunda vez que o encontrei foi na
Austrália. Lá ele tinha um teclado portátil, com o qual podia tocar o Cravo Bem
Temperado de Bach. Som de cravo. Nós
estávamos no meio de uma grande floresta, alguns quilômetros de Kyogle. Ao
amanhecer havia vários animais. Nos cercavam, nos espiavam. Pessoas falavam que
ali havia as mais venenosas serpentes. A Austrália é a pátria das serpentes.
Negras, veludo negro liso. Aquele era um lugar extraordinário: Vajradhara
Gompa. As noites punham tantas estrelas que entontecíamos só de vê-las e
pensá-las. Oh, Montanhas.
Sydney. Lembro do hotel Sullivans,
Oxford Street 21, em Paddington. A vida noturna da cidade. Pubs, clubs. Visitei
a exposição de Sebastião Salgado ali.
Sydney é a capital da fotografia. Há um erotismo no ar. Respira
jovialidade e democracia. Eu quase fico lá, de vez. Não há crimes, nem
violência, em Sydney. Culturas variadas em harmonia. Fraternidade universal. Em
Paddington estávamos em paz. Ouvi a Quarta Sinfonia de Brahms naquela
monstruosa Opera House. Infelizmente a Orquestra Sinfônica de Sydney deixa a
desejar. Ou aquele maestro. É certo que sou fanático desta sinfonia. Tenho dela
diferentes gravações. A melhor, para mim, é a de Bernard Haitink, com a Boston
Symphony Orchestra.
Vou
escrever uma crônica para deixar na gaveta. Quando eu morrer, alguém, a amiga
Nappy por exemplo, deve publicá-la. E publicar com o aviso: "Opus
Posthumous". Chic.
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