sexta-feira, 6 de julho de 2018

João Cabral de Melo Neto e o Futebol

João Cabral de Melo Neto e o Futebol


ROGEL SAMUEL

O TORCEDOR DO AMÉRICA F.C

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no cais da Aurora.


Os cariocas ao lerem esse poema pensarão logo no América do Rio, matriz dos Américas do Brasil, quase todos padecendo desse “desábito de vencer”. Pessoalmente, penso na saga do América, o “Mequinha”, tão caro às tradições do futebol carioca, time de meus tios-avós tijucanos, um time grande na minha infância, que vi no Maracanã, na arquibancada atrás do gol, aos dez anos, ser campeão carioca de 1960. Cabral fala do América do Recife e de todos os Américas, de todos aqueles que torcem pelos times pequenos e carregam essa paixão machucada pelas várzeas e estadinhos Brasil a fora, sofrendo e ansiando por uma vitória que raramente vem, mas quando chega é saboreada como “coisa fresca, pele sensível, núbil, nova, ácida à língua qual cajá”, tal um sol brilhante e repentino.

Seria essa fruição rara o segredo da persistência da paixão do torcedor pelos clubes sem glórias?

Os dois poemas seguintes são sobre ritmo: Ademir da Guia e À Ademir Menezes.


ADEMIR DA GUIA

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.


Ademir da Guia era freqüentemente acusado de lento e de atrasar o jogo. Pura inverdade. Filho do lendário zagueiro Domingos da Guia. Ademir começou no Bangu em 1960, foi para o Palmeiras em 1962 e lá jogou até 1977, participando de times como a célebre Academia.Seu ritmo era diferente,pensado e calibrado,sempre atento às variações e alternâncias do jogo ao qual Ademir ia impondo o seu ritmo.Organizava o meio de campo e a saída de bola. Quando seu time era atacado, ele sabia desarmar o adversário e passar rapidamente da defesa ao ataque. Sempre o pensamento em movimento, a cadencia exata e necessária a cada circunstancia do jogo. Ademir fazia o passe médio e longo, era capaz de correr com a bola dominada, ir à linha de fundo e cruzar com precisão, tinha presença na área para uma cabeçada ou o arremate final. Seu repertório rítmico era variado e por isso se impunha à correria adversária.A alegada lentidão não era a pouca velocidade, mas a capacidade de pensar e alternar a cadencia de jogo, era o ardil e não o espalhafato, futebol inteligente e não ornamental.Ademir da Guia foi um artista sereno e refinado. Quem não o viu jogar ou está cansado de ouvir essa conversa fiada de lentidão, deve ver o documentário “Um Craque chamado Divino”.


A ADEMIR MENEZES

Você, como outros recifenses,
nascido onde mangues e o frevo,
soube mais que nenhum passar
de um para o outro, sem tropeço.

Recifense e, assim dividido
entre dois climas diferentes,
ambidextro do seco e do úmido
como em geral os recifenses,

como você, ninguém passou
de dentro de um para o outro ritmo
nem soube emergir, punhal, do lento.
secar-se dele, vivo, arisco.


Ademir Marques de Menezes, craque famoso dos anos 40 e 50, foi artilheiro da Copa de 1950 com nove gols. Jogou a maior parte de sua carreira no Vasco da Gama, no famoso time do Expresso da Vitória.Em 1946 e 1947 jogou no Fluminense, sagrando-se campeão carioca na sua primeira temporada.

Não vi Ademir jogar e as poucas imagens que restam dele são aquelas da Copa de 50. Lembro-me bem de quando era garoto e ouvia as conversas dos mais velhos, que tomavam cervejas nos quintais enquanto as crianças zuniam pela casa nos aniversários. Eles descreviam os rushes de Ademir, arrancadas fulminantes em dribles rápidos, sua capacidade de sair da imobilidade e disparar em direção ao gol adversário. Contavam que era um artilheiro agudo e preciso.

João Cabral, em Ademir Meneses, fala dessa dualidade rítmica, própria dos recifenses. O ritmo do mangue, que ata, e o do frevo, que dispara; a capacidade de passar de um a outro, sem tropeço, tal um punhal “vivo e arisco”.

Nesses dois poemas Cabral fala da beleza que a mescla de habilidade técnica e capacidade de variação rítmica desses jogadores-artistas proporcionava ao espectador. É um olhar para o “dentro” do futebol e não apenas para os seus aspectos externos.


O FUTEBOL BRASILEIRO EVOCADO DA EUROPA

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.


Há uma expressão entre os boleiros que bem define o perna-de-pau: “Esse não tem intimidade com a bola...” A proximidade carinhosa com ela, a atenção aos seus caprichos, como os de uma mulher, está no DNA do futebol brasileiro. Ao contrário de Lima Barreto e Graciliano Ramos que viram o futebol como um estrangeirismo passageiro, João Cabral percebe o modo original do estilo brasileiro e define poeticamente essa maneira de jogar “com malícia e atenção/dando aos pés astúcias de mão”. Entre essas astúcias estão o passe longo e preciso ao vislumbrar o deslocamento do companheiro, a capacidade de antever a jogada, a fantasia do drible e da resolução rápida, as trajetórias surpreendentes da bola nas cobranças de faltas.

Em um poema do livro Agrestes (1985), João Cabral fala de outra característica do futebol brasileiro clássico. Digo clássico, pois em tempos de ênfase em times de guerreiros, primeiro combate, volantes de contenção e outras expressões de infantaria,a arte do passe parece em decadência.Telê Santana dizia que “o passe é um gesto de amizade”.É por aí.


DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL

Não é a bola alguma carta
Que se levar de casa em casa:

é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.

Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;

com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;

em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo

Não corre: ele sabe que é a bola,
telegrama, mais que voa.


É uma descrição precisa do que é ou foi a arte do passe no futebol brasileiro. Penso logo em Gerson,Didi,Zico, Ademir da Guia.Talvez hoje no futebol brasileiro apenas Deco e Ronaldinho Gaúcho, quando quer, sejam os herdeiros e praticantes dessa arte requintada.Passe, sim, e não assistência, como quer o jargão do atual jornalismo esportivo que importou o termo do basquete.Assistência lembra sirene, socorro, ambulância...

Na arte do passe brasileiro, o craque faz a bola chegar ao seu destino com cálculo de engenheiro e “aritméticas de circo”. Ciência e fantasia.

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