QUANDO, em 1876, Pierre Bataillon chegou naquelas partes, primeiramente encontrou uma pequena aldeia Caxinauá no temor dos Numas quase sujeita, na exterioridade e mobilidade do poder Númico. Poder-se-ia dizer que os Numas os toleravam, temporariamente, e a qualquer momento, resolvessem vir, para os supliciar e exterminar. A aldeia Caxinauá se espremia entre os Numas imprevisíveis e a parte civilizada e conhecida do Rio Juruá, lá onde só era possível encontrar seringueiros perdidos, gente ficada da expedição de 1852. Os Caxinauás tiveram contato com Romão de Oliveira. Os Numas não. Reagiram violentamente desde 1847, quando o sábio Francis de Castelnau por ali passou e os descreveu na Expedition dans les parties centrales de l’Amerique du Sud, raro exemplar na biblioteca de Pierre Bataillon. Também Travestin, em Le fleuve Juruá, se refere àquelas lutas que tiveram contra os Numas. Em 1854, João da Cunha Correa, no cargo de Diretor dos Índios, subiu o Tarauacá, descobrindo o Gregório e o Mu, sem contato. Pierre Bataillon chegou em 1876. É o que digo. Naqueles anos os Numas não estavam. Passaram-se vários anos sem eles. Pierre estabeleceu o seu domínio com facilidade, sobre as terras dos Caxinauás pacíficos. Aquela era uma das inúmeras aldeias Caxinauás da Amazônia. Pierre impôs a paz, a ordem. Destruiu a cultura Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem eles se submeteram sem reclamos, quase alegres. A partir de então as mulheres e os rapazes Caxinauás se transformam em objetos do Seringal, pela força da tropa de guerra do Coronel. E a pequena aldeia, empestada de tifo, malária, sarampo e sífilis quase desapareceu: uma epidemia de gripe, em 91, dizimou um terço da população. Os Caxinauás se reduziram a 84 viventes agricultores, servos da gleba do Coronel.
Dez anos depois, voltando os Numas das montanhas peruanas, o quadro mudou molecularmente.
Com os Numas não.
Arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes, empurrados por perigoso inverno, permaneceram perdidos e livres, animais persistentes, se impuseram como resistência. Não e não. Reagiram ao pacto, ao toque, ao contato. Onde há resistência, há poder? Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser, no imprevisível espaço. Estão, a princípio, em toda a parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado. Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu. Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima, possíveis mas improváveis, mitificados, solidários, violentos, irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar. Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas. Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Às vezes deixavam-se entrever. Muitos seringueiros tentaram caçá-los a tiros (e foram mortos dias ou meses depois, numa vingança fria e exata). Eles se deslocavam rápidos, como um sopro, não estão lá, transitórios. E rompiam além, na nossa frente. Nus, com gemido de fera ferida, de pássaro. Só som. Para se re-agrupar nos caminhos já passados, deixando propositais pegadas. Recortam o ar com sibilante fechas de vento, marcando seus traços em toda a parte, nas irredutíveis casas do nosso medo. Cruzam redes de relação dentro do Seringal, infiltrados, atravessando, chegando no jardim do Palácio, para afrontar. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa. São homens nus, de enormes falos escuros. Alguns meses sumiam, desapareciam, pulverizados, sem unidades individuais, se acalmavam, tivessem ido embora para sempre. Ou só vento, integrados nas folhas das árvores. Mas logo uma seta rápida entrelaça no ar a sua curva a dizer que nunca se foram, que sempre lá estiveram, belos, os olhos amendoados e escuros, grossos sexos expostos, corpos de criança graúda. De certa forma, delicados. Mas puros fantasmas, encantavam-se, a floresta pré-histórica os neutralizava, floresta de ouro, de leite. Bataillon avançara na parte mais secreta da floresta, igarapé acima. Agora costeava os limites imprecisos da morte. Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas. Pierre deixava presentes, miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira. Os Numas nunca tocavam naquilo. Entre o Seringal e os Numas não havia canal. O Seringal, à espera. Os Numas, na observação, proscrevendo limites que quebravam. Pierre evitava a guerra, buscava a solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seu princípio único, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte.
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