sábado, 17 de junho de 2017

ROGEL SAMUEL: BREVE MANUAL DE DIDÁTICA GERAL

ROGEL SAMUEL: BREVE MANUAL DE DIDÁTICA GERAL


Por que a didática geral?

Depois de aposentado – esta palavra soa sempre muito estranha – pude fazer uma longa e calma reflexão sobre minha vida como professor auxiliar de ensino de didática geral na Faculdade de Educação da UFRJ, na década de 60.

Reli as anotações, revi os primeiros planos de aula. Lembrei-me das lições dos meus grandes mestres: Anísio Teixeira, o professor de Filosofia da Educação (recebia palmas no fim da aula); Luiz Alves de Mattos, nosso catedrático, mente clara, precisa, organizado; e de tantos outros, de outras matérias, como Alceu amoroso Lima, Celso Cunha, Matoso Câmara.

O que vi é que ainda está aberta, para mim, a questão do ensinar, do saber ensinar. Não apenas do saber como do fazer, as técnicas, as questões, os objetivos.

Que lições daqueles grandes mestres ainda permanecem vivas?

Não sei, nem posso responder.

Uma questão global. Atual.

O magistério agora dispõe de novas tecnologias, como o computador, a Internet. Naquele tempo nem com a TV se podia contar.

E porque ensinar e aprender? Para quê, para quem? Como fazer? Até que ponto as questões do professor em sala de aula se podem genericamente responder? Como ajudar a um jovem professor/a iniciante a começar o seu magistério?

Isto é a Didática Geral.

Que significa isso, essa ciência, ou essa arte, ou essa técnica?

Partimos do postulado de que é preciso aprender a fazer, ou o professor vai aprendendo com o tempo, mas com seus erros. Ou se acostuma a errar, e não mais aprende. Os erros da sala de aula infernizam a vida dos mestres, põem mestre e aluno em luta um contra o outro. Os professores se estressam, mudam de profissão, ou morrem. Ouvimos muito isso: professores que dizem que “hoje” é impossível trabalhar.

Mas é possível aprender a oferecer uma aula para jovens e irrequietos alunos da periferia?

O pior problema, além da baixa remuneração, é a relação numérica professor/aluno. Um professor com centenas de alunos não pode dar certo.

Porém a Didática Geral ensina a não cometer certos erros capitais e oferece algumas normas para evitar os erros triviais.

O magistério é uma das profissões mais difíceis e mais necessárias. A remuneração precária, o número excessivo de alunos em sala de aula, a violência da sociedade transferindo-se para o ambiente letivo, são só alguns dos problemas.

O magistério é, entretanto, uma arte, uma arte fina, extraordinária. E se pode aprender a fazer.

Nada substitui a viva voz do professor, o diálogo com ele, sua presença.

Ensinar a ensinar, eis o que faz a Didática Geral.

Mas “sábio não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”, escreveu Guimarães Rosa.





Ensinar e aprender

Cabe ao professor fazer eclodir no aluno o mistério do aprender ou parte do educando o início desse processo? Que é aprender? Se não quiser o aluno não aprende. Temos primeiramente de motivar o aluno a aprender.

Ora, aprender é tornar-se maior do que o fato apreendido. Além disso, é incorporá-lo, fazê-lo seu, parte de sua consciência, de seu ser.

Disse Alceu Amoroso Lima em sala de aula: “cultura é aquilo que esquecemos, mas é incorporado à nossa consciência”. Ele falava da “cultura” brasileira, mas podemos dizer que reside aí o fato do aprender: aquilo que, por mais que o “esqueçamos”, não poderemos esquecer jamais, pois já está incorporado ao nosso sistema, àquilo que nós somos e nos é. É uma “linguagem”, nos toma, somos e usamos.

Ou não? Será que, como nos antigos, o papel (e uso esta palavra com cuidado) do professor é fazer os alunos lembrarem-se do que já sabiam?

Não, não vou aprofundar essas complexas questões, pois meu objetivo aqui é ser simples e prático.

Ou seja: não precisamos saber o que é aprender, mas como isto é possível.

Aprender é liberdade, é libertar-se de uma incapacidade, de um problema, de uma obscuridade.

Quando aprendemos perdemos o medo daquilo de que não sabíamos, do desconhecido, da desconhecida ameaça. Há uma doença? Quando aprendemos como tratá-la logo deixamos de temê-la. Há uma crise? Quando compreendemos como e por que ela rebentou logo já começamos a saber como interagir com ela.

Quando fazemos alguma pergunta, quando colocamos alguma questão, é porque o processo profundo da resposta já está em andamento.

Quando perguntamos, já sabemos.

O professor ideal, se existe, seria aquele que ajudasse os seus alunos a libertarem-se de si mesmos, a serem livres de seus problemas internos.

Mas isso é outra história, porque que o “sistema” sempre nos impôs que preparássemos os jovens para a obediência, a ordem, o progresso.

Jovens livres são perigosos.

Mas não agressivos, violentos.

A minha geração, por exemplo, vivia de “paz e amor”. Jovens “rebeldes” não estão livres, estão presos à rebeldia de sua violência e maldade, ao calor de suas agressividades.

Quem é livre não agride ninguém.

Quem é livre é feliz.

Assim, a formação do professor é algo complexo, muito complexo.

Não me interprete erradamente. A educação é uma revolução.

Se tivermos toda uma geração de bons professores, bem preparados e bem remunerados, teremos uma nova era, um país diferente.

É o que faz o bom professor: ele muda o futuro.






A formação do professor

É complexa a sua formação. Não vamos aprofundar, mas daremos algumas pistas.

O professor é um técnico. Um cientista que agora dispõe de novas tecnologias. Mas é um ser humano. Seu objetivo é interagir com outros seres humanos, iguais a ele. Mesmo com diferentes idades. A qualidade de seu magistério depende de sua saúde, entusiasmo, ele tem de acreditar no ser humano que ele tenta despertar para a liberdade. Para a maturidade. Depende o professor também de fatos externos como o prédio da escola, a acústica, o barulho da rua, o número de alunos em sala de aula, a temperatura ambiente etc. Ensinar não é nada fácil. É bem mais complexo do que aprender. Nós aprendemos quando “queremos”, quando necessitamos. Já levar a outro o aprender, convencê-lo a isto, é das tarefas mais difíceis.

O que caracteriza um professor? Que qualidades deve ter?

Ele deve ter o mínimo de vocação. A vocação de ajudar. O gosto de incentivar os outros a encontrar os seus objetivos. Ou seja, a felicidade de cada um. O professor é uma porta para a felicidade.

Mas não basta um dom, é preciso mais. É preciso aprender a ensinar. É possível.

É claro que certos atributos e disposições humanas contribuem. E um pouco de sorte. Mas o professor tem de ter uma personalidade forte não-autoritária capaz de suportar os piores trancos. E certas habilidades podem ser cultivadas.

O professor tem de ter “jeito”. E orgulho de sua profissão.

Seu equilíbrio mental será testado a todo momento. Sua personalidade. Tem de ter boa e clara voz. Mesmo fraca, tem de ser clara. Não se deve abalar com as agressões e confusões de sala de aula. A aula deve prosseguir como se nada tivesse acontecido. O professor não se ofende nunca, só ouve o que quer, só o que serve para o andamento das coisas. Inabalável, ele prossegue. Porque o bom professor é um herói.

Tudo isso pode ser cultivado: o gosto pela clareza, pelo resumo, a confiança em si mesmo, certa presença de espírito, o controle emocional, a firmeza, a perseverança, a imaginação, a liderança, a iniciativa, a criatividade, o saber ter boas relações com seus alunos, tendo respeito por eles, a consciência da importância do magistério.

Quando o professor se descontrolar, o melhor que tem a fazer é respirar fundo e dizer:

– “Meus alunos, me desculpem. Eu perdi o controle”.

E rapidamente prosseguir a aula como se nada tivesse acontecido.






Quem é o professor?

É pedir demais? Sim. É ser um herói? Um ser humano assim, com tais qualidades? Mas tudo é relativo. E teórico. Conheci uma professora com voz fraca, magrinha, simpática, que sabia impor-se melhor do que ninguém. Conheci professores com defeito físico vencedores no magistério. Tudo é imprevisível. E depende da personalidade do mestre.

Mas conheci um professor que teve uma crise nervosa na porta do colégio e não conseguiu entrar. Sei de outro que mudou de profissão.

Não basta dizer: “Hoje os alunos não querem nada! Só querem passar! Só vão para a escola por causa as merenda!”

Cabe a nós o despertar-lhe o interesse.

Cabe a nós a alertar os alunos para o perigo de sair da juventude sem estar preparado.

E estar preparado não é ter um diploma. Todos sabemos de um personagem que não tinha diploma e chegou a Presidente da República.

Eu mesmo experimentei muitos fracassos e vitórias, mas sempre soube distinguir o que era a minha (in)capacidade da minha pessoa. Aprendi com meus fracassos, usei-os como elementos de sucesso. Tive a sorte de ter bons mestres.

Pois, o que é um bom professor?

Não há uma definição única e clara. Cada um caso é diferente do outro.

Mas todos esses profissionais devem cultivar certas qualidades específicas.

Não é só o conhecimento específico que faz um bom professor de crianças e adolescentes, que é o de que tratamos aqui. Um erudito sem capacidade de extrair a síntese não pode ser um bom professor. Não é só o conhecimento, mas técnica, a técnica didática, que ele pode aprender num curso de didática ou ao longo dos anos de magistério.

O professor deve ter um conhecimento básico e preciso da matéria que vai ensinar. Não precisa ser um “especialista”, nem um pesquisador, uma autoridade no assunto para ensinar numa escola pública.

Mas ele é um instrumento de aprendizagem, um divulgador de princípios para a vida em geral,

Seja qual for a matéria ensinada, reduzindo o conteúdo ao essencial, dando o caminho curto, pondo aquilo tudo ao alcance dos seus jovens alunos.

Não é fácil, mas é possível. O magistério é uma das profissões mais complexas.

A matéria ensinada deve ser tratada como um aspecto da vida. Deve ser útil e bela. De interesse na vida social. Todo professor devia saber um pouco de socialismo, de sociedade, de economia.

Estudamos para preparar-nos, devia ser o lema de todo aluno.

A vida é sempre difícil, e nós nos preparamos na escola. Se os alunos sentirem isso naquilo que o professor faz, terão respeito e interesse pelas aulas, serão atenciosos com o mestre, e o virão como líder.

Todo curso de didática devia tratar da arte da liderança.





Para quê serve a Didática Geral?

Quando estamos na faculdade, nem sempre damos importância ao estudo da Didática. Mas é ela quem vai-nos dizer como ensinar, apropriadamente, com princípios claros, normas práticas de ação, programas, planos, métodos, recursos, procedimentos adaptados à realidade da escola, do aluno, do professor e do conteúdo. O professor deve ser um aliado, um soldado da educação, não um burocrata. Quem desconhece as teorias didáticas entra nessa batalha desarmado dos instrumentos necessários para o sucesso do seu magistério. O sucesso significa a satisfação, a felicidade com esta profissão.

O objetivo da pedagogia (não distinguimos aqui pedagogia e didática) não é dirigir, formar, mas motivar, resolver conflitos, contornar e simplificar complexidades. Nós, professores, não somos perfeitos. Mas devemos ser insistentes, constantes, irredutíveis nas nossas boas intenções. Quando assim agimos, os alunos sentem, sabem, e colaboram.

A educação é um processo social e individual.

Como social, desenvolve uma nação inteira. Como individual, supera dificuldades, imaturidades.

É impossível que todos os membros de uma sociedade sejam saudáveis, mas o que se quer é que a maioria não seja de marginais desajustados.

A educação nas escolas deve ser sistemática, organizada, planejada para ser completa. Como elemento complexo, a educação tem de ser planejada em todos os seus níveis, escalões, definindo princípios, objetivos a serem alcançados, normas, procedimentos, orientações.

Não existe a melhor técnica de ensino, mas a melhor possível de acordo com cada fragmento da realidade. Por isso, temos de examinar caso a caso, cada realidade objetivamente, cada situação dada.

A didática é comporta de cinco elementos: o aluno, o professor, os objetivos, os conteúdos a serem ensinados e a metodologia utilizada.

O aluno tem de ser visto como um ser humano, com as virtudes e dificuldades de todo ser humano, com suas tendências, interesses e reações. O aluno deve ser “aceito” tal como é, seja como ele ou ela for. Um ser humano, ainda que criança, para ser respeitado e a quem se pergunta: como posso ajudá-lo? O professor não deve querer moldar o aluno e transformá-lo, mas tentar desenvolver no aluno certas qualidades e potencialidades que já estão lá. Se encontra um aluno com tendência ao crime tem de saber como desviar essa potencialidade para o bem social e individual.

O professor é o motor do processo, estimula e corrige o rumo, alimentar o fluxo do processo, sem se envolver emocionalmente com os alunos. O professor tem de ser sempre um profissional, manter uma certa distância técnica entre ele e seus alunos. A relação íntima nunca dá certo: os alunos devem ver o professor com amizade, mas com respeito. Este é o limite delicado e sensível da boa e produtiva relação professor-aluno. Ultrapassar esse limite, transpondo esse nível, pode fazer surgir problemas de controle de classe, indisciplina etc.

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Os objetivos a serem alcançados

Como anunciamos antes, a didática tem cinco componentes: o aluno, o professor, os objetivos, os conteúdos a serem ensinados e o método apropriado.

Os objetivos a serem alcançados são a razão de ser da escola, o rumo a tomar na vida do aluno, na profissão, o objetivo é a realização, a felicidade, a necessidade, as metas, o resultado positivo.

Trabalhar, lecionar sem ter determinados os objetivos a serem alcançados é como navegar às cegas.

Os conteúdos são as matérias vistas como valores culturais que pertencem à cultura, à civilização, ao grupo social.

O método são os processos e recursos disponíveis para solucionar os conflitos, as dificuldades, as deficiências: o homem é o ser que sempre soube superar suas dificuldades e deficiências e atingir mais ou menos seus objetivos. Da qualidade e escolha do método vai depender o êxito ou o fracasso do magistério e sua felicidade no relacionamento professor\aluno.

A Didática Geral ensina a planejar os trabalhos, tornando-os mais fáceis; e incentivar os alunos, fazendo-os mais interessados e colaboradores. Ensina a como exercer a necessária liderança no controle da classe, sem o quê não pode o professor/a ser útil. Ensina a organizar um plano de trabalho, de aula, de curso. Ensina a diagnosticar a aprendizagem em tempo útil, a como fixar o aprendido, a como verificar o resultado, a corrigir o rumo, a como tirar proveito das falhas, dos erros, a como transformar as dificuldades em vitórias.

É uma ciência maleável, não rígida, não é a mesma para cada caso, ensina a ser flexível, a não ter verdades eternas. Temos de ver o que funciona e o que não funciona em cada caso, do problema temos de saber extrair a solução eficaz.

Todo problema já traz em si as potencialidades de sua solução, ou como diziam os antigos nós não devemos nos preocupar: se tem cura, por que se preocupar? Se não tem cura, por que se preocupar?

O bom professor sabe como fazer, como aplicar isto ou aquilo. Sabe (ou aprende) quando, onde ou como adaptar a técnica de modo a fazer a máquina funcionar.

Nada é fácil, na vida do magistério. No diário é uma profissão difícil. Mas devemos ser realistas e ter a sabedoria (ou esperteza) de solucionar cada problema tempo e continuar a aula e o curso.

Ensinar é um processo transformador. Professor e aluno têm de fazer juntos. O importante é desenvolver e transformar, facilitando o crescimento interior de todos. 


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