segunda-feira, 20 de agosto de 2018
O PALÁCIO
Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho.
Nós retornávamos à elaboração do nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz. O Palácio (que era assim conhecida aquela construção que depois entrou em decadência, ruína e morte, depois da quebra da borracha), o límpido e repentino Palácio nos esperava na tranqüilidade dos seus pontos e ângulos com que nos acenava e encontrava com sua imortal bem-aventurança sobre placas de negras e primitivas águas vindas da origem da vida do mundo, nas faces do Igarapé do Inferno deslizavam as riquezas das cabeceiras do mundo, da Fronteira, do Inevitável, do Inexato, das Árvores do Princípio. Perdidas, devolutas, indemarcáveis... Sim, porque tudo a fortíssima codificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno, da construção, que aquilo era uma edificação (depois abandonada) de dois andares mais porão de procedimento art-nouveau cingida de finos gradis de ferro torneado em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas de elegante e efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decorando a escadaria de mármore torto e enfático, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias. Que majestade é algo que logo se sente à distância, pois de longe já dava para sentir a majestade e diferença, o interesse de se re-apropriar das sacadas e balcões que avançavam no ar... - mas tudo aquilo está hoje em ruína descontínua, mas tudo aquilo hoje não está e a minha descrição corresponde ao que era o Palácio há muitos anos na minha mocidade e na proliferação da minha memória perdida, ah, sim, porque estou velho mas não estou louco, e as minas no meio da floresta lá estão como cultura e substância ainda para confirmar a existência e elaboração. Vejo bem o corpo retorcido daquele evasivo edifício oitocentista (depois saqueado), no alto da terra-firme, plantado em relação a uma verdade naquele limite da Terra por conta de rios de sangue e de escândalo de toneladas de libras esterlinas de ouro reluzente de borracha - oh, Deuses!, porque existiu aquele luxo não admitido ou suposto, aquela desventura e extorsão, aquele desbarato dos prazeres da riqueza na sede do Seringal Manixi que era longe, muito longe, afastado de tudo, afastado de si, distante 3.100 km da cidade de Manaus ...
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