quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A MORTE DE LAMPIÃO



A MORTE DE LAMPIÃO

ROGEL SAMUEL


             Súbito silêncio corta o céu no nosso caminho.
             Era uma navalha.
             Lampião, ergue o braço, ordena de parar.
             Pergunta os ares, instinto selvagem.
             Ausculta os cantos, expressão de ódio, dúvida.
             Não tinha medo de morrer. Já estivera vezes diante da morte. Eu sabia como ele reagia.
             Era outro sentimento, o de se ver fechado no abraço inimigo, verdadeiro exército, os soldados avançavam, várias
frente, para caçá-lo, animal acuado, para fechar sobre si o que sobrava da tropa envenenada e a doença (ele mesmo ardia em
febre), falta de munição, mantimentos.
             Maria Bonita conosco ali estava.
             Receava não poder atravessar o deserto em frente. Não poder esconder-se na caatinga, onde navegávamos como
num mar de espinhos. Não poder arregimentar as tropas dispersas, de que ainda dispunha. O fim da glória, do cego império,
do mito. Morrer humilhado.
             — Estou sentindo cheiro de macaco! - rosnou, entredentes.
             Continuávamos imóveis.
             Meu ombro ferido ardia. Como se me aplicassem ferro em brasa. O sangue coagulara-se junto à sujeira ao suor. Em
breve iria infeccionar.
             Não tivera tempo de limpar a ferida, não sabia se tinha uma bala no ombro.
             A dor de cabeça latejava, imperdoável.
             Apesar de tudo cavalgávamos há dois dias, deixando nosso rastro sangrento atrás de nós.
             Conduzíamos nossos perseguidores.
             Conduzíamos à morte.
             Lampião ouvia do silêncio a sua canção.
             Onde estariam eles?
             Ele sabia que vinham em nossa direção.
             Antes, só ele conhecia o caminho ali, no inatravessável.
             Agora as tropas dispunham de guias, saídos de nossas fileiras, comprados.
             Sim, eles estavam vindo.
             Podiam estar surgindo do Desfiladeiro do Xingó.
             Podiam estar oriundos da direção de Canindé.
             Podiam estar caminhando a contrapelo do Rio do Chico, as águas esverdeadas, pérola e esmeralda, as águas
sagradas.
             Ou podiam estar fazendo o caminho dos rochedos escarpados, altos de cinqüenta metros de altura, vereda que
Lampião bem conhecia.
             Acima estava o vale.
             Abaixo a Grota do Angico.
             E na Grota Lampião resolveu ficar.
             Ele acertava sempre, ninguém discutiu.
             Ninguém discutia com ele.
             Pensava em esconder-se ali, deixar passar o inimigo.
             Mas foi ali que a morte veio buscar-nos.
             Sitiaram-nos.
             Era um exército.
             Não havia alternativa. Abrimos fogo final.
             Nossa munição escassa, nossos homens famintos, sedentos, cansados.
             Cabras feridos, doentes.
             Lampião ferido. Menos Maria Bonita.
             Mas Lampião não revelava doença, tinha outra natureza, bicho, coisa de aço.
             Era intenso o fogo contra nós.
             Mais modernas armas usavam, poderosas, maior alcance.
             Nós começamos lentamente a morrer.
             Foi quando Lampião e Maria Bonita arrancaram para frente, avançaram contra o comando.
             Lampião queria era a morte em batalha.
             A humilhação seria pior, ser preso, vivo e torturado. A humilhação pela dor da tortura, suprema de todas as dores.
             E Lampião foi lá. Desafiava a morte.
             Lá. Seguido por Maria Bonita.
             Depois nada mais vi, engolfado por nuvem de fumaça e de dor que me tirou a vista.
             Mas foi assim que tudo se deu, conforme o digo eu, o Narrador.



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