sexta-feira, 4 de março de 2022

Escrevo para Neuza Machado

 

Escrevo para Neuza Machado
Rogel Samuel
Soube que um livro de crônicas de Paulo Mendes Campos foi publicado. Ele fazia parte dos grandes daquela época, Rubem Braga, Fernando Sabino e ele. Era a época das belas crônicas. Drummond também as escrevia. Crônicas todas que eu lia, e imitava.
O futuro das crônicas está aqui, na Internet. Quem gosta de ler, lê primeiramente crônica, e as lia no ônibus, no escritório, na praça. Os velhos leem na praça. Mas os jornais estão acabando, em breve só se vai ler em tablet, e o mundo continua lindo, o Rio de Janeiro. Os velhos cronistas usavam máquinas de escrever portáteis, escreviam nos aviões, aeroportos. O mundo parecia moderno. Eu nunca escrevi em aeroporto. Meus poucos livros os escrevi a mão, em grandes cadernos. “O amante das amazonas” escrevi num hotel, no centro, pois meu apartamento estava em obra inacabável. A primeira versão foi feita lá, perto da Praça da Cruz Vermelha. Ali eu mergulhei na selva amazônica, no rio Juruá, ali construí o Palácio Manixi, com todo o seu luxo. Lembro-me de que, naquele hotel, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte da tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltava sobre meus olhos o belo vulto e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois eu e o texto retornávamos em busca daquele passado interdito, e chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento de múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho.
Todo escritor é louco delirante, todo escritor surta. Todo escritor recria a imagem de um passado que não viveu. Mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha crônica, pois o dia se anuncia e ressurge e é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto a despeito desse vosso Narrador fingido que está no fim, permanecendo vivo ainda até esta hora e o assunto está terminado. Não mais, que foi assim que falei, e assim a estória se fez e falou por mim, e se cumpriram as coisas conforme o disse eu, o Narrador. Adeus, minha amiga, adeus Neuza, que tão bem soube interpretar “O amante das amazonas” que parecia ter sido escrito para ela. Adeus Amiga, lembre-se desse Narrador nos desconhecidos espaços da morte, não se esqueça dessa estória tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, e quando sonhar sonhe aquilo, com aquele Igarapé se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênia Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita dei Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mais de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse velho Narrador que desaparece, neste ponto.

Ela faleceu subitamente.

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