segunda-feira, 18 de abril de 2011
O IGARAPÉ DO INFERNO, 2
O IGARAPÉ DO INFERNO, 2
ROGEL SAMUEL
Zequinha, não. Não e não! Relações exclusivas: Maria Caxinauá e o
bugre Paxiúba, o Mulo. Você ri? Ri? Gosto. Você ri. Você acha a minha fala muito velha? À medida que envelheci, reinventei a fala, pra falar, e você sabe. Sabe, tenho pouco tempo de vida. Não, não. Tenho. Já sinto a mordida da morte. Minto?
Zequinha nasceu em 1890, no Manixi. No meio daqueles índios. Eram os Caxinauás, mansos mansos. Eram os Numas, violentos, assassinos eles.
O Seringal Manixi se estendia que muito além das margens do Igarapé do Inferno. Aquilo saía no Igarapé Bom Jardim, que sai no Rio Jordão, e deságua no Rio Tarauacá, tributário do Rio Juruá, afluente do Solimões. Não é o fim do mundo? Onde? Onde? Ah, você? Lá, no rendilhado labirinto de ilhas e trilhas, de furos e lagos. Lá nasceu Zequinha, filho da vida do fim do mundo, filho do Pierre Bataillon e da dona Ifigênia, oh, essa mulher hábil, aparentada da família Vellarde, são colombianos, sabe? — seu pai era primo de D. Angel. A lenda ainda circula na cidade de Tarauacá. Atribuem a ela a rainha da riqueza, rainha. As ligações peruanas e colombianas de D. Ifigênia. Na guerra do Acre. Pierre se deu bem com os dois lados. Seu Seringal ficava do outro lado, fora da área conflitada. Fora.
A educação refinada de Zequinha foi outro caso.
Em 92, quer dizer, em 1892, a malária dizimava os curumins de todos os lados, todos, nas barrancas do Juruá. A família Bataillon, instalada à bordo do Barão de Juruá, não saía, com medo.
E cruzou por ali um cargueiro inglês.
Não, não está gravando, menino, socorro, não tá. Já se foi, se foi. O cargueiro se chamava Santa Maria de la Mar Dulce — o Paraná-guaçu — mas também Vicente Yanes Pinson, pois ia, antes de dizer, que fizera parte de um acordo. O Santa passava por ali, no momento, de bubuia, de descida, de embalo, debaixo do sol dourado, apresentando vasta e esteira branca, bigodão cheio, a proa cortando com fúria as águas pardas em direção a ponta do Fagoroso, do Inhame, do Capareral, talvez de Forso, em virtude da aparência de um perfil de mulher, e dali para as ilhas, rota batida da nossa borracha. O quê? Ah, sim, sim.
Pois bem, pois bem, pois sim, muito bem. Se você quiser eu paro, paro de contar, muito bem, muito bem, gosto de você, belezinha, assim gosto, me dá um pouco de café, mais forte, estou morrendo, hoje escolhi para morrer. O quê? Já senti a ponta da mordida da morte. Você está ouvindo, surdo? Surdo surdo. Conto conto.
Em 1894, ou seja, dois anos depois, a epidemia passou, e os Bataillons estavam de volta ao Manixi, quer dizer Zequinha, sua mãe. Sabe: um segredo, voltou só ele e a mãe. Portanto Zequinha ficou até os oito anos de idade entre os índios, sob a influência da Caxinauá. Sinto não sinto. Não e não. Olho pra você e digo: eis ai quem tem. Sinto não.
Em 1898 Zequinha voltou para capital do Reichland de Alsácia-Lorena, os primeiros estudos. Morava ao lado da catedral famosa, fama. Conheço a catedral de Estrasburgo. O relógio conheço. Aos quinze anos está de volta, no Seringal falando francês, alemão, tocando piano, foi quando amasiou-se com a índia Maria Caxinauá.
Em 1907, ficou órfão de mãe. D. Ifigênia faleceu. Ele voltou, de novo, para a Europa, voltou para Paris. Morava na Rue de Sevres, se não me engano, em companhia de uma mulher desconhecida. Daí também morre de malária seu pai, em 1910, e ele vem para cá, de novo, já para vender tudo, o Manixi, o império selvagem, homem de muita fortuna. Mas sim. Mas há quem diga que os dois morreram no naufrágio. Mentira, mentira.
Uma coisa é certo: o jovem Batailon assim como sabia tocar excelentemente uma sonata de Beethoven ao piano, podia, o puto, podia andar inteiramente nu pela mata. Como um índio!
Sim, seu desaparecimento nunca foi explicado.
Me dá um poucode café, estou ficando cego, cansado, não acabo a merda desta estória, oh esse seu Narrador, menino, nunca fique velho, não! mate-se antes, dane-se enquanto jovem, mas não deixe a decomposição da velhice chegar. Isto é humilhante! E estou velho porque tenho medo, medo de morrer. Medo! A velhice é o medo! Medo de morrer. Eu sempre fui suicida, sabe, mas já velho mudei, fraquejei, por isso tenho medo de morrer. O suicida tem medo de morrer. Morre antes, morre logo. Quê? Você quer me matar, é? quer me assaltar? É? Ho ho, sinto, sinto isso, sinto, sinto, conto. E digo, já fui muito rico. Rico! Como é mesmo o seu nome?
Menti? Não menti. Velho não mente. Inventa. Sou mais velho do que este mundo. Já perdi a noção da Verdade. Bonito? Ah ah. Você evangélico acha isso bonito? Tudo aqui é velho, as fotos, os móveis. Tudo sujo. Vivo aqui há muitos anos. Antes, tinha uma mulher que vinha, limpava, mas a Geralda morreu, morreu. Como é esta morte? Eu vivi, vivi e nao ria, não, o que não sei como é a cara da morte. Nunca saberei. Saberei. Oh, sim, já. Ah ah, você vê? Você vê? Conto, conto. Está uma puta chuva, meu Deus, vai alagar tudo tudo. Que frio!
Aonde eu? Bem. Foi lá. Lá. Foi na Praia do Cuco, à margem esquerda do Igarapé do Inferno, que foi visto pela última vez. Do outro lado ficava a Ponta do Fedegoso. Ali eram vistos, em outras épocas, os Numas, os guerreiros Numas nus, escondidos na vegetaçao, entre Tacacazeiros da Várzea, os paudebalsa, molongós que ali nascem, entre cipós titicas e cordas de tucum. Ali tem mais, muita sorva assassina, massaranduba, ja foi lugar de viração de tartaruga, de arapoca de cheiro, de ucuúba, de anil. Oh, vida vida. Sabe, menino, você é muito bom para mim. Você me faz bem lembrar. Você até me da vontade de me matar. Viver? Com força, com unhas e dentes, com sangue, com pus, e não quero beber o bolero. Ah ah, não tenha medo, não sou louco. Não. Vi um homem velho morrer abandonado sozinho no seu colchão – ele estava deitado em cima de um mar de suas fezes. Você não que saber o que é a morte? Era aquilo, a cama se tinha transformado numa bacia de fezes, mesmo na parede havia fezes coladas, respingadas, espalhadas, tudo aqui fedia, pois aquele homem era agora uma montanha de excrementos e o fedor era sentido já no corredor da entrada do prédio, como algo estranho, mais que fecal, excrementício, coliforme, como uma borra aveludada de esgoto úmido e pútrido. Aquilo, digo, entrava pelos narizes e não saía nunca mais da narina da gente como se nos infeccionasse e contaminasse e empestasse por dentro com a matéria pestilenta da morte.
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