segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O EFÊMERO




O EFÊMERO

ROGEL SAMUEL


De Ricardo Reis canta certa ode, digo Pessoa, nos meus ouvidos sempre que estou em dúvida e que logo me diz:


Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


De meu mestre Euryalo Cannabrava certa vez nos contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, que era hipotética morte, ele a marcava, com data e horta, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e seus problemas se diluíam porque nada resiste à Ela, a morte - a suprema! - e «tão cedo passa tudo quanto passa!». Que sem a morte a vida seria muito mais chata, repetitiva e cruel.
Nesse sortilégio o nada vai da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna, para além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna, neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página de Hannah Arendt em que se faz a distinção entre eternidade e imortalidade (Hanna ARENDT. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.)
A distinção estabelecida entre imortalidade e eternidade esclarece parte da alienação do nosso mundo moderno 
Pois Imortalidade significava a continuidade no tempo, através da realização de grandes feitos, obras - os feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir grandes obras e de realizar feitos heróicos e imortais, os homens podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses. Na Antigüidade Clássica, havia os que ambicionavam à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, uma alienação se percebe e uma falta de compreensão da natureza do real.
Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo, no sentido estrito do termo, isto é, aquela visão da eternidade, ainda que passageira, momentânea. Diz Arendt que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vivia a experiência do eterno. Se escrevesse a sua experiência do pensar, ambicionaria Sócrates a imortalidade, ou seja, procuraria deixar para a posteridade algum vestígio de si: assim é a fama. (Ironicamente hoje se admite poder alguém ser «famoso» sem nada ter produzido, como por exemplo um locutor de TV ou uma garota do Big-Broder).
A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se morrer é deixar de estar entre os homens, ela é a morte do ego. Seu contrário seria a intenção da fama, da imortalidade. Eternidade e imortalidade estão, deste modo, em lados integralmente opostos e contraditórios.
Entretanto, tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, ninguém poderia suportá-la por muito tempo. Nós, seres condicionados e mortais, não podemos encarar o eterno na sua eternidade, senão indireta e rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do nosso mundo. A imortalidade, ao contrário, reside entre nós, é criação humana. Ao contrário, o eterno não é condição de possibilidade humana, nem é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento atento, silenciado pelo êxtase da contemplação. Os poetas do Zen sabiam disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade da cotidiana linguagem humana, é uma iluminação fortuita que não se consegue senão com a intuição do poético, com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, nasce quando há radical negação. Não pode ser aprisionado pelo discurso, mas representa a intensificação, a liberdade, a libertação do que não pode ser objetivado pelo discurso científico - o eterno é a poesia.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno. A nossa feitiçaria é vã, diria o poeta Ledo Ivo.
A morte, entretanto, é coisa séria, como o que «contam de Clarice Lispector» de João Cabral:


Um dia, Clarice Lispector 
intercambiava com amigos 
dez mil anedotas de morte, 
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos, 
vindos do último futebol, 
comentando o jogo, recontando-o, 
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece, 
abre a boca um silêncio enorme 
e ouve-se a voz de Clarice: 
Vamos voltar a falar na morte?

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