O CARTÃO POSTAL
Rogel Samuel
Eu tinha nas mãos um velho
cartão-postal. E uma edição de La vida es sueño. Era uma velha loja no
centro velho da cidade, uma loja de coisas usadas, talvez um bazar beneficente.
Estava cheia de trastes cobertos de uma poeira decadente. Quando entrei fui
logo atraído pela pilha de livros a um canto, onde descobri o livro de
Calderón. Depois descobri uma caixa de sapato cheia de velhas fotografias. O
cartão postal. Era uma foto velha, mas muito nítida, meio sépia, da minha cidade
natal. A rua era aquela. Pude reconhecer cada pedra, cada porta, cada janela.
Sabia mesmo quem habitava ali. Na grande casa da esquina morava o meu amigo de
infância X. Quando sua mãe estava grávida, uma vidente lhe disse: ia ser
menina. A família preparou um enxoval de menina. Nasceu menino. Quando tinha
sete anos de idade, disse para a mãe: queria ser bailarino. A mãe se persignou.
Nada disse para o marido, que era violento. Quando tinha doze anos entrou para
aquela escola, onde o conheci. Como era muito louro, belo, alto e feminino, na
escola só encontrou inimigos. Ninguém se aproximava. Na rua os moleques
freqüentemente tentaram agredi-lo. Quando passavam pela frente de sua casa,
gritavam palavrões. Faziam gestos indecentes. Por isso quase não saía de casa.
Mas se vestia muito bem. Família rica e conhecida na cidade. Usava umas blusas
de seda branca, que dizem ele mesmo fazia. A mãe todos os dias ia levá-lo ao
colégio. A mãe era amiga de nossa família. Mas nossas mães nos proibiam de
falar com ele. Ele só se aproximava de algumas meninas, no recreio. Mas era um
bom aluno e excelente desenhista. Quando tinha cerca de quinze anos, o pai o
surpreendeu vestido com roupa da mãe, todo pintado. Espancou-o tão
violentamente que ele ficou vários dias sem poder ir à escola, com vários
hematomas no rosto. Logo no fim do ano eu me mudei para o Rio de Janeiro e o
perdi de vista. Soube que o pai o mandara
morar com umas tias. As tias o rejeitavam, mas o pai era rico e pagava bem.
Quando o pai soube que ele dormia fora suspendeu o pagamento. As tias o
expulsaram. Contam que ele vivia nas ruas, onde se prostituía. Depois trabalhou
como cabeleireiro e manicuro. Aquela loja estava cheia de trastes velhos,
cobertos de uma poeira decadente. Quando fui pagar, a velha que me atendeu
falou, com estranha voz: “Eu nasci aí,
nesta cidade”. Era ele, o meu amigo X. Não me reconheceu. Aquela mulher tinha
os dentes estragados, o ralo cabelo branco mal pintado, amarrado para atrás.
Era um ser em ruína. Eu nada disse, paguei e saí da loja, sobraçando o livro de
Calderón, La vida es sueño.
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