quarta-feira, 25 de outubro de 2017

"COELHO NETTO E SUA OBRA" DE PÉRICLES MORAES

No Brasil, a fecundidade literária do sr. Coelho Neto é um exemplo isolado. Pode-se dizer que nas nossas letras, desde que a nossa literatura deixa de ser uma ficção para tomar forma e se revelar, não se conhece outro escritor dotado de maior ou de igual disciplina de trabalho. Prosador nato, dos melhores de nossa língua, a sua obra aperfeiçoa-se de dia para dia, ramifica-se, irradia-se, exerce influências, determina uma época literária; e muito embora a crítica de hoje, desconfiada e bisonha, faça restrições ao seu valor intrínseco, não há como recusar-lhe a primazia com as de maior nomeada. Não afirmaremos que o escritor tivesse tido sempre as palmas da vitória em todas as experiências que o diletantismo de seu espírito praticou. Mas, se como poeta o sr. Coelho Neto foi apenas um delicado amador, se não há notícia de suas incursões na tragédia, é soberano o seu principado no conto e no romance, que os concebeu e realizou com a mesma inexcedível perfeição dos mais eminentes mestres universais. É certo que a sua obra nem sempre foi meditada e sentida nos silêncios inspirativos do gabinete, o espírito calmo, o homem desobrigado da vida nos travores de suas exigências materiais cotidianas. Alguns dos volumes de sua bibliografia se ressentem da precipitação com que foram planejados e compostos, o escritor operando o milagre de viver das letras, sob a pressão de um ambiente refratário e hostil a quaisquer manifestações da inteligência. Ainda assim do tumulto desses conflitos desiguais, traído pela inveja, sitiado pela indiferença, emparedado entre as muralhas dos obstáculos crescentes da vida, quantas maravilhosas obras-primas. Obra-prima o “Tubilhão”, escrito assim, na azáfama do jornal, para o cumprimento da tarefa diária; obras-primas o surto flaubertiano do “Rei Fantasma” e, ainda, essa linda fantasia oriental do “Rajah de Pendjah”, ambas realizadas da mesma forma, para o folhetim cotidiano, e que revelam de pronto o escritor, a sua visão simultânea de colorista e de imaginativo através do frêmito alucinado que lhe convulsiona as ideias. Já houve, aliás, quem atribuísse a vitalidade das obras-primas, estudando-lhes a gênese, ao impulso instantâneo do pensamento, à transição epilética que age e hipnotiza o criador no instante da criação. Apenas Flaubert, excepcionalmente, transgrediria a regra. Porque Saint Victor viveu assim as páginas todas do “Hommes et Dieux”; Paul Adam escrevia na redação do vespertino em que colaborava os capítulos da “Critique des Moeurs”; Anatole somente começava a compor as páginas de crítica da “Vie Littéraire”, reunidas depois nos quatro volumes célebres, quando o chasseur do jornal lhe vinha buscar os autógrafos; e Sainte-Beuve fazia precipitadamente, ainda sob a impressão de sua última leitura, cada um dos notáveis estudos das “Causeries du Lundi”. Quem leu a correspondência de Barbey d”Aurevilly dirigida a Léon Bloy, sem nenhuma notoriedade naquele tempo, humilde revisor de provas do impiedoso demolidor, avalia a desordem dos processos de composição do autor das “Diaboliques”, sobretudo quando dinamitava os seus contemporâneos. Faz-se mister acentuar, em proveito do escritor patrício, a diversidade flagrante de concepção do que diz respeito às suas ideias.

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