No Brasil, a fecundidade literária do sr. Coelho
Neto é um exemplo isolado. Pode-se dizer que nas nossas letras, desde que a
nossa literatura deixa de ser uma ficção para tomar forma e se revelar, não se
conhece outro escritor dotado de maior ou de igual disciplina de trabalho.
Prosador nato, dos melhores de nossa língua, a sua obra aperfeiçoa-se de dia
para dia, ramifica-se, irradia-se, exerce influências, determina uma época
literária; e muito embora a crítica de hoje, desconfiada e bisonha, faça restrições
ao seu valor intrínseco, não há como recusar-lhe a primazia com as de maior
nomeada. Não afirmaremos que o escritor tivesse tido sempre as palmas da
vitória em todas as experiências que o diletantismo de seu espírito praticou.
Mas, se como poeta o sr. Coelho Neto foi apenas um delicado amador, se não há
notícia de suas incursões na tragédia, é soberano o seu principado no conto e
no romance, que os concebeu e realizou com a mesma inexcedível perfeição dos
mais eminentes mestres universais. É certo que a sua obra nem sempre foi
meditada e sentida nos silêncios inspirativos do gabinete, o espírito calmo, o
homem desobrigado da vida nos travores de suas exigências materiais cotidianas.
Alguns dos volumes de sua bibliografia se ressentem da precipitação com que
foram planejados e compostos, o escritor operando o milagre de viver das
letras, sob a pressão de um ambiente refratário e hostil a quaisquer
manifestações da inteligência. Ainda assim do tumulto desses conflitos
desiguais, traído pela inveja, sitiado pela indiferença, emparedado entre as
muralhas dos obstáculos crescentes da vida, quantas maravilhosas obras-primas.
Obra-prima o “Tubilhão”, escrito assim, na azáfama do jornal, para o
cumprimento da tarefa diária; obras-primas o surto flaubertiano do “Rei
Fantasma” e, ainda, essa linda fantasia oriental do “Rajah de Pendjah”, ambas
realizadas da mesma forma, para o folhetim cotidiano, e que revelam de pronto o
escritor, a sua visão simultânea de colorista e de imaginativo através do
frêmito alucinado que lhe convulsiona as ideias. Já houve, aliás, quem
atribuísse a vitalidade das obras-primas, estudando-lhes a gênese, ao impulso
instantâneo do pensamento, à transição epilética que age e hipnotiza o criador
no instante da criação. Apenas Flaubert, excepcionalmente, transgrediria a
regra. Porque Saint Victor viveu assim as páginas todas do “Hommes et Dieux”;
Paul Adam escrevia na redação do vespertino em que colaborava os capítulos da
“Critique des Moeurs”; Anatole somente começava a compor as páginas de crítica
da “Vie Littéraire”, reunidas depois nos quatro volumes célebres, quando o
chasseur do jornal lhe vinha buscar os autógrafos; e Sainte-Beuve fazia
precipitadamente, ainda sob a impressão de sua última leitura, cada um dos
notáveis estudos das “Causeries du Lundi”. Quem leu a correspondência de Barbey
d”Aurevilly dirigida a Léon Bloy, sem nenhuma notoriedade naquele tempo,
humilde revisor de provas do impiedoso demolidor, avalia a desordem dos
processos de composição do autor das “Diaboliques”, sobretudo quando dinamitava
os seus contemporâneos. Faz-se mister acentuar, em proveito do escritor
patrício, a diversidade flagrante de concepção do que diz respeito às suas
ideias.
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