domingo, 22 de outubro de 2017

O BULLYING NÃO É COISA NOVA

O BULLYING NÃO É COISA NOVA

ROGEL SAMUEL


Há anos já existia. Eu assisti bullying muitas vezes. A diferença, hoje, está redes sociais. Florestan Fernandes conta como sofreu por ser filho de mãe solteira, na Universidade. Os mais sofredores são os alunos negros, gays e trans. Um dia eu tinha nas mãos um velho cartão-postal. E uma edição deLa vida es sueño. Era uma velha loja no centro velho da cidade, uma loja de coisas usadas, talvez um bazar beneficente. Estava cheia de trastes cobertos de uma poeira decadente. Quando entrei fui logo atraído pela pilha de livros a um canto, onde descobri o livro de Calderón. Depois descobri uma caixa de sapato cheia de velhas fotografias. O cartão postal. Era uma foto velha, mas muito nítida, meio sépia, da minha cidade natal. A rua era aquela. Pude reconhecer cada pedra, cada porta, cada janela. Sabia mesmo quem habitava ali. Na grande casa da esquina morava o meu amigo de infância X. Quando sua mãe estava grávida, uma vidente lhe disse: ia ser menina. A família preparou um enxoval de menina. Nasceu menino. Quando tinha sete anos de idade, disse para a mãe: queria ser bailarino. A mãe se persignou. Nada disse para o marido, que era violento. Quando tinha doze anos entrou para aquela escola, onde o conheci. Como era muito louro, belo, alto e feminino, na escola só encontrou inimigos. Ninguém se aproximava. Na rua os moleques freqüentemente tentavam agredi-lo. Ele chorava. Quando passavam pela frente de sua casa, gritavam palavrões, faziam gestos indecentes e jogavam pedras. Por isso quase não saía de casa. Mas se vestia muito bem. Família rica e conhecida na cidade. Usava umas blusas de seda branca, que dizem ele mesmo fazia. A mãe todos os dias ia levá-lo ao colégio. A mãe era amiga de nossa família. Mas nossas mães nos proibiam de falar com ele. Ele só se aproximava de algumas meninas, no recreio. Mas era um bom aluno e excelente desenhista. Quando tinha cerca de quinze anos, o pai o surpreendeu vestido com roupa da mãe, todo pintado. Espancou-o tão violentamente que ele ficou vários dias sem poder ir à escola, com hematomas no rosto. Logo no fim do ano eu me mudei para o Rio de Janeiro e o perdi de vista. Soube que o pai o expulsara de casa. Foi morar com umas tias, no Rio. As tias o rejeitavam, mas o pai era rico e pagava bem. Quando o pai soube que ele dormia fora suspendeu o pagamento. Sem pagamento, as tias o expulsaram. Contam que ele vivia nas ruas, onde se prostituía. Depois trabalhou como cabeleireiro e manicuro. Aquela loja estava cheia de trastes velhos, cobertos de uma poeira decadente. Quando fui pagar, a velha que me atendeu falou, com  estranha voz: “Eu nasci aí, nesta cidade”. Era ele, o meu amigo X. Não me reconheceu. Aquela mulher tinha os dentes estragados, o ralo cabelo branco mal pintado, amarrado para atrás. Era um ser em ruína. Eu nada disse, paguei e saí da loja, sobraçando o livro de Calderón,   La vida es sueño

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