terça-feira, 28 de junho de 2011

SOMOS MEMBROS UNS DOS OUTROS


SOMOS MEMBROS UNS DOS OUTROS

Rogel Samuel

«Somos membros uns dos outros», dizia São Paulo aos cristãos de Efeso.
Isto é citado por Laín Entralgo, num artigo que incluímos recentemente no nosso site.
Entralgo, pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, sempre exerceu sobre mim sobrenatural fascínio.
Define ele a capacidade do homem de considerar-se pessoa por dois conceitos: o próprio e o alheio.
Na esfera do próprio, estabelece Laín duas diferentes esferas: o 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e o 'em mim' (que posteriormente ele estuda na patologia).
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com a outra? como considerar o outro como outro eu? como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade?
Para ele, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''.
A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe.
O principal livro de Entralgo, raríssimo entre nós, se chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na Biblioteca Nacional.
Nesse, ele percorre com maestria toda a filosofia ocidental desde os pré-socráticos em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro.
Assim era em Hegel, quando o eu suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro.
Lain também era médico, e escreveu tratados de medicina.
Faleceu no ano passado, com cerca de 90 anos.
Essas considerações vêm antes de ler o CANTO 1, 26 de Jorge de Lima, em INVENÇÃO DE ORFEU:

Qualquer que seja a chuva desses campos
Devemos esperar pelos estios;
E ao chegar os serões e os fiéis enganos
Amar os sonhos que restarem frios.

Porém senão surgir o que sonhamos
E os ninhos imortais forem vazios,
Há de haver pelo menos por ali
Os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos,
E ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas,
Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.

Alguns poetas tiveram ou revelam alguma dificuldade de relacionar-se com o outro ('os ninhos imortais forem vazios').
'Imortal' - revela o 'felizes para sempre'.
A felicidade presente ('a chuva desses campos') atinge a solidão do futuro ('Devemos esperar pelos estios').
Sua poesia reside nisso.
Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma solidão sempre presente, sempre fiel, uma vocação de 'amar o perdido', o passado: 'Amar os sonhos que restarem frios'.
Os ninhos estarão vazios, e neles só os pássaros os idealizados.
A estrofe:

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos,
E ao bico alheio em cânticos responde.

Marca o centro do reconhecimento de si no outro inexistente, no outro distante e impossível.
Diz esses versos: Eu me escondo nos versos que canto, canto com o fingimento do canto.

É o contentar-se descontente de si consigo mesmo, e em si.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas,
Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.

As asas depenadas não voam, o coração não ama, as cenas ao redor são terríveis, as dores não se expressam e são secretas, os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de Invenção de Orfeu mantém a sua imortalidade e beleza.

2 comentários:

Jefferson Bessa disse...

Adoro os seus comentários atenciosos, refinados e sempre "doados" ao Outro do poema.
O trecho de Jorge de Lima é fantástico.
Um abraço
Jefferson.

ROGEL DE SOUZA SAMUEL disse...

obrigado!