TENREIRO ARANHA
ROGEL SAMUEL
Poucos poetas foram tão misteriosa,
inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador
e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico,
que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século
Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o
primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga,
primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas).
Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente
assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre
nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a
alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a
algum ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria
Bárbara, mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O
interesse pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era
tema de literatura.
O famoso soneto do primeiro artista
autenticamente amazonense é esse:
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.
Ora, quem fala é a vítima, já cadáver
feita. Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo
bem tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém,
pardo, na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta,
corpo morto.
O cadáver
tem um recado a dar. Um recado, uma nova, uma notícia dela para o esposo
aflito, que, se aflito não a sabe morta. “Leva piedoso”, significa, “por favor,
por piedade, diz para meu marido que morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da
“mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz
que preferiu a morte à “mancha conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o
alívio à dor amara.
Hoje,
Tenreiro Aranha é rua de Copacabana, rua sem saída, que começa na Siqueira
Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro
soneto, canta o poeta:
Passarinho que
logras docemente
Os prazeres da
amável inocência,
Livre de que a
culpada consciência
Te aflija, como
aflige ao delinqüente;
Fácil sustento e
sempre mui decente
Vestido te
fornece a Providência;
Sem futuros
prever, tua existência
É feliz
limitando-se ao presente.
Não assim, ai de
mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o
frio, a enfermidade
Sinto também do
crime o peso horrendo...
Dos homens me
rodeia a iniqüidade
A calúnia me
oprime, e, ao fim tremendo
Me assusta uma
espantosa eternidade.
Note-se
que há dois Aranhas: Além do poeta, que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro
Aranha, existe seu filho, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o
primeiro Governador da Capitania do Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a
Catedral, que não é bela, mas imponente. Dizem que foi construída com trabalho
escravo indígena. Nesta época Manaus se torna centro político. Começa o
comércio da borracha e piaçava.
` O poeta
cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou na lavoura, junto com os escravos.Com
doze anos inicia estudos com um vigário. Interno no Convento de S. Antônio de
Belém. Os bens familiares do menino foram “confiscados”, literalmente pelo
Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi nomeado para um cargo público,
foi demitido por intrigas políticas. Depois, o Conde dos Arcos, Governador do
Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era um erudito, tinha sólida
cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo
soneto louva a “inocência”, logra docemente os prazeres da amável inocência,
“livre de que a culpada consciência / Te aflija, como aflige ao delinqüente”. É
obra leve, bela, clássica. O tema, bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros
prever, tua existência / É feliz limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é
arcádico. Não é amazônico. Nada mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com
seus espinhos, insetos, aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e
pântanos. Não, não se tem ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil
sustento e sempre mui decente”. Não, isso não é amazônico.
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