ADÉLIA PRADO
Quando o encontro com alguma coisa provoca em mim um sentimento de estranhamento e de beleza, eu estou tendo, nesse momento, uma experiência poética. Essa experiência é sempre um sentimento de gozo, uma coisa prazerosa. É um sentimento de plenitude, porque ele preenche uma falta em mim, ele me tira da orfandade, porque me dá um pai, um sentido, uma ordem supra-real que me acolhe e na qual eu fico inserida.
Eu vejo algo quando estou tendo uma experiência poética. Eu vejo algo, é uma visão, é uma aparição. Essa experiência toca um lugar em mim onde a lógica não alcança, onde os argumentos racionais não têm ressonância. Não é um argumento que me demove dessa experiência. A pessoa que está tendo uma experiência na ordem da poesia, e isso é uma experiência dada a todos nós, ela diz assim: “Eu sei que é assim, é porque é, é como ver Nossa Senhora”. Não há como demover uma pessoa de uma visão dessa ordem, ela sabe que é assim.
E o discurso conotativo, quando eu quero dizer para outra pessoa que tive esta experiência de estranhamento e de beleza diante das coisas, não funciona, o discurso filosófico não adianta nada, nem o discurso doutrinário. Eu preciso, então, para registrar essa experiência, de uma língua nova, de um signo novo, uma ordem que eu chamo ordem simbólica. É isso que vai segurar para mim essa experiência porque a arte, nesse caso, é pura expressão que resolve e que sabe contar o que eu estou sentindo. Por isso a arte, a poesia, qualquer arte (cinema, teatro, pintura) é expressão pura, nunca é um discurso a respeito de alguma coisa. Ela tem de ser a coisa mesma.
Nós vamos a um teatro, por exemplo, ou ao cinema e, quando a coisa começa a ficar discursiva, a gente sai, a gente não agüenta, por isso a gente não suporta a arte engajada. A arte engajada é uma idéia tentando ser arte, porque a experiência da beleza pede uma linguagem que é pura expressão. Se uma rosa me comove e eu vou fazer um poema, ele não pode ser a respeito da rosa, porque a rosa eu vou ao jardim e olho para ela, ela já está lá, ela não precisa de um texto que fale a respeito. O poema tem de ser a própria rosa. E há poemas tão perfeitos, tão maravilhosos que as pessoas, às vezes, vão conferir um céu estrelado, depois que viram o céu estrelado no poema. Ou, então, conhecem o mar melhor no texto do que o mar que vêem todo o dia, por causa do poder de simbolização da linguagem poética.
Como a Vera já falou, a poesia é, na sua essência última, a revelação do real. Ela é maravilhosa porque ver o real é ver a beleza. Isso não é uma coisa minha. Santo Tomás de Aquino já falava isso. Todo o ser é bom, o que vale dizer todo o ser é belo. Se eu conseguir encontrar a realidade dessa taça, quem vai me mostrar isso não são os meus olhos comuns, não é o discurso da ciência, nem da filosofia a respeito, mas é o discurso da arte. Então, a pintura desse copo vai me mostrar a alma do copo, e essa visão é sempre de beleza. Ela constrange a gente. A beleza é uma coisa constrangedora. Este é o único recado que a arte tem: de me colocar diante da beleza. E beleza é igual à realidade. Isso aqui anula esse preconceito, mais infeliz do que qualquer outro, de que o artista é aquele que tem os pés fora da realidade. É exatamente o contrário: ele é que está centrado no real e que o revela. Eu sinto assim. Tem uns ipês que eu vi nessa viagem minha, uns ipês-brancos que eu nunca tinha visto, assim, dessa maneira, e certas árvores que a gente tem encontrado por aí, que geram angústia, tal é a beleza, que pede expressão. Então, eu preciso de língua para isso, e essa língua é a arte. No meu caso, a poesia. Essa experiência é, no seu substrato íntimo, uma experiência de natureza religiosa. Ela é mística por uma razão muito simples: ela me religa a um centro de natureza inconsciente que me instala numa ordem de pura felicidade. Por que a gente vai a um teatro triste, a um cinema triste? A gente vai para chorar, a gente sabe que é triste, vai e chora, e vai assim mesmo. Não é por causa da tristeza em si, é por causa da informação da tristeza na beleza da obra, é por isso. E a obra toca aquilo em mim onde nada mais toca, ela me comove, ela é dirigida aos afetos, por isso esse poder arrasador da arte.
Onde eu aprendi mais sobre educação de filhos foi numa peça de um cubano cujo nome esqueci, infelizmente, chamada A noite dos assassinos. Então, todo o discurso sobre educação de filhos, sobre relacionamento familiar, às vezes discursos tediosos, aquilo foi dito de maneira artística no teatro, e a peça comove, arrasta e desarma. Eu não tenho o que discutir com a obra de arte. Eu discuto com filósofo, eu discuto com político, com toda a ordem de discursos, mas eu não tenho elementos para discutir com a arte, porque ela não permite isso, é uma outra ordem de conhecimento e de abordagem, é a ordem do afeto. O mundo é movido pelos afetos. É o afeto que move o mundo, não é a pura ciência.
Essa experiência atinge todos os níveis da realidade física, psicológica, espiritual. É uma experiência que é dada a todo o mundo. A única diferença entre o autor e o leitor é que o autor, supõe-se pelo menos, tem elementos e poder para simbolizar uma experiência. E, quando ele dá o teatro, quando ele dá o cinema, quando ele dá o poema, o leitor fala assim: “Ah, eu sei o que que é isso! Como é que ele sabe o que eu também sei?” É exatamente porque a obra me espelha, é o caráter universal que ela tem. Essa é uma participação no inconsciente coletivo onde nos movemos. A arte me espelha e eu posso falar: “Sou humana, olha lá, a minha experiência verbalizada e simbolizada”. Por isso a arte é tão solidária, é tão fraterna. Ele me salva da angústia de não ter um verbo, o artista tem para mim.
Lá em Curitiba, um grupo de teatro fez, numa praça, uma representação com uma bonequinha cantando, uma espécie de fantoche. E tinha pessoas muito simples, com escolaridade muito pequena, vendo o espetáculo. Na hora em que acabou, uma moça perguntou: “Vocês gostaram?” Cada um deu uma opinião e um menino, um gari, que estava lá cuidando do jardim, falou assim: “Eu gostei muito da gesticulação”. Ele falou aquilo de uma forma tão cidadã, ele tornou-se um cidadão quando usou uma palavra pouco usual para ele, porque foi oferecido para ele um signo, uma verbalização da experiência da beleza. Então é isso que a poesia faz.
Eu escolhi uns poeminhas, que, espero, ofereçam para vocês uma oportunidade de verificação dessa “teoria” sobre o que eu acho que é poesia.
Briga no beco
Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera axaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
A esfinge
Ofélia tem os cabelos tão pretos
como quando casou.
Teve nove filhos, sendo que
tirante um que é homossexual
e outro que mexe com drogas,
os outros vão levando no normal.
Só mudou o penteado e botou dentes.
Não perdeu a cintura, nem
aquele ar de ainda serei feliz,
inocente e malvada
na mesma medida que eu,
que insisto em entender
a vida de Ofélia e a minha.
Ainda hoje passou de calça comprida
a caminho da cidade.
Os manacás cheiravam
como se o mundo não fosse o que é.
Ora, direis. Ora digo eu. Ora, ora.
Não quero contar histórias,
porque história é excremento do tempo.
Queria dizer-lhes é que somos eternos,
eu, Ofélia e os manacás.
Duas horas da tarde no Brasil
Tanto quanto a vida amo este calor
esta claridade metafísica,
este pequeno milagre:
no ar tórrido os alecrins de seda não se crestam,
espalmam como os jovens hebreus cantando na fornalha.
Quem sofre é meu coração,
às duas horas da tarde quer rezar.
Quem me chama é Deus?
É Seu olho centrífugo o que me puxa?
A vida tão curta e ainda não tenho estilo,
palavras como astrolábio desviam-me de meus deveres,
a forma de um nariz por semanas ocupa-me,
seu jeito triste de fechar a boca.
A quem amo enfim?
Acaso fui seduzida pelo Filho do Homem
e confundo você, mesquinho,
e confundo você, vaidoso,
como o que me quer com ele
gemendo na sua cama de cruz?
O europeu diz-se aturdido com o desperdício do sol.
Obrigada, respondo, com vergonha de carnaval,
de batuques, de meus quadris excessivos.
Jesus é búlgaro? Afegão? Holandês da colônia?
Brasileiro não é. Estranhíssimo sim,
com seu corpo desnudo e perfumado,
mendigando carinho, igual ao meu.
Minha pátria, como as outras, tem folclore,
cantigas cheias de melancolia.
Como posso aceitar que morreremos?
E a alma do povo, a quem aproveitaria?
Frigoríficos são horríveis
mas devo poetizá-los
para que nada escape à redenção:
Frigorífico do Jibóia
Carne fresca
Preço jóia
De novo quero rezar para não ficar estrangeira
“meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?”
Dizei-me quem sois Vós e quem sou eu,
dizei-me quem sois Vós e quem sou eu.
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