Paris
Rogel
Samuel
Havia uma chuva fina que molha o chão
das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores àquela
em Paris chovia sempre. Como adoro Paris, sonhei morar em Paris. Mas minha
amiga Annie morreu, perdi o interesse. Annie está na foto.
“Somos morte”, diz “O livro do
desassossego” de Pessoa. “Isto, que consideramos vida, é o sono da vida
real...” (p. 191). Sono foi o que ele escreveu, não sonho.
Cheguei a discutir com Annie minha
mudança para Paris. Alugaria um estúdio no subúrbio, mas teria Annie por perto.
Não tão longe – algumas horas de trem -
estaria Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Acordaria ao
som de seus sinos, de seus hinos, de seus pinos, de sua imaginação. A catedral,
maior do que a própria cidade.
Um dia, estando em Frankfurt, em casa
de amigos, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E o amigo respondeu:
"Eu levo você".
Fomos, que era domingo.
Não sei se voltarei a ver e ouvir o
relógio da Catedral de Estrasburgo. Naquele dia esperei dar 6 horas da tarde na
Catedral. A primeira coisa que acontece
é abrir-se uma portinhola e dali sair a
Morte em pessoa: um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte com uma
foice, que bate com um martelo num
sininho. Aquilo ecoa por toda a nave da igreja. É a hora da Morte. O passar do
tempo. E o grande sino da Igreja responde, solene. Grave.
Chove sempre que estou em Paris.
Com Annie Gerault, que não tinha medo
de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des Minimes", sob chuva forte, à noite. Fomos
procurar um centro de budismo.
Mas Annie morava na Rue Fondary, não
longe da Torre Eiffel.
Um dia saímos a ver a nova iluminação
da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du
Luxembourg.
Como carioca, logo pensei em assalto. O
jardim estava deserto, a sensação era de calma.
Lembrei-me então: não estávamos no Rio.
Não
sei se voltarei a Paris. Estou velho, e solitário.
Paris só sorri, só se serve
acompanhado. E jovem. Como naquele outro tempo, quando tomei um porre de
champanha no Café Flore. E depois saímos cantando pela rua deserta.
Hoje tudo mudou. Eu mudei, Paris mudou.
Até assalto acontece em Paris.
O mundo deu saltos para trás. O relógio
do tempo expõe seu bonequinho mecânico da Morte, a fugacidade do tempo.
A morte ali é um esqueleto com uma
foice. O esqueleto toca um sininho, de som fino e penetrante.
Acordo, já não somos jovens.
O grave som do rugido animalesco do
grande órgão da catedral abre os ares, as asas dos ares. O mundo se despedaça
no horizonte, assustando as aves, anunciando a noite.
Talvez haja uma chuva fina, atapetando
as calçadas. Eu tomaria um expresso no mesmo bar, acompanhado de um ovo cozido.
Desceria a rua até o Metrô. E partiria para o mundo.
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