A VISÃO DO MAR
Rogel Samuel
Mas não sei como poderia subsistir hoje sem a visão do mar, como nas “Palavras ao mar”, de Vicente de Carvalho:
“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas - a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.”
Vicente de Carvalho, que era paulista, de Santos, assim o disse. Quando ele nasceu...
“Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como olhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...”
Este hino ao mar, um dos melhores, amplo, sonoro, Vicente de Carvalho escreveu. Nasceu em abril, como diz o poema, no dia 5 de abril de 1856, “O claro mês das garças forasteiras / Abril, sorrindo em flor pelos outeiros, / Nadando em luz na oscilação das ondas”. Poeta feliz, ou melhor, da felicidade, da felicidade luminosamente azul:
“Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa.
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
O mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!”
Os olhos descansam na visão oceânica. Além disso, Vicente de Carvalho também foi aguerrido jornalista. Escrevia na imprensa, defendendo suas idéias. Foi deputado, Constituinte do Estado, em 1891. Seu ritmo é oral, como de tribuno, em:
“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...
Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por esta angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o vôo!”
Em Santos ele faleceu. Em 22 de abril de 1924, aos 68 anos. Herdou o verso forte de Castro Alves. O verso: “A que as brisas da terra o sono embalam”, lembra o de Alves: “que a brisa do Brasil beija e balança”, em:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Esta estrofe ousada, esta ousadia poética de Castro Alves, de rasgar a Bandeira Nacional num poema, poderia, em outros tempos, levá-lo à prisão. Entretanto vivia na liberdade de seu tempo democrático, heróico, nos versos decassílabos heróicos, com acentos 6 - 10: -------dão------ter / ----- sil ------ lan.
Auriverde penDÃO de minha TERra,
Que a brisa do BraSIL beija e baLANça
O Brasil oscila, ali. Aos ventos. Aquele navio cheio de escravos era bem brasileiro. Uma “vergonha”, diz ele. Lembro-me do poeta amazonense Hemetério Cabrinha a recitar, na Rua Saldanha Marinho, em Manaus, na porta do jornal “A crítica”:
Era um sonho dantesco o tombadilho
que das luzernas avermelha o brilho...
Ele me lembra o seu próprio poema “O Cristo do Corcovado”:
“No escalavrado píncaro da serra,
Que o luar alveja e a luz do sol estanha;
E onde a cidade, abençoando a terra,
Se espreguiça na falda da montanha;
Ergue-se o Cristo-Redentor, coitado!
Braços ao ar, o triste olhar cravado
Na base de granito que o suporta
De alma apagada e a consciência morta.
O Cristo cujo busto alvinitente,
Granítico, imponente
E lavado de sol;
Aureolando de alvura o Corcovado,
Qual Prometeu, virado
Para o horizonte, a medir o arrebol;
E, de distância imensurável, visto
Qual uma forma etérea
É apenas um Cristo
Feito à custa de angústias e miséria.”
O poema inteiro está no nosso sítio.
O verso: “Que a brisa do Brasil beija e balança” tem 4 “bb” de beijos. A bandeira aí ondula aos beijos dos ventos. Nas cores do céu, nas cores da esperança. A bandeira irradia sol. Irradia patriotismo. “Estamos em pleno mar”, o mar azul, o “mar da memória” do amazonense Sebastião Norões:
“Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.”
Coube a este amazonense a glória de ter escrito um dos mais belos sonetos do mar. Longe do mar. Só de memória. Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira e faleceu em Manaus. Estudou em Fortaleza. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Professor no Colégio Estadual, onde foi meu professor de geografia. Exerceu o cargo de Chefe de Polícia do Estado, quando escondeu e deu fuga ao comunista Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada e da Academia Cearense de Letras (CORRESPONDENTE). “Poesia Freqüentemente” é livro de minha predileção. Ali sentimos sua poesia viva, sua poesia azul. Nesta pequena obra-prima, que é “Mar da memória”, a ânsia de infinito, como se o poeta quisesse voar, escapar do estreito espaço em que se movia, alcançar Alascas e Austrálias. Revela lembranças, do mar, dos verdes mares de Fortaleza, do mar literário, do mar de Alencar, que era verde. Mas quando “o mar é meu”, o mar de minha memória, é azul, e não verde, de minhas lembranças que se voltam para os céus, dos imprevisíveis rumos de minha vida, sonhada ainda, de imprevisíveis rumos. Pois “arte é o homem acrescentado à natureza”, escreveu Van Gogh, em carta a Théo de 1879. E ele entendia de azul, de delirante azul.
APRESENTAÇÃO DA 2ª EDIÇÃO DO LIVRO DE NORÕES
Ovídio, A arte de amar
Da superfície do corpo, onde nascem os desejos, a poesia traz consigo a sua proveniência o seu acontecimento emergente, a fala, vontade e disfarce. Ela é um saber para o acontecer na história efetiva das necessidades do corpo, ameaçadora. A Instituição não se reconhece nela, sua especialidade é a estranheza, a “destruição delicada”, A República não pode suportá-la: onde há poesia, nada é estável, tudo é horizontalidade possível do seu discurso azul. A História mostra que a República não precisa de poetas, pode passar sem eles, tem desconfiança, nas prisões e no esquecimento esses seres sedutores perigosos devem estar. Fora da República.
Todo poeta é um fora da Lei. A glória de um poeta é uma contradição, armadilha. A poesia hoje é, de preferência, peça de resistência. O canto do poeta desmonta o discurso perverso do poder. Porque a poesia brinca no vazio de poder, toda liberdade é azul, uma ameaça, o homem de fato detesta a liberdade, teme os livres (do contrário já se teria emancipado) — é por isso o poeta foragido da lei. Depois de morto, sua obra se perde na prisão poeirenta das bibliotecas inúteis, onde só a sombra o vai visitar.
De lá sai Poesia Freqüentemente (1956) de Sebastião Norões, livro de minha predileção, sentimos sua poesia viva, Norões, Reitor de idéias, sua poesia é azul. Esta pequena obra-prima é a ânsia de infinito”, como se o poeta quisesse voar, escapar do acanhamento provinciano em que se move, alcançar Alascas e Austrálias. Por isso o mar
ou seu fracasso (a vontade perdida). Com as “citações”, o livro é originalíssimo e do melhor que já se fez aqui. Rimbaud é seu modelo. O poeta tenta ir, mas voltei a mim — a vida morna vai caindo aos poucos. O azul são esperanças. Não realizadas, nem a amizade verdadeira. Há morte no azul, no caminho para o não feito. O coração está acabado. De tal forma o livro se fecha, que a gente pressente o seu nunca mais escrever — a poesia (e a vida sangüínea) termina ali. É o mal que sempre vence. Marcuse.
Quando éramos jovens, Norões foi nosso professor e Mestre. Posso vê-lo, atrás das baforadas de cigarro e lentes grossas. Norões impressionava, carismático e culto. Nunca pensei que faria sua “apresentação”, tantos anos se passaram. E é uma surpresa sempre que releio seu livro, sua poesia está mais viva ali, sua poesia é azul, lá onde o horizonte mergulha. E desponta.
Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira. Estudou em Fortaleza. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Professor no Colégio Estadual e Dom Bosco. Foi Chefe de Polícia do Estado onde (dizem) protegeu Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada, da Academia Cearense de Letras (CORRESPONDENTE). Professor de Geografia do Colégio Estadual do Amazonas.
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