domingo, 6 de novembro de 2016
O AMANTE DAS AMAZONAS
Rasga a hiumara, anuncia a morte. Ferreira vê aquele homenzinho sentado, com a seringa a 308 libras a tonelada. No ano anterior estava a 374 £/t. A modificação do preço, porém, ia dar um salto para 655 £/t! Mas a queda seria brusca, em 1921 cairia para 72 £/t. Dez anos depois, em 1931, cairá mais ainda, chegará a 32 libra/t, menos da metade do preço de 109 anos antes, mesmo descontando-se a evolução dos preços e a pequena inflação. Era a Morte. A decadência e morte do império amazônico. De único produtor, o Brasil passou a produzir somente 1% do que consome. Um vulto desaparece por trás da porta, sumindo-se na galeria dos corredores. Altas paredes de estuque, a decoração pesada, barroca, o luxo surreal fantástico. Canta um jacamim no jardim dos patos. Aquelas salas se intercomunicavam numa área de 500 m2. São 15 cômodos de rodapé de maneira pintada, com balaustrada de coluna e forro de frisos dourados, soalho de acapu e pau amarelo. A entrada do edifício dá para um amplo hall, ao fundo do qual está o gabinete de trabalho do coronel. À esquerda, a porta da sala de música, isolada. À direita está a alcova e a circulação da galeria que dá uma volta por trás do edifício e retoma ao fundo da sala de música, assim como o terraço, que se abre dali para a parte de trás em ângulo reto. Uma grade de ferro fecha o jardim dos patos. Pierre me convida para o café, servido por um indiozinho Caxinauá na saleta contígua. Sentamo-nos num par de cadeiras Voltaire. A cururu-bóia, perdida, agita as folhas das raízes onde se enrosca como sapo. É um café forte, pelo que Pierre passa as noites em claro, vagando como fantasma através daqueles salões semi-iluminados por velas e lâmpadas de vaga-lumes. No meio da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim do mundo. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que saem da escuridão. Pierre, indiferente, anda e seus passos se fazem ouvir ao longo a galeria das portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira das janelas de folhas duplas fechadas até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras guarnecidas de cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina d’água tenta impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma aranha peluda em cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando por debaixo da mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no vão do corredor. Ao cair da noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos espalhados pela casa, se começa a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos, cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é assediado à noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar, atraídos pelas luzes. Ferreira sente medo. Todos os homens, empregados, balateiros, caucheiros, mariscadores, tropeiros, caçadores e índios parecem demônios. A casa é terrível, sobrenatural. Os olhos do caboclo Paxiúba e de Maria Caxinauá. Os salões encortinados como no teatro, a mobília esculpida - demônios e leões - tetricamente luxuosa. Pierre abre as portas de um armário e retira uma garrafa de Black. Ferreira bebe tendo nos olhos o curumim Caxinauá perfilado à sua frente. Aquela fortuna tinha uma fonte, que era o trabalho escravo da inteira nação Caxinauá, que produzia a alimentação que Pierre trocava pela produção de seringueiros que raramente recebiam dinheiro. A pequenina figura daquele homem apareceu por fim pintada na sua verdadeira frente.
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