terça-feira, 29 de novembro de 2016

VIGIAR E PUNIR


(LIVRO ESSENCIAL PARA COMPREENDER O QUE SE PASSA NO BRASIL)

"O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem
dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem
ou de um direito. Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade - nunca
funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física,
masmorra. Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos
mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. A crítica ao sistema penitenciário, na primeira
metade do século XIX (a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos têm menos fome, menos frio e privações
que muitos pobres ou operários), indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado: é justo que o condenado
sofra mais que os outros homens? A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física. Que seria então um
castigo incorporai?"

"Permanece, por conseguinte, um fundo "supliciante" nos modernos mecanismos da justiça criminal - fundo que não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal.
......................
Essa dupla ambigüidade da confissão (elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de coação e
transação semivoluntária) explica os dois grandes meios que o direito criminal clássico utiliza para obtê-la: o juramento
que se pede ao acusado antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e
diante da de Deus; e ao mesmo tempo, ato ritual de compromisso); a tortura (violência física para arrancar uma verdade
que, de qualquer maneira, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juizes, a título de confissão
"espontânea"). No fim do século XVIII, a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de
uma selvageria denunciada como "gótica". É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição, é claro, e mais longe
ainda do que os suplícios dos escravos. Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha. Ela tem
seu lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos do sistema acusatório; em que a
demonstração escrita precisa de um correlato oral; em que as técnicas da prova administrada pêlos magistrados se
misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado; em que lhe é pedido - se necessário pela coação
mais violenta- que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário; em que se trata em suma de produzir a
verdade por um mecanismo de dois elementos - o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato
realizado ritualmente pelo acusado. O corpo do acusado, corpo que fala e, se necessário, sofre, serve de engrenagem aos
dois mecanismos; é por isso que, enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito
poucas críticas radicais da tortura.(15) Com muito mais freqüência, simples conselhos de prudência:
O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade..." (FOUCAULT. VIGIAR E PUNIR)

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