sábado, 6 de outubro de 2018

Dante, biógrafo permanente da existência humana



Dante, biógrafo permanente da existência humana


Otto Maria Carpeaux | Jornal do Brasil, 1976

A divina comédia, por Dante Alighieri. Integralmente traduzido, anotado e comentado por Cristiano Martins. Editora USP–Editora Itatiaia, 1976, São Paulo–Belo Horizonte. 824 pp. Cr$ 150,00.

Atradução completa da Divina comédia por Cristiano Martins, o inesquecido poeta da Elegia de Abril, talvez seja o maior acontecimento literário do ano. Não se sabe o que é mais estupendo: o imenso trabalho do tradutor ou o empenho corajoso da editora. A língua portuguesa no Brasil não dispõe, infelizmente, de maior número de traduções assim que em outras áreas lingüísticas têm contribuído tanto para ampliar os horizontes literários: basta lembrar o Shakespeare alemão e a Bíblia inglesa. E Cristiano Martins escolheu a mais difícil tarefa de todas! O trabalho realizado pelo poeta mineiro é enorme: proíbe apreciação superficial, segundo primeiras impressões. Não poderia fazê-lo logo e agora. Só nos cabe agradecer. E acrescentar algumas palavras sobre o próprio Dante. Mas que dizer sobre Dante?

Galileu, na mocidade, exercitou sua imaginação de matemático, calculando os espaços fantásticos do Inferno. Assim, um físico de hoje poderia calcular a altura fantástica da montanha de livros e estudos que já se escreveram sobre a Divina comédia: o número resultante também seria astronômico. Acrescentar algo a essa infinidade seria inútil. Só peço licença para lembrar-me das minhas memórias pessoais de Dante, das leituras erradas dos primeiros anos e das leituras erráticas dos anos de atividade na vida e das leituras distraídas das horas de ócio, até que em boa hora se abrem ao leitor de Dante os olhos da compreensão, “nel mezzo del cammin di nostra vita”.

Meu primeiro Dante era uma edição para a mocidade, fartamente ilustrada por um artista medíocre e anônimo, mas — em compensação — cuidadosamente expurgada. Passaram-se, desde então, muitos, muitos anos, mas por um motivo especial, que vou logo revelar, consegui já então verificar os expurgos feitos. No episódio de Francesca da Rimini, no canto V do Inferno, os editores sacrificaram os “dubbiosi disiri” do verso 119 e o “placer si forte” do verso 104; e o verso 136 — “La bocca mi baciò tutto tremante” — caiu totalmente fora. Mas o expurgador também tremeu ao mutilar assim o poema; e para tranqüilizar sua consciência reuniu num apêndice, no fim do volume, os trechos suprimidos, para maior comodidade dos leitores juvenis. Se tivesse editado assim as obras de Shakespeare, teria saído um dos livros mais pornográficos do mundo, e isto “ad usum Delphini”. Mas Dante é casto. Tanto mais aquele ilustrador soltou as rédeas de sua imaginação sádica. Lembro-me como se fosse hoje de suas gravuras de mediocridade incrível: os diabos pareciam cozinheiros que com longas colheres remexiam os condenados em panelas ferventes; até os santos no Paraíso assustaram o leitor com barbas de tamanho sobrenatural. Quem me dera reaver agora esse livro feio, desaparecido junto com Robinson e Gulliver no naufrágio e esquecimento da infância!

Desaparecido aquele livro, surgiu outro Dante, o das edições para o uso no ensino secundário, inexpurgado e sem ilustrações. E neste exemplar um estudante que já tinha lido Flaubert e Zola, estava estupefato por reencontrar num poeta do século XIV o mais sugestivo realismo poético: o murmurar das águas frias do Adige e o “aere bruno” que antecipa as correspondances de Baudelaire, e a primeira metáfora de toda a literatura universal: tirada do trabalho industrial no arsenal dos venezianos. Dante foi realista; e o exercício de imaginação do jovem Galileu, calculando os espaços do Inferno, foi boa preparação para calcular a velocidade dos corpos na queda e a distância da lua. Não somente o Inferno de Dante é realidade. Também seu Paraíso é algo como uma science-fiction medieval, apenas mais perto da astronomia ptolemaica, então vigente, do que as fantasias da science-fiction de hoje que ignora soberanamente a astronomia.

Quem diz realismo, também diz humorismo. Nesse Dante, com sua ira contra as injustiças terrestres, havia algo do gran dispitto do seu Farinata e uma simpatia propriamente humorística para com os diabos aos quais inventou nomes tão pitorescos: Malacoda e Scarmiglione, Cagnazzo e Barbariccia, Graffiacane, Rubicante e Farfarello. Parecem os servidores, meio humorísticos e meio sinistros, do Castelo de Kafka, desse Castelo cujo dono tem alguma semelhança com o da città di Dite. Também poderiam ser os nomes de malandros num racconto romano de Moraria. Mas esse realismo de Dante, contemporâneo dos acontecimentos trágicos e sangrentos da Itália de então, só se me tornou vivo nas ruas de Florença.

Numa das paredes laterais da catedral de Florença existe um afresco, não é de alta qualidade artística e o pintor, Domenico di Michelino, não deixou nome imortal. Mas imortal é o tema do quadro: à direita, a Cidade de Florença, circunvalada de seus muros medievais dentro dos quais se reconhecem as silhuetas características da cúpula de Brunelleschi e do Palazzo Vecchio; à esquerda, embaixo, o abismo aberto do Inferno; no alto, as esferas do céu; e no meio, o altíssimo Poeta, com seu livro aberto na mão, olhando para sua cidade e apontando-lhe com a outra mão a porta do Inferno. É um admirável resumo pictórico da Comédia e de sua significação, e não sei por que os guias, em Florença, não mostram esse quadro, antes de tudo, ao turista desejoso de compreender algo da incomparável grandeza dessa cidade, em vez de persegui-lo por toda parte com seus alto-falantes idiotas, chamando very nicea Noite de Miguel Ângelo e invaluable os quadros do humilde Fra Angélico. Só o barulho infernal que fazem lembra o Inferno.

Muitas vezes me demorei na quase vazia catedral em que Savonarola tinha lançado, do púlpito, suas imprecações contra a lascívia do Decamerone e das artes venais, e, contemplando aquele quadro, eu acreditava ver o poeta abrir a boca e lançar a sua terrível maldição contra a volubilidade política da Florença do seu tempo, as Constituições violadas e derrubadas por bandos armados, as revoltas e os golpes, a moneta mutata, isto é, as inflações que tornaram ao povo insuportável a vida, as convulsões de doença da vida pública da cidade: as leis tão sutis que, feitas em outubro, já não servem em novembro.

“Del tempo che rimembre”, desde os tempos de que Dante se lembra, sua cidade foi como uma enferma que não conseguiu encontrar o repouso em sua cama: “Quella inferma / che non può trovar posa in su le piume / ma con dar volta suo dolore scherma”.

“… del tempo che rimembre!” O Trecento, a época de Dante, é uma remota recordação histórica, mas os versos de Dante sobre o seu tempo e contra o seu tempo são de uma perfeita e terrível atualidade. Quando eu os recordei no silêncio da catedral de Florença, já tinha recomeçado lá fora a luta fratricida, apenas os Guelfos e os Gibelinos do século XX ostentavam outros rótulos e tinham outras cores suas bandeiras. Foram os anos de 1930: violação de Constituições, os golpes, convulsões e, enfim, milhares e milhares foram atingidos pelo mesmo destino de Dante e de tantos outros italianos nobres: o exílio.

São recordações que, ao ler o poema de Dante, ainda hoje me comovem: pois também experimentei o exílio, e no meio do caminho da vida encontrei-me numa floresta escura da qual nenhuma saída parecia possível: “Nel mezzo del cammin di nostra vida / mi ritrovai per una selva oscura / chi la diritta via era smarrita”.

No Evangelho, Jesus aconselha seus discípulos a rezar “para que vossa fuga não aconteça no inverno”. Pois bem, a minha fuga aconteceu no inverno, e tão impiedosa foi a perseguição que nem sequer consegui levar comigo o meu Dante, o volume tão usado que já estava em pedaços a encadernação barata. Mas já não precisava do livro pra recordar certos versos gravados para sempre na memória; como este que tantas vezes, durante a vida toda, me fortaleceu contra o tédio das controvérsias e contra a maledicência dos covardes e contra elogios e hostilidades efêmeras: “Non ragioniam di lor, ma guarda e passa”. E entre esses versos sempre recordados também me lembrei daqueles que descrevem a sorte do exilado, o sabor amargo do pão no estrangeiro e a dura vergonha de bater, em vão, a portas fechadas e descer as escadas, subidas com o último resto de esperança, assim como a Dante foi profetizado o caminho do calvário de fuoruscito: “Tu proverai sì come sa di sale / lo pane altrui, e come è duro calle / lo scendere e l’salir per l’altrui scale”.

São águas passadas. Achei a minha Verona, a nova pátria, no Brasil. Não era possível, então, imaginar que um dia eu iria ler em português do Brasil aqueles versos: “E quindi uscimmo a riveder le stelle”. São motivos pessoais que me levam a agradecer a Cristiano Martins o livro que ele nos dá agora. Mas esses motivos não são meramente pessoais. Tenho para mim que sem experiências daquelas ficaria incompleta a experiência de Dante. Só passando pelas malebolge, as ruas sinistras deste mundo, sem perder a vista para as stelle, se tem o Dante inteiro: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Só então se compreende o sentido pleno da Divina comédia, autobiografia espiritual do poeta e biografia permanente da existência humana que é preciso decifrar atrás dos “versos estranhos”: “O voi ch’avete l’intelletti sani, / mirate la dottrina che s’asconde / sotto ’l velame de li versi strani”.

Otto Maria Carpeaux, ‘Dante, biógrafo permanente da existência humana’, Livro, suplemento do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 out. 1976, p. 7. — Reescrito e editado como ‘Meu Dante’, em Reflexo e realidade (Rio de Janeiro, Fontana, 1978), p. 37ss.

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