quinta-feira, 22 de abril de 2010
A HISTÓRIA DOS AMANTES 1
A HISTÓRIA DOS AMANTES
Rogel Samuel
Nós nos despedimos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - e de lá partimos para Cabo Frio onde um barco alugado nos esperava no cais do canal - entretanto choveu persistentemente durante quase toda aquela nossa viagem de lua de mel ("onda de mel", contava Val; "luz de mel", corrigia eu) e Val relatava que naquelas vagas pelo resto de nossas vidas ouviríamos aquela música da ventania nos nossos ouvidos, a chuva, e nos afogaríamos naqueles golfões do sentimento mole e maciço do fundo do mar de nós mesmos, porque era aquela sensação de claridade no meio daquela chuva no espaço do mar, naquele espaço verde por onde o barco penetrava como num labirinto selvagem, e onde nos introduzíamos num horizonte desconhecido e invisível - Val nua no convés: e assim que ainda a vejo hoje cantar aquela canção de amor daqueles heróicos tempos de mar e de vendaVals roqueiros que eu ouvia - tentando avançar com cautela por esta pormenorizada narração - e para tornar o rumo de mais seguro porto devo dizer que naquela época a situação nos colocava no pátio do paraíso que eu não divisava bem, um furo, algo significante e que tem força decisiva: porque aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória de mim mesmo, a brisa corrente que nos trazia de volta como se lancha fosse um veleiro e nos conduzisse pelo mar - ficamos no hotel, o colo cheio dos jornais sobre o golpe, a beber um coquetel de frutas sobre as notícias, as notícias cada vez mais terríveis, mas os olhos de Val recolhiam os reflexos daquele mar com sua superioridade lunar e esmeralda, ela mais parecia uma Marilyn Monroe morena naquele tempo, dourada, a vida toda simulava ali estar em sua homenagem - e no dia seguinte de lá partimos para Búzios, a camisa branca, larga feito uma bandeira de sol luminosa, meio ávida, adejava, o tórax à mostra sobre a curva da anca suave, os homens se surpreendiam de vê-la tão loura, tão artificialmente loura e límpida que nem parecia que comigo estivera ressonando levíssima no seu leitoso perfume depois de se debater no gozo selvagem dos seus sonhos nos meus ombros durante a noite anterior: o veículo saía soprado pela mágica do vento e nós íamos para a casa de Búzios emprestada de um amigo meu - passamos velozes pela ponte do canal (Val dirigia) e ao longo da estrada litorânea se ouvia a areia da estrada de terra batida na fuselagem enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.
À tarde entramos naquele mar, completamente despidos como se vestíssemos um verde vivo e com alegria dei uns tiros com o revólver de Val que estava no porta-luvas, herança do pai dela, estourando uma garrafa de cerveja - mas logo tivemos de nos vestir, pois vinha chegando um garoto, quase criança, com um cão solto que corria.
Foi somente quando me deitei na areia que os vi: largos, na espuma da rebentação branca, o sol se rebelando nas gaivotas de vôo rasante como aviões em combate de bandos ruidosos: eram três jovens, e estavam na crista das ondas do horizonte provável.
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