quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A PANTERA DOIS


A PANTERA (2)

ROGEL SAMUEL

Eu não sei há quantos anos estou nesta casa. Chovia dentro, Jara a reforçou. Uma árvore agora a cobre, como numa rede de ramagem ampla. À noite, entretanto, sentimo-nos ameaçados. Os animais noturnos nos espiam. O cântico da mãe da lua nos aterroriza. É o urutau, que canta três oitavas lamentosas. Mas eu consigo dormir, na minha rede bem alta. O silêncio é amplo negro enorme. As estrelas são vivas. Felizmente não há mosquitos nesse rio. Mas um frio intenso vem dentro do calor da noite. Ventos sinistros vêm do alto dos Andes. O vento vem sobre o leito do rio, sob as estrelas. 
Esta noite, experimentamos novamente a sinistra visita noturna da mesma pantera negra.  Sinto que dormimos sobre assombrosas minas do Eldorado. Ouço gritos noturnos. Miracã-uera,  o cemitério. Sinto que moro em cima de um grande cemitério. Mas o Eldorado nos assusta, no escuro e no miúdo. Por aqui, a floresta é um grande mapa. Nunca ninguém, nenhum ser humano, nenhum civilizado pisou aqui. Jara não fala, é uma companhia de nada, silenciosa. Não sei de onde veio, nem quem é. Às vezes, temo que ela pode matar-me, enquanto durmo. Às vezes fazemos amor. Ela compreende o meu estado, a minha depressão. É quando acende uma espécie de cachimbo de ipadu, uma espécie de coca, e sopra na minha face. Me obriga a mascar, pondo na minha boca algumas folhas amargas, misturadas com a cinza de seu cachimbo. São cinzas da palmeira motaçu, e um cipó amargo, que chama de Tchamaru. Essa mistura me revigora, e eu sinto uma embriaguez deleitosa, e às vezes adormeço em seus braços.
- Ipadu! Ipadu! – diz ela. Ipadu, motaçu, Tchamaru!
E eu me reconheço, me recupero. 
Mas ela é a desconhecida. Como aqui não há ninguém mais, nenhuma censura, aqui eu a amo. E ela canta uma sua canção selvagem. Canção de guerra, de morte. Ela pressente o perigo. O incompreensível perigo.

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