terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Proust e os signos





Proust e os signos

GILLES DELEUZE

2.ed


Forense Universitária – RJ
 2003


http://historiadosamantes.blogspot.com.br/search/label/PROUST%20E%20OS%20SIGNOS



Capítulo I
Os Tipos de Signos

Em que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?
Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tam­pouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Re­cherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recor­dação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passa­do; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É certo que a memória intervém como um meio da bus­ca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado inter­vém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase mu­sical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembran­ça, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação material".l
Não se trata de uma exposição da memória involuntária, mas do relato de um aprendizado – mais precisamente, do aprendizado de um homem de letras.2 O caminho de Méséglise e o caminho de Guermantes são muito menos fontes de lem­brança do que matérias-primas, linhas do aprendizado. São os dois caminhos de uma "formação". Proust freqüentemente aborda situações como esta: em dado momento o herói não co­nhece ainda determinado fato que virá a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vivia. Daí o movi­mento de decepções e revelações que dá ritmo a toda a Recher­che. Pode-se evocar o platonismo de Proust – aprender é ainda relembrar; mas, por mais importante que seja o seu papel, a me­mória só intervém como o meio de um aprendizado que a ultra­passa tanto por seus objetivos quanto por seus princípios. A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado.
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abs­trato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um obje­to, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sen­sível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite sig­nos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. A obra de Proust é baseada não na exposição da me­mória, mas no aprendizado dos signos.
Dos signos ela extrai sua unidade e seu surpreendente plu­ralismo. A palavra "signo" é uma das palavras mais freqüentes da Recherche, principalmente na sistematização final, que cons­titui o Tempo redescoberto. A Recherche se apresenta como a exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos. Os signos são especí­ficos e constituem a matéria desse ou daquele mundo. Os perso­nagens secundários já o demonstram: Norpois e o código diplomático, Saint-Loup e os signos estratégicos, Cottard e os sintomas médicos. Pode-se ser muito hábil em decifrar os signos de uma especialidade, mas continuar idiota em tudo o mais, como o caso de Cottard, grande clínico. Além disso, num domí­nio comum, os mundos se fecham: os signos dos Verdurin não funcionam entre os Guermantes; inversamente, o estilo de Swann ou os hieróglifos de Charlus também não funcionam entre os Verdurin. A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, maté­rias; não se descobre nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e interpretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifra­dos do mesmo modo, não mantêm com o seu sentido uma rela­ção idêntica. Que os signos formam ao mesmo tempo a unidade e a pluralidade da Recherche, esta é a hipótese que devemos ve­rificar ao considerarmos os mundos de que o herói participa di­retamente.,
O primeiro mundo da Recherche é o da mundanidade. Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão reduzidos e em tão grande velocidade. Na verdade, estes signos não são homogêneos. Em um mesmo momento eles se diferen­ciam, não somente segundo as classes, mas segundo "famílias espirituais" ainda mais profundas. De um momento para outro eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros sig­nos. Assim, a tarefa do aprendiz é compreender por que alguém é "recebido" em determinado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos e quem são seus le­gisladores e seus papas. Na obra de Proust, Charlus é o mais pro­digioso emissor de signos, pelo seu poder mundano, seu orgulho, seu senso teatral, seu rosto e sua voz. Mas Charlus, movido pelo amor, não é nada nos salões dos Verdurin; mesmo no seu próprio mundo, acabará por não ser mais nada quando as leis implícitas tiverem mudado. Qual é, então, a unidade dos signos mundanos? Um cumprimento do duque de Guermantes deve ser interpretado e, neste caso, os riscos de erro são tão grandes quanto num diagnóstico. O mesmo acontece com uma simples mímica da Sra. Verdurin.
O signo mundano surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que usurpou o su­posto valor de seu sentido. Por esta razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se pensa, não se ag, mas emitem-se signos. Nada engraçado é dito em casa da Sra. Verdurin e esta não ri, mas Cottard faz sinal de que está di­zendo alguma coisa engraçada, a Sra. Verdurin faz sinal de que ri e este signo é tão perfeitamente emitido que o Sr. Verdurin, para não parecer inferior, procura, por sua vez, uma mímica apropriada. A Sra. de Germantes dá, muitas vezes, mostras de um coração duro e de pouca inteligência, mas emitirá sempre signos encantadores. Ela nada faz por seus amigos, não pensa como eles, emite-lhes signos. O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a "substitui", pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensamento e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e sua vacuida­de, embora não se possa concluir que esses signos sejam despre­zíveis. O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, como que um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, expri­mindo sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los.3
3. CG 426-431.
O segundo círculo é o do amor. O encontro Charlus-Jupien leva o leitor a assistir à mais prodigiosa troca de signos. Apaixo­nar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É torna-se sensível a esses signos, aprendê-los  (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem en­volvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas es­tão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las  refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desco­nhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu sig­nificar? Do seio de que universo me distinguia ela?"4

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