sábado, 8 de abril de 2017

ESSES PRAZERES





ESSES PRAZERES:
Rogel Samuel
Deixe contar. Ou cantar. Um dia eu vinha por aquela rua quando o
encontrei. No chão. Era um raro exemplar do livro de Cabral.
Arrependo-me de ter dado aquele volume.
("Terceira feira", 1961). Os antigos alfarrábios de poesia são como
vinho velho.
Só o álcool dessa garrafa
pode o vinagre e o ferrão
para a alma toda murcha
na pose fetal do não
(Diz Cabral). Lembro-me de Ademir da Guia, com seu jogo. Lento. O
lento jogo do tempo. O chumbo, o peso, a câmara lenta. (Diz Cabral).
Outro dia, na Net: Ademir da Guia, jogando - Sim, porque:
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso)
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.
(Diz Cabral). Cada palavra tem um peso e densidade do chumbo, do
dentro:
Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.
João Cabral só diz aquelas "mesmas palavras", a saber, a poesia e
suas guias. Ademir joga como se um escafandro vestisse. A lerdeza do
homem submarino, a água da ambiência daquela gente “de uma Caatinga
 entre secas, entre datas de seca e seca entre datas”. O simbolismo da=
água descreve o mundo, em que o poeta se revê, graus de
materialidade, de revelação.
Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Ademir da Guia, para ele, ser feito de água dos alagados, feito nas
águas dos alagados, gente "de uma Caatinga", que executa seu
jogo "com água". Langorosa:
A gente de uma Caatinga entre secas,
entre datas de seca e seca entre datas,
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água.
Talvez as gotas úmidas dessa música
que a gente dali faz chover de violas,
umedeçam, e senão com a água da água,
com a convivência da água, langorosa.
("Fazer o seco, fazer o úmido").
O jogo de Ademir da Guia, "bem poderia executar-se com água". Mas a
bola chumbo. Orbe. Maciço.
A idéia da água vai na alma encharcada da gente. Qualquer que seja o
jogo, Cabral só fala do que fala:
E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
("A lição de poesia")
Ou seja: "Vivo com certas palavras / abelhas domésticas.":
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
..................................................
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens.
("Graciliano Ramos")
Impossível separar: o futebol, a poesia, o chumbo, que "ulcera a
boca". Na verticalidade, na substância da água:
Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,
água em si mesma, parada
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.
Cabral, em realidade, só fala da morte:
Talvez porque qualquer água
fique mais densa se morta
................................................
Não há dúvida, a água morta
se torna muito mais densa.
Como se vê, o indivíduo é a soma das impressões singulares do mundo.
É perto da água e de suas antigas imagens que o sujeito compreende
que o sonho é um universo em emanação, um sopro que sai das coisas
(Bachelard).

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