À TARDE RELEIO BACELLAR
ROGEL SAMUEL
A tarde chuvosa. Tarde escura, fria. Lembro-me, leio
um soneto de Bacellar. ”Porta para o quintal”:
Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...
(Frauta de
barro)
O que se pode ver, neste poema?
O primeiro verso pede sol: “Bem haja o sol e a
brisa neste canto!“
“Bem haja”, aqui, significaria “seria bom”.
O poeta está preso, preso em casa pela chuva (como
morava mal nosso poeta, num humilde quarto alugado no centro da cidade, atrás
do Colégio Estadual, onde estudei). Chove muito, o poeta não sai. O quintal é
imaginário. Quintal da infância. Quintal do passado. O “embalo” da cadeira
marca a cadência das ondas do embalo do tempo, das ondas do tempo, do tempo
passado, do tempo perdido. Quebranto da realidade, depressão, solidão (o poeta
era solteiro, solitário), o morno quadro do passado do bairró dos Mocós, onde
passou a infância.
O embalo bambo, frouxo, indeciso, vacilante de quebranto que dedilha descortina sua
maestria poética: em... ba... bam.. bo... bran... – a cadeira macia do tempo, a
cadeira elétrica de quem vive, a cadeira de quem sentado espera o sonho a morte
o porvir.
Mas os sanhaçus brincam, pulam, cantam. O sanhaçus
existem. Cor de amianto, cor do saputi. A árvore da vida, árvore mágica. Árvore
mágica da vida. Onde as aranhas tecem o fio do destino como parcas. Da vida.
Trapeira janela sobre o telhado. Fios de prata,
fios do destino. Da vida, da morte.
Depois vem o episódio das telhas.
Luiz Bacellar era um poeta de Manaus, e esta era a
cidade das telhas, das chuvas, das soleiras.
Mas Bacellar morreu, Manaus não é mais a mesma.
Sem Bacellar a cidade morre, apaga, muda.
Ele era o profeta da sua cidade. Seu grande cantor,
seu artista máximo. Ninguém soube cantar aquela cidade como ele.
As telhas, velhas comadres, vão conversando. Coisas
de calhas de lata, coisas de chuva. Só Bacellar deu alma àquelas velhas casas.
Sem ele, as casas perderam suas almas, suas significações. Depois da morte de
minha mãe e da morte de Bacellar não mais voltei a Manaus. Pouca coisa sobrou
ali, além dos beirais das casas que sobraram. O mundo morre, as casas morrem,
morrem as cidades. E os bairros. Por exemplo, para mim, Copacabana morreu.
Alguma coisa desapareceu ali. Não sei o que foi.
Mas o poeta está nu, suas roupas ficaram no
passado, nos varais do passado, nos navios de vela dos varais.
Oh, sim, preciso urgentemente reler Luiz
Bacellar... A Bíblia desse nosso canto. “Frauta de barro”, cujo prefácio da 6ª
edição escrevi.
Já se vão tantos anos...
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