sábado, 24 de março de 2018

PEDRO CALMON

PEDRO CALMON








PEDRO CALMON

Rogel Samuel

No salão da Biblioteca da Faculdade de Letras. Há mesas espalhadas, algumas poltronas. Eu prefiro as mesas. O ambiente não é completamente silencioso. De um lado, o escritório da Polícia Federal, com quem partilhamos o prédio. Do outro, algumas salas de aulas, no primeiro andar. Os "tiras" não olham para nós (era antes da ditadura militar), mas nossos colegas conversam alto. Até mesmo Ivete, diretora da Biblioteca, tagarela. Mas sentíamo-nos em casa. Ali se passaram fatos dignos de nota.
Estava tentando concentrar-me na leitura quando pressenti que alguém me observava, por trás, de pé:
- Menino - disse-me a voz aguda, aflautada, afrancesada daquele senhor bem vestido e empinado. "Menino, o que você está lendo?"
Era o Reitor Pedro Calmon. Eu era menino (tinha uns 19 anos, cara de criança, franzino, magro e assustado). Me levantei. Depois de alguma conversa, ordenou: "Venha comigo". Perguntou de onde eu era, se vivia sozinho no Rio de Janeiro, que viesse almoçar em sua casa, onde encontraria melhor alimentação. Deu-me cartão de visitas (que nunca usei). Indagou se eu sentia falta de meus pais, que recorresse a ele no caso de necessidade ou doença. "Tenha-me como seu pai", me disse.
Levou-me até a Academia de Letras, onde ia reunir-se. Lá, mostrou-me a Biblioteca, apresentou-me. "É uma Biblioteca de alta indagação", falou.
Durante a greve dos estudantes, Pedro Calmon nos recebeu no seu gabinete. Pequeno demais para cabermos todos lá. Sala repleta de obras de arte, caríssimas, pessoais, de sua propriedade. Na parede, um gigantesco painel de espelhos. Dizem que quando saiu da Reitoria, deixou várias obras. Valiosíssimas. Ele era assim, generoso e rico. Rico sob todos os aspectos, não apenas material. Grande advogado (Direito Naval, me parece), escritor, historiador, orador. Tudo nele era magnífico. Como o título. Tomava o automóvel da reitoria apenas para atravessar a rua. Ia almoçar no Iate Clube todos os dias, em frente. Nunca entrava numa loja, para fazer compras: o alfaiate, ou vendedor, vinham à sua casa. Dizem que toda força vinha da esposa, D. Hermínia, que conheci, pois era seu vizinho na Rua Santa Clara, em Copacabana. "Pedro, você tem escrito? Pedro, você deve ir. Pedro, para quem você está telefonando? Pedro, e seu novo livro, como está?" Ela cobrava, puxava o marido. Conseguiu que fosse Ministro, Catedrático de Direito, Reitor. Conseguiu que representassem o Brasil na coroação da Rainha Elizabeth. Já muito idoso, obrigou-o a participar de congresso na Europa. Ele era membro da maioria das grandes academias européias, recebera a maioria das comendas e condecorações. Sua "História do Brasil" tem 7 volumes. Respeitava-o a esquerda, que o citava. Mas ele era assim: aparecia, a pé, sem segurança, sozinho, no meio de uma passeata, no centro de uma assembléia de alunos. Circulava entre nós. E, apesar de tudo, sentíamos que era um dos nossos, que estava do nosso lado. Admitia críticas até grosseiras de frente, a que reagia com firmeza, mas nunca revelava ódio. Resistiu, o quanto pôde, ao cerco. Proibiu o Exército de entrar na Universidade, pondo-se no portão, com a famosa frase: "Aqui só se entra com vestibular!"
Seu vocabulário, mesmo no cotidiano, era requintado, especial, encantador, sublime. Ele encarnava a figura perfeita do "homem de letras". Na elegância do vestir, do andar, na dignidade gestual, no sorriso, no aristocrático porém simpático olhar. Impulsivo, arrebatado, emocional. Um dia, vindo em seu automóvel (sempre com chofer) na Cinelândia, a caminho do Instituto Histórico, viu um policial espancando um garoto.
"Pare o carro!" - grita para o chofer - e precipitou-se para o guarda aos berros: "Não faça isso! Não faça isso! Ele é apenas uma criança!"
Eu vi (claramente visto, e não creio que a vista me enganava, ali estava Tônia Carreiro e outros) durante uma das passeatas estudantis, na Avenida Rio Branco, sob estrondosas vaias, Pedro Calmon tentando fazer parar a passeata, e em prantos, chorando verdadeiramente, gritava: "Parem! Não provoquem! Não vamos radicalizar a crise". Tinha ele razão?
Quando morreu, nenhum jornal noticiou. Ou melhor, só o obituário. Eu senti a dor. Senti que morria algo ali, algo de nossa geração, algo meu. Era reacionário? Talvez até mais do que isto: ele era um aristocrata. Mas ninguém mais cortês, mais afável, mais bondoso, mais interessado nos outros. No bem-estar dos outros. Os presidentes militares jantavam em sua casa, ele era a própria elite em pessoa. Mas era uma pessoa boa. Que importa mais?

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