Danae e a chuva de oiro
Genesino Braga
Era uma vez
linda princesa...
A lenda é meiga, ingênua e doce...
...e meiga ingênua
e doce era melíflua Danae, filha única de Acrísiø, Rei de Argos, vivendo em
sonhos a existência que os deuses bons lhe conferiam.
Num promontório sobre
o Inacos, - o rio das fábulas dormidas — a virgem hauria os bens da vida, tinha
a seus pés os rapsodos, tinha a suas mãos fadas benignas... Nobre e sensível
castelã, de suas janelas ogivais olhava os pássaros alados, ouvia cítaras
plangentes, ouvia épicos heróicos, que os ventos sísmicos das Cícladas traziam,
em músicas vibráteis, a seus anímicos cismares...
Danae sorria e era
feliz...
Seu negro olhar de noite flébil pousava brando nas paisagens que os
nobres muros do castelo rispidamente circundavam. Seus lábios doces só se abriam
a balbúcies pueris, Vênus de corpo escultural, sangue sem apelos nem desejos,
não tinha ardor no coração. Não tinha Príncipe Encantado, não tinha anseios de
noivado, não tinha dor, não tinha amor...
Danae era um sopro de blandície...
Danae era a paz da Criação...
Um dia, oráculo ardiloso, —
prossegue o lúcido raconto — ao Rei prediz: morte inopina, às mãos de um neto,
ele teria, em dia infausto do porvir.
O Rei medita e pensa em Danae, a linda
e fúlgire princesa, a virgem e casta flor do Reino, a filha amada...
Mas, -
rei é rei e a vida augusta, a realeza e o trono invicto devem ser logo
preservados...
Toda de bronze, exposta aos ventos, ereta, altíssima,
imponente, a torre-cárcere se ergueu no promontório sobre o golfo de ondas
mansas, fugidias... Mandara o Rei edificá-la para encofrar a castidade da meiga
e cândida princesa... Bem alto, em cela luxuosa, entre janelas gradeadas, no
extremo andar da torre heril, a moça penitenciava a inibição de amor provável e
de pecado original...
O velho eunuco-carcereiro trazia-lhe flores e frugais,
contava lendas melancólicas de rapsodos passionais...
Danae, em seus
pérfidos desígnios, - flor de inocência e de indulgência! – cumpria sem mágoas
seu fadário...
Danae, em silêncio, meditava, fitava o muito azul do céu,
errando em sonhos e quimeras, pedindo aos deuses proteção... Recorda Zeus em
seus noivados, pensa em Semele fecundada, pensa em
Latona, mãe de Apolo,
pensa Diana, Ceres, Io, em Mnemosina, em Alemena...
Virá do Olimpo a
redenção!...
Eis que, em noite silenciosa, de ventos calmos, sem fragor,
de pulcra ronda sideral, estranha chuva a torre envolve...
E chuva de oiro,
luzidia, de fios aurifulgentes, joiando o âmago da noite, doirando o céu,
doirando o ar...
Os fios luzentes, insolentes, penetram as grades da prisão
e caem em volúpia sobre a virgem noite, explêndida, a dormir...
Compreensão... Revelação...
É Zeus, na sua metamorfose,
divinamente enamorado, que, em seu poder de encantação, em oiro todo
transformado, a bela moça enlaça e ameiga, em posse olímpica e sensual!...
Danae é o abandono sensorial, em seu estado de doçura, entregue ao ímpeto do
deus, na graça íntima do amor...
Consumação... Concepção...
...e a lenda
fúlgure prossegue: nasce Perceu e o Rei, irado, Danae e o filho atira ao mar ...
As ondas levam os renegados a terras outras do sem—fim, aonde se salvam e
são felizes e vivem muito até que, um dia, os vaticínios do advinho se cumpram
em fórmulas fatais...
A história mítica de Danae define símbolos morais.
Transportam as ânsia dos milênios, esquemam lúgubres desígnios rememorados na
consciência do fabulário emocional.
Danae reclusa e a chuva de oiro...
Danae passiva em doce oferenda de amor aos deuses vontadosos, para que,
assim, de suas entranhas, surjam outros deuses protetores, ou nasçam ídolos e
heróis.
Seiva do céu é a chuva de oiro em solo virgem, fecumdante,
gerando safras e plantéis...
Pluviável bênção aurifulgente, que acorda os
gênios e inspira os poetas, na enunciação da voz de Deus...
A chuva de oiro
é a emanação da graça lírica do amor, essenciada de poesia, na ingênua lenda
original...
Danae é o esplendor das germinais, nas férteis dádivas do
amor, a reflorir pelas idades em mudas ânsias sublimadas nas espirais dos sonhos
vãos.
Dai chuvas de oiro a Danaes outras, na torre altíssima dos sonhos,
- e eis triunfal o ardil dos homens na trama poética das lendas, que se renovam
pelos tempos e multiplicam-se no mundo, em tempestades hibernais de trovas,
crônicas e cânticos de amor, de sonho e poesia...
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