XXV
PEDRA DO SAL
HUMBERTO DE CAMPOS, MEMÓRIAS
COM a presença dos meus tios maternos ainda em Parnaíba, em 1895, fomos passar alguns meses na Pedra do Sal, ponto desabrigado e rochoso do estreito litoral piauiense em que fica situado o farol desse nome, e que figura, nas cartas marítimas, sob o nome de Farol da Amarração. Sobre uma pedra, que desafia o mar, levantava-se a torre de ferro, cuja ascensão era feita por uma escada interior, em espiral. Sobre outra pedra, coberta de telha, e caiada, a casa do faroleiro, cuja cozinha era lavada, às vezes, pelas ondas mais fortes. Em frente ao farol, o oceano largo e vário, raramente riscado por um navio costeiro, que se arrastava pela superfície verde como uma lagarta escura e insignificante sobre uma folha de bananeira. À direita e à esquerda as linhas de rochedos altos, que orlavam a praia arenosa. E, para trás de tudo isso, as dunas alvas, ligeiramente vestidas de cajueiros, e em cujas depressões se agasalhavam pequenas casas de palha, humildes habitações de pescadores.
Chegamos aí ao anoitecer, a cavalo. Horas depois chegavam os cargueiros com a bagagem. Muitas famílias de Parnaíba tinham ido veranear ali naquele ano, de modo que nos foi impossível conseguir uma casa menos desconfortável. Aque meus tios haviam alugado devia ser coberta, ainda, de palmas de carnaúba, no dia seguinte: de modo que tivemos de nos contentar, por aquela noite, com uma esburacada em torno, a poucos metros do mar. Para podermos dormir, tivemos de amarrar lençóis nos grandes rombos abertos na palha, pelos quais entrava, assobiando como garotos e cortando como navalhas, o vento salitroso e inclemente. Obarulho do oceano, rugindo ao largo e estourando nas pedras, era, mesmo, tão profundo e alto, que se tornava necessário gritar para ser ouvido, a dois metros de distância.
Lembro-me, entretanto, que, nessa mesma noite, minha mãe nos tomou pela mão, a minha irmã e a mim, e saiu a passear pela praia. O oceano rolava e guinava, na sombra, atirando-nos ao rosto seu hálito úmido de gigante bêbado. E o vento gritava, gemia, repuxava-nos para trás as roupas e os cabelos, como se nos quisesse arrastar para longe. Minha mãe caminhava e cantava. Ela que sempre cantara baixinho, levantava, agora, a voz acima das vozes do mar e do vento. Canto de dor e de saudade. Grito de gaivota viúva pedindo ao oceano mergulhado na noite que lhe restitua o companheiro sepultado nas ondas. Lamento de mulher moça e solitária no mundo; gemido de mãe aflita, de andorinha do mar que se vê sozinha, e fraca, e desamparada, numa anfractuosidade de rochedo, cobrindo com as asas frágeis duas avezitas implumes. Vencendo o vento e o mar, a sua voz me chega ao ouvido, em dois versos que nele ficaram em toda a pureza de sua toada nostálgica e dolorida:
Com o sangue das minhas veias
Sete cartas te escrevi...
No dia seguinte, mudávamos para a casa que nos estava destinada. Era um albergue novo, de chão de barro batido, coberto e cercado de palha de carnaúba. Ficava longe do farol, mas dispunha, embora a alguma distância, de praia melhor para banho. Nessa praia, inteiramente aberta, existiam cavaletes mais altos do que um homem, os quais eram sumariamente cobertos de palha e serviam de barraca em que as senhoras mudavam a roupa. O vento era, porém, aí, tão rijo e permanente, que virava e revirava essas pequenas construções, fazendo-se mister ir buscá-las cada dia a grande distância, não obstante o seu volume e o seu peso. E esse vento, que arrastava barracas e assobiava e corria à noite como um louco em liberdade, era o mesmo que me aplicava nas pernas violentas surras de areia, fazendo-me invejar as mulheres de saia longa e os homens de calças compridas.
Situada na última trincheira de dunas, mais perto da várzea que se estendia para o interior do que do mar, a nossa casa possuía nos fundos, a três dezenas de metros, uma pequena lagoa em que viviam alguns peixes miúdos, característicos da água doce e parada. Armado de um caniço que trazia na ponta da linha de costura um anzol improvisado com um alfinete torcido, eu ia, todos os dias, a essa pescaria, voltando com alguns peixes achatados e negros a que davam, ali, a denominação de cará. Certo dia, porém, minha mãe me recomendou que não fosse à lagoa. Era Sexta-Feira Santa, dia consagrado ao jejum e à oração. Dia nublado, escuro, triste, como se o céu inteiro se tivesse coberto de um véu polvilhado de cinza. Uma das minhas virtudes era, no entanto, a desobediência. Ao ver que a família se achava entregue aos cuidados caseiros, tomei o caniço e corri para a lagoa. Alguns peixes beliscaram, mas não vieram. Os peixes sabem, parece, quando os meninos estão pescando sem a permissão dos pais, e não lhes dão o prazer de engolir a isca. Eu insisti, todavia. Se Deus não quisesse que o homem apanhasse o peixe não teria consentido que ele inventasse o anzol. Em determinado momento, porém, senti que vinha alguma cousa volumosa e pesada. Puxei a linha, aos poucos, desconfiado, e com cautela. De repente, emerge a presa. Olho e esfrio. Vinha no anzol uma botina velha!
É desnecessário dizer que abandonei botina, anzol, caniço, e até o meu chapéu de carnaúba, à margem da lagoa, e que desandei na carreira, apavorado, rumo de casa. Chamei minha mãe à parte, e contei-lhe o ocorrido, os olhos fora das órbitas. E ela:
– Eu não te disse? É castigo... Eenchendo-me de terror:
– Quem pesca em lagoa Sexta-Feira Santa, o anzol só apanha sapato de defunto...
Situada perto da várzea, nossa casa era uma das primeiras do arraial, à entrada deste, e o caminho natural de quem vinha de Parnaíba. As pessoas que procediam da cidade, e que eram portadores de encomendas –- café, açúcar, cereais ou carne, pois que aí não havia nenhuma casa de comércio –, chegavam à Pedra do Sal já noite fechada. Mas a aproximação desses emissários, que haviam partido pela madrugada a vender o produto da sua pescaria, era anunciada de longe pelos téu-téus, o indiscreto quero-quero das coxilhas do Sul, o qual é, no norte, o guarda infatigável das várzeas adormecidas. Ao perceberem, com os seus olhos que varam a sombra, vulto de cavaleiro ou de peão, essas aves erguem em bando o seu voo, em gritaria assustada. E com uma precisão tal que, pelo grito delas, se sabia, em casa, em que várzea e a que distância vinha o viajante.
A maior curiosidade do lugarejo marítimo eram, entretanto, os seus rochedos. Havia pedras enormes, de feitios bizarros, de dez e mais metros de altura. Algumas constituíam, mesmo, a reprodução da fisionomia humana. E eu ainda me lembro de uma, grande e alta como uma casa, que possuía dois olhos, e nariz, e a boca imensa, rota em uma das extremidades. A onda vinha de longe, e atirava-se à cara do monstro. Ele bebia-a; engolia-a; mas vomitava-a de novo com asco e com estrondo, repelindo o resto pelo rasgão de pedra, que a água cavara durante séculos.
Na Pedra do Sal, vivi cerca de três meses, dos meus nove anos, sem saber, sequer, se existia, com as suas largas folhas, o livro do Destino. Olhava o oceano durante o dia, e escutava, à noite, gritar assustadoramente os téu-téus da várzea. Eencontrei, também, ali, a síntese da minha atividade no mundo.
Que tenho eu feito, em verdade, na vida, senão pescar sapato de defunto!
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