sábado, 22 de outubro de 2011

Michelangelo

 

Maior autoridade em Michelangelo no Brasil e doutor em História da Arte, Luiz Marques organizou, em 1996, um colóquio internacional consagrado ao artista quando era curador chefe do Museu de Arte de São Paulo. Na ocasião, o Masp exibiu desenhos originais do artista, exaustivamente estudado por Marques, que dedicou 20 anos ao exame da biografia que Vasari escreveu sobre o gênio italiano. O resultado é uma obra densa publicada pela Editora da Unicamp, com tradução, introdução e comentários do professor, que concedeu a seguinte entrevista exclusiva ao Sabático.
Retrato de Michelangelo, por Jacopino del Conte (1510-1598)


A arte de Michelangelo, segundo seu livro, encerra um paradoxo, pois seria "seu tempo apreendido em um torso" e não se identificaria com o século 16 por ser uma arte do futuro. Por que ele é um personagem fora da história?

O paradoxo talvez seja mais aparente que real, pois uma arte ou um pensamento que representa (no sentido mais totalizante do termo) o seu tempo não pode se identificar com nenhum dos elementos ou correntes de que seu tempo se compõe. A complexidade só pode se exprimir, de fato, na unidade. No caso de Michelangelo e do século 16, isto significa duas coisas. A primeira é que sua arte recusa o que Vasari chama o "campo largo" da pintura, isto é, sua capacidade de elaborar um inventário do visível (a diversidade dos tipos humanos, o retrato, a gama toda de elementos que orna a paisagem urbana e a rural, a fauna, a flora, os céus, os efeitos efêmeros de atmosfera, etc.). A arte de Michelangelo é, ao contrário, a arte de uma coisa só: o nu humano e, no limite, o torso. Exprimindo admiravelmente seu caráter monárquico, Roberto Longhi diz da arte de Michelangelo que ela é "il mondo come torso", o mundo sob a espécie de um torso. Os adversários da supremacia de Michelangelo em seu século estavam talvez mais certos do que eles supunham ao afirmarem, como o faz Ludovico Dolce em 1557, que quem viu uma obra de Michelangelo viu todas. Longe de significar uniformidade (pense-se nas diferenças, por exemplo, entre suas três Pietà ou entre os afrescos da abóbada e os da parede do altar da Capela Sistina), esta 'reductio ad unum' é a condição de possibilidade para que a diversidade da arte do século 16 possa encontrar, para além do inventário, um ideal de si, uma própria figura, uma unidade. O segundo aspecto a ressaltar nesta desidentificação do artista com seu século é o fato de que Michelangelo mantém-se, por toda a sua longa vida (1475-1564), relativamente fiel aos seus "anos de formação" na Florença de Lorenzo il Magnifico e na Roma de Júlio II. Ora, esse ideário dominante na Itália central entre, digamos, 1480 e 1512 viria a ser destruído pelas calamidades das Guerras da Itália, pelo Saque de Roma de 1527 e pela fratura religiosa, crises que culminarão no Concílio de Trento (1545- 1563). Há, portanto, um profundo descompasso entre a 'forma mentis' de Michelangelo e a da nova arte requerida pela Reforma católica. Neste sentido, a arte de Michelangelo é, a partir do segundo terço do século 16, uma arte do passado. Não por acaso, os nus dos afrescos da Capela Sistina e da Capela Paolina foram censurados e escaparam por pouco da total destruição, no caso da Sistina. Por outro lado, ela é ao mesmo tempo uma arte do futuro, como bem percebe Vasari, que a elege como modelo único e insuperável.

Vasari foi também artista, além de arquiteto, cuja obra começa a ser revista por meio de exposições em seus 500 anos. Como classificaria sua importância para a história da arte?

Vasari (1511-1574) é um pintor não tão dotado quanto seus amigos e colegas de geração em Florença, como Francesco Salviati, Rosso Fiorentino e Pontormo, os quais, contudo, não são arquitetos como ele, arte na qual seu talento é, hoje, universalmente reconhecido. Mas Vasari ultrapassa todos por sua formação histórico-literária, por seu comando da escrita e, sobretudo, pela capacidade de interagir com algumas das mentes mais brilhantes do século, de Pietro Aretino a Benedetto Varchi, de Vincenzio Borghini e Paolo Giovio a Annibale Caro. Para não falar do próprio Michelangelo, a quem Vasari deve muito de seu ideário. Até cerca de 1540, a proficiência de Vasari nas letras ainda supera seu cabedal como pintor. É preciso insistir sobre este ponto: nos anos 1540, Vasari não transita para as letras. Permanece nelas, enquanto desenvolve seus dotes de pintor e arquiteto.

A biografia de Michelangelo por Vasari não omite a turbulenta relação do artista com os Medici, mas fatos importantes - como a vida clandestina para escapar à morte por ordem do duque Alessandro, a censura à correspondência e as extorsões de que foi vítima - passam ao largo. É possível que Vasari pretendesse escrever uma biografia "autorizada"?

Vasari é um cortesão. Orgulha-se de sua relação de servitù com os Medici. O crescendo que perpassa o conjunto de suas Vidas dos Artistas, publicadas em 1550 e em 1568, crescendo que a Vida de Michelangelo coroa, explicita e leva às últimas consequências teóricas e ideológicas, constitui um construto historiográfico de três séculos (1250- 1550). Mais que isso, Vasari maneja com maestria uma visão de certas constantes da civilização italiana desde a Antiguidade, antecipando em boa medida a noção de "longa duração" reproposta por Fernand Braudel em um texto famoso de 1958. Mas este suntuoso palácio da memória é posto a serviço dos Medici, de modo que, quando necessário, Vasari não hesitará em sacrificar o "fato" à causa da glorificação de seus Senhores. E quando o fato for incontornável, como, por exemplo, a recusa de Michelangelo a atender aos apelos de Cosimo I para retornar à Florença, Vasari recorrerá a explicações obviamente esfarrapadas, como a alegação de que o ar de Florença não fazia bem à saúde do artista. Isto posto, não esqueçamos que Vasari não é um historiador, armado com a metodologia e a deontologia que, desde o século 19, exigimos de tal ofício. É um cortesão que elabora um espetacular afresco histórico da arte da Itália, no intento primeiro de reafirmar, custe o que custar, a centralidade cultural da Toscana dos Medici.

Vasari insiste em mostrar ao leitor como era íntimo de Michelangelo, a ponto de usar o próprio nome na terceira pessoa para legitimar a si como artista. As Vidas não traduziriam um desejo oculto de revelar a condição do artista moderno por meio de lances autobiográficos?

Demonstrar sua estreita amizade com Michelangelo era ponto de honra para Vasari, sobretudo após 1553, quando Ascanio Condivi publica uma biografia alternativa de Michelangelo, afirmando que a de Vasari continha erros resultantes de sua escassa relação com o grande mestre. Sua amizade privilegiada com Michelangelo é indubitável, como o demonstram as numerosas e afetuosas cartas intercambiadas entre eles, e os sonetos dedicados por Michelangelo a Vasari, que ele responde com outros de mesma rima, infelizmente perdidos. É certo que as Vidas dos Artistas de Vasari representam a culminância de um processo de três séculos de progressiva emancipação das artes visuais, que gozarão doravante da dignidade de uma própria História, gênero elevado por excelência. Esta história reflete a emancipação sociológica do artista italiano (a partir de Giotto, morto em 1337), que se libera do estatuto de artesão pertencente às Artes mechanicae, "meramente" manuais.

Vasari, ao analisar o Tondo Doni, antecipa em séculos interpretações contemporâneas como a de Leo Steinberg, que chega a fazer alusões à homossexualidade de Michelangelo por causa dos efebos, símbolo de um mundo laico, atrás da Sagrada Família, como oposição ao mundo religioso. Como vê essa obra?

O Tondo Doni, pintado para Angelo Doni em Florença, em algum momento entre 1504 e 1507, é obra seminal em muitos sentidos. Já Roberto Longhi nela via o documento inaugural da maniera, essa poética e período histórico tão complexos e de difícil apreensão, que usualmente denominamos maneirismo. Em 1943, Charles de Tolnay fazia notar como a contraposição entre a Sagrada Família e os nus do último plano do quadro exprime um confronto entre o amor sagrado e o amor profano ou lascivo. Uma espécie de psicomaquia ou luta entre vícios e virtudes, alusiva à superação do mundo antigo pelo mundo cristão. Foi notado também como esses nus constituem uma espécie de "Suma" dos modelos escultóricos emblemáticos da estuaria antiga (como o Apolo do Belvedere, o Laocoonte e outros), que começavam a ser reunidos no Cortile delle Statue do Vaticano pelo papa Júlio II. Essas estátuas figuram como as grandes referências da imitação artística e esta me parece ser uma dimensão central na interpretação da obra. Decerto, interpretações psicanalíticas são sempre possíveis e, por vezes, iluminantes. Mas aqui me parece não especialmente frutuosa, pois o que está em jogo é muito mais que a sexualidade de Michelangelo.

Vasari não se contentou em ser apenas outro historiador de arte, como comprova em Vidas, em que trata de traçar uma hierarquia entre os artistas e afirmar - sem medo de errar - quem iria determinar a arte do futuro, destacando Michelangelo. Com quem Vasari foi injusto?

Vasari é injusto em dois sentidos muito diversos. Em primeiro lugar, ele deixa à sombra ou ilumina insuficientemente dimensões inteiras da pintura italiana, em especial da arte vêneta e lombarda. Isso decorre de seu menor conhecimento dessa arte e também de sua vontade de afirmar a liderança histórica da arte toscana. Observe-se, entretanto, que esta é apenas uma "meia injustiça", porque é inegável que, da mesma maneira que a literatura italiana gravita historicamente em torno de literatos toscanos - Dante, Petrarca e Boccaccio -, assim também a arte italiana se deixará efetivamente conduzir pela arte toscana, de Cimabue e Giotto a Michelangelo. / A.G.F.


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