quarta-feira, 20 de julho de 2011

Franz Liszt: o bicentenário de um gênio desprendido



Enio Squeff


Franz Liszt: o bicentenário de um gênio desprendido

O longo tempo que nos separa do gênio parece empanar a evidência de que ainda hoje Liszt estende muito de sua influência aos músicos, aos encenadores de óperas, mas não menos aos diretores de cinema. Com a sua música poderosa, há que se buscar no cinema épico, a espacialidade que Franz Liszt - com Wagner - instaurou na música de concerto.


Comemora-se este ano o bicentenário de nascimento de Franz Liszt (1811-1886). Parece espantoso que tenha transcorrido tanto tempo. Insiste-se em que Liszt foi um dos maiores, senão o maior "pop star" de sua época na Europa- o que não é uma inverdade. E se louva sua produção prolífica, o que também não é uma mentira. Chega-se inclusive a se lembrar o mulherengo que ele foi - igualmente uma história que a sua biografia confirma. Mas quase não se enfatiza o melhor de tudo - seu imenso talento como pianista e principalmente como compositor. Talvez o grande segredo de sua existência tenha sido sua importância para a história da música, sem que seus simpatizantes (ou seus detratores), não pudessem inibir sua glória como amante, como regente, escritor e até como revolucionário. O longo tempo que nos separa do gênio, parece empanar a evidência de que ainda hoje Liszt estende muito de sua influência aos músicos, aos encenadores de óperas, mas não menos aos diretores de cinema. Com a sua música poderosa, há que se buscar no cinema épico, a espacialidade que Franz Liszt - com Wagner - instaurou na música de concerto.

Liszt, de fato, exerceu muitos papéis - mas alguns musicólogos, na ânsia de encontrar um caminho natural para a modernidade - uma espécie de inevitabilidade histórica - armaram várias teorias que confirmam sua relevância, sem que se possa dizer que, não fosse seu pioneirismo, nem por isso sua proeminência seria menor. Um estudioso francês, René Leibowitz, chegou a descobrir uma série dodecafônica numa de suas peças.

O dodecafonismo foi uma das formas mais conseqüentes assumidas pelo atonalismo no começo do século XX: Liszt teria previsto o seu nascimento, antes de Arnold Schoenberg, que, por sua vez, desenvolveu e influenciou praticamente toda a música de concerto contemporânea - dando uma espécie de "fundamentação histórica" ao progresso musical; ou seja, Schoenberg foi um revolucionário em muitos sentidos. Só que Liszt o precedeu. em sua música. Esta, porém, parece não estar sendo tão divulgada, além do ramerrão, justamente no ano em que se celebra o bicentenário de seu nascimento,

Musicólogos, historiadores e críticos não hesitam em insistir que Liszt foi um dos maiores, senão o maior pianista que já existiu. Suas partituras para piano que, em certos casos, exigem um virtuosismo inacreditável, comprovariam a tese. Como pianista, Liszt exercia um tal entusiasmo entre os ouvintes da sua época que não era incomum ser carregado em triunfo, por estudantes, em sua carruagem desatrelada dos seis cavalos brancos que a conduziam - tudo para o louvarem como uma espécie de fenômeno único, eterno. A par disso, porém, era um homem bonito, fascinante que arrebatava especialmente as mulheres. Poderia ter sido a sua desgraça.

Sem ser aquele bem aventurado que Manuel Bandeira imaginava para si mesmo como num sonho, Liszt, húngaro de nascimento, mas de formação alemã (mal falava a língua magiar), talvez pudesse reivindicar a condição de vivente de Pasárgada. Que tinha a mulher que quisesse na cama que bem escolhesse.

Um libertino? Nem tanto. De suas ligações com as mulheres, sabe-se de pelo menos duas que lhe foram fiéis (até quando isso fosse possível). Marie de Flavigny , madame d'Agoult, deu-lhe três filhos; Caroline zu Sayn Wittgenstein, princesa russo-polonesa foi a que o acompanhou, ainda que a distância, até o fim da vida. Ambas foram intelectuais de algum valor.

Liszt - ele próprio um intelectual - gostava de mulheres inteligentes e articuladas. Mas, enquanto duraram, não foram ligações pacíficas. Madame d'Agoult parece ter resumido a sua relação com o pianista e compositor, ao lhe declarar, claramente, que não queria ser mais uma de suas amantes - mas "a amante", isto é, desejavelmente, a única. Não seria o caso. O insólito é que Liszt, em meio a suas derrapadas passionais, tinha dramas de consciência só explicáveis por sua religiosidade extremada. Não caía em tentação sem procurar um confessionário. Levou o seu catolicismo a tal ponto que. sempre em meio a aventuras amorosas ( morreu relativamente velho, para a época, aos 75 anos), conseguiu vestir uma batina para, por fim, se tornar abade ("Abbé Liszt").

À primeira vista, um inconstante e um inconformado. Mas se tergiversava no amor, nunca hesitou na música. Para esta, o donjuanismo ou mesmo as decepções amorosas, foram-lhe sempre apenas intervalos entre recitais e concertos - centenas deles ao longo dos anos, (numa época em que a viagem de carruagem era o único meio de transporte por terra) mas principalmente entre as composições - centenas delas; essas sim, o melhor que poderia ter legado à posteridade.

Sua produção foi realmente prodigiosa. Além de canções, peças para piano, dois concertos (também para piano), obras sinfônicas, música religiosa, Liszt tornou-se - muito provavelmente sem querer - o mais importante divulgador da música de concerto em todos os tempos. Ao fazer arranjos para piano de óperas e de sinfonias, Liszt espalhou pelo mundo uma série infindável de partituras, impossíveis de serem executadas em sua forma orquestral em lugares onde não houvessem sinfônicas. Ao reduzir peças orquestrais e óperas para um instrumento relativamente acessível, Liszt facultou a que óperas e sinfonias fossem escutadas onde quer que tivesse um piano. E alguém para tocá-lo. Assim, quando Machado de Assis afirma, no "Memorial de Aires" que a viúva do romance, tocava ao piano a ópera "Tanhauser", de Wagner, muito provavelmente se referia a um arranjo feito por Liszt.

Foi notável em quase tudo o que fez, incluindo-se aí, de forma especial, os 13 "poemas sinfônicos" - expressões puramente musicais que tinham um argumento, em geral, extraídos das poesias de alguns grandes escritores tanto da sua época, como Victor Hugo, e Lamartine, quanto do passado, como Dante Alighieri. Isto irá acontecer numa época relativamente tardia para ele: já tinha tocado para milhares de pessoas - queria se dedicar à composição e ao ensino. Fez o melhor concebível para ambas as atividades. Pode-se dizer que toda uma legião de pianistas de todos os países foram alunos, dos alunos de Liszt. Este o DNA legado aos que se dedicam ao piano. Como compositor, porém, Liszt foi muito maior do que se possa imaginar de um homem mais que talentoso e, sobretudo, mais que festejado.

Era de se esperar, por exemplo e talvez, que fizesse vista grossa para estudo dos instrumentos orquestrais a fim de escrever para conjuntos sinfônicos. No entanto, numa época em que já era consagrado como o melhor pianista de todos os tempos, teve a humildade de tomar aulas de orquestração e deixar para outros a instrumentação de algumas de suas obras. Considerava, porém, que deveria dominar a escrita para orquestra com a mesma autoridade com que fazia o que bem quisesse com o piano.

Mais uma vez foi vitorioso. Praticamente todos os compositores do século XX passaram um dia pelas suas partituras para orquestra sinfônica. Mesmo quando ao piano, tornou-se um mestre na arte da orquestração. Ninguém nega a seu "pianismo", uma força orquestral só sugerida. O mais instigante, porém, foi que Liszt, em meio a tantas glórias e talentos, tivesse ainda tempo para escrever livros (com a inconfessável ajuda de pelo menos duas de suas companheiras já mencionadas) e, mais que tudo, viesse ajudar, com dinheiro, alguns movimentos nacionais emancipatórios. Até onde se possa considerar "patriota" a quem incentive as ações de independência de um país, Liszt fez o bastante para merecer o título: nunca negou aos seus patrícios húngaros o seu apoio explícito à luta pela independência da Hungria.

Mas e o cinema?

É uma teoria antiga. Com sua orquestração Liszt e alguns de seus colegas (como Wagner, e Berlioz) ampliaram o espectro orquestral. À categoria de tempo, própria da música, a orquestração lisztiana incluiu, no âmbito sinfônico, a dimensão espacial - a orquestra agora sugeria os grandes panoramas, os movimentos pelos horizontes amplos, o espaço da natureza, em suma. Não foi por acaso que o início do cinema sonoro incluísse na sua trilha sonora os achados sinfônicos de Liszt (ainda que não só dele). Na música orquestral lisztianas, em todo o caso, alargava-se também o espaço das tomadas pelas pradarias dos velhos Westerns.

São muitos, em síntese, os tributos devidos pelo futuro à memória de Liszt. A generosidade para com muitos de seus colegas foi o que menos se amplificou para o futuro. Talvez seu fascínio e seu talento não supusessem, ainda por cima, o gesto desinteressado de não cobrar, por exemplo, um só centavo para dar aulas a pianistas que julgasse simplesmente talentosos. Fez mais - quando podia, ajudava inclusive com dinheiro.

Um homem exemplar, em suma - não fosse o compositor e o pianista genial.

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